Merval (ou, quando o destino não se confirma)

Doido, mais, muito mais, demais, é o doido Merval. Merval nasceu esquecido de mãe esquecida de vida. Mãe, nasceu e não sabe de que jeito. Só sabe que nasceu de mãe Zefa. Mãe esquecida de Merval não tem nome porque esqueceu nome e só lembra, porque faltaram, que Zefa era mãe da mãe esquecida de Merval.

Merval nasceu porque quis. Desde a barriga, mãe esquecida de Merval, nem sabia que esperava filho. Então, Merval, na luta lutada desde a barriga, Merval, quase um guerreiro, quis e nasceu. Cresceu solto. Igual aos pássaros que voam sem passagem paga, o menino, sem corrente, sem nada que prendesse seus pés, o menino andarilhava, solto solto, igualzinho folha sobrada de vento, sem parada certa. Mas quando arranjava canto qualquer, cama fazia. Não se pode dizer, porque mentira é coisa que não se faz sem certeza de verdade, que Merval, moço por demais solto, inté se diz, ainda nos dias presentes, que moço solto não finca raiz, Merval, dia esquecido faz tempo que faz, o menino, inté que quis, mas não aprendeu formar palavra, nem ler letra de livro do seu Tomé. Mormente, sem precisão alguma, não existe um nada de conhecimento, e somente isso, que Merval, filho de mãe esquecida, viveu sem rumo, sem remo, solto solto.

Bom de coração, ninguém dizia que não. Era menino muito querido, nunca ficou sem prato de comida, nem cama sem coberta.

De precisão pouca, cresceu somente com o que o corpo reclamava. Vez teve que ganhado muita roupa, sapato e mais coisas boas, vestiu somente o que o corpo reclamava, os demais, nem piscou, levou pra igreja que "lá tem gente de precisão" respondeu quando perguntaram.

Coração mais que demais de bão, Merval, sem conhecimento das letras, era capaz de falar das coisas igual como se soubesse de tudo tiquinho por tiquinho. Certa vez, teve um homem que falou de maneira que ele desconfiou da verdade da fala. Irritado com o mequetrefe metido a sábio, o menino, sem escolher palavra boa pra ocasião, disse "descobrir a verdade das coisas é trabalho dos homens simples, homens que olham ao derredor, e sentem o cheiro da terra" , falou e saiu. O sisudo calado ficou. Assim, sem saber das letras, a leitura, o menino, de mãe esquecida, rodopiava por todas as bandas. Conhecia cada palmo de chão, sabia, só de ouvir, o nome de cada pássaro que ouvia. Às vezes, com fome avançada pelo dia, colhia um punhado de mato, que não era mato, sempre dizia, era pranta tão boa e de muitas coisas boas pro corpo, que parece carne. É carne de planta, falava e ria.

Caprichoso no trato com qualquer pessoa, sem distinção de grandeza ou honraria por roupa fina ou dinheiro farto, Merval tratava a todos com a mesma gentileza que ao padre dispensava.

Crescido rapaz, encantou Norinha, moça filha de dona Januária e seu Orlando. Mãe e pai de Norinha, gostavam muito de Merval

Ecantaram -se tão facilmente, Norinha e Merval, que pai dela, sempre lembrava que foi mais que amor a primeira vista, ele dizia que foi encantamento a primeiríssima vista. Desde do conhecido, não se via mais nenhum dos dois só. Tudo faziam juntos. Era bonito de ver. Norinha e Merval, inté faziam plano de juntar trapo, assim se diz quando se quer casar. Merval inté deixou de andar sem rumo. Arranjou trabalho, pensou inté estudar as letras, disse assim mesmo "estudar as letras" quando falou pra Norinha vontade de estudar. E foi. Entrou pra escola. No começo achou quase impossível juntar letras e formar palavras, mas quando conseguiu, o primeiro nome que formou, pra encanto seu, foi Norinha. Ela gostou mais que muito. Mostrou pro pai e mãe. Disse que ficou feliz. Merval, daquele dia por diante, sem faltar um dia se quer nas aulas, se empenhou tanto, mas tanto, que na formatura, diante de muita gente, professores, Norinha, dona Januária, seu Orlando, o padre Bento, enfim, quando o diretor chamou Merval, fez questão de dizer que Merval, em bem pouco tempo, aprendeu a dominar o alfabeto, já sabia escrever umas histórias e que tinha um belo caminho pela frente. Norinha, mãe e pai, inté choraram. Merval, inté que se esforçou em esconder, mas quem tentou viu uma lagriminha molhar as faces sardentas do jovem formado.

Doido mais que doido? Claro que não, respondia Norinha, agora mãe e esposa. Ele nunca foi doido, respondia ela tão logo alguém vinha com essa desconsideração. Ele nunca foi doido. Ele é a pessoa mais amável, mais gentil, mais prestativa que conheci e conheço. Ótimo pai. Amigo de muitos amigos. É possível ser doido quem é assim, devolvia essa pergunta. E sem esperar resposta, Norinha, ela mesma respondia: " É... nesse mundo de egoísmos, de salve-se quem puder, nesse mundo onde cada dia soa como se fosse o último, ser amigo, companheiro, amável, talvez seja coisa de doido mesmo, falava e sorria para o marido que chegava para o caloroso abraço.