O E.T. de Varginha
Um dia desses passeava eu pela aprazível cidade mineira do título quando topei com o famoso etê de lá, hoje já nem tanto, conforme descobri depois. Pois imaginava que ele vivesse constantemente assediado, seguido, solicitado a dar autógrafos e entrevistas, coisas assim, mas não. Parece que ele já fazia parte da paisagem local: caminhava sozinho por uma rua central, cabisbaixo, ninguém o perturbava então.
Fui me aproximando dele com cuidado, porque era a primeira vez que eu via um etê de perto, não sabia se era necessário ou não tomar alguma vacina para me relacionar com a estranha criatura. Só tinha ouvido falar de seres como ele através de obras de ficção científica, além de ter visto no cinema o E.T. do diretor Steven Spielberg naquele filme de 1982. Tomei coragem e o cumprimentei:
“Bom dia, seu etê, como vai?” Ele não me estranhou, claro, pois convivia há tempos com os habitantes da cidade, circulava leve, livre e solto feito um cachorro vira-latas como havia muitos soltos pelo lugar, e esses animais também não o estranhavam. Respondeu educadamente ao meu “Bom dia”, mas não disse como ia, continuou caminhando e olhando para o chão. Insisti, com nova pergunta:
“Algum problema, seu etê? O senhor olhando assim pro chão me parece preocupado com alguma coisa, estaria com saudades de casa, algo assim?” E ele: “Sim, sinto saudades de casa, mas estou olhando pro chão pra não pisar em merda de cachorro. Vejo que você já pisou numa.” E com seu longo e fino dedo indicador, que em lugar da unha terminava com uma luzinha azulada, apontou meu sapato esquerdo.
Conferi, e putz, era verdade! É que tentando conversar com o alienígena, distraído pelo aspecto daquela figura singular, eu tinha carimbado a sola do meu sapato com uma bela bosta canina, que imediatamente tentei limpar na quina da calçada sem, contudo, deixar de falar com o estranho. Engatei nova pergunta:
“Pelo que sei, faz tempo que o senhor está em Varginha; se sente saudades de casa, porque ainda permanece aqui?” E ele:
“Meu filho, querer voltar pra casa eu quero faz tempo, mas não pense que isso seja fácil. Fácil é só no cinema americano, foi só falar ‘E.T. phone home’ que as coisas se resolveram pro meu coleguinha lá dos States. O problema é que nos nossos domínios siderais ninguém entende mineirês: esse negócio de ‘uai, sô’, ‘trem bão’ ou ‘pão de queijo’ que ninguém lá nunca comeu, não sabe o que é, ninguém entende: isso dificulta a comunicação, entendeu?”
Claro que eu entendia, mas não podia fazer nada para ajudá-lo dados meus parcos conhecimentos sobre o além, naves espaciais, discos voadores, alienígenas etc. Eu nem mesmo entendia como funcionava esse negócio das criptomoedas, um grande mistério para mim, imagine o resto então. Daí que me ofereci para pagar um almoço caso ele estivesse com fome, porque já passava do meio-dia e eu estava faminto. Além do que poderíamos continuar nossa conversa sentados e à sombra em um restaurante, tomando ainda uma ou duas loiras estupidamente geladas.
Ele aceitou meu convite, caminhamos então para um restaurante perto dali e logo de cara, sociável que era (no caminho, todos os que nos encontraram nos saudaram educadamente), como se nos conhecêssemos há muito tempo, ele me perguntou o que eu tinha achado da festa do Oscar. Eu disse que não tinha ido a nenhuma festa recentemente, que não conhecia nenhum Oscar, não sabia quem era Oscar; seria ele um outro etê, algum amigo dali de Varginha?
“Não”, ele retrucou, “me refiro à festa do cinema americano de duas semanas atrás.”
“Ah, o senhor quis dizer o OSCAR”, eu falei em voz alta para corrigi-lo ou não; ele tinha uma pronúncia um tanto anasalada ou metálica, não sei bem como classificá-la, sei apenas que era bem diferente da nossa. Porém isso não impedia que conversássemos há um bocado de tempo já. Então falei: “Não vi a entrega dos prêmios, mas li alguma coisa sobre os premiados.” E ele:
“Achei uma injustiça Os Fabelmans, o filme do Spielberg, não ter ganhado nenhum prêmio. Tenho um grande respeito por esse diretor porque ele ajudou a divulgar nossa gente, quero dizer, os etês, como seres do bem, enquanto a maioria dos cineastas só mostra a gente, os etês, como ameaça aos terráqueos.”
“Bem, isso é verdade.”, eu falei. Ele continuou:
“Os Fabelmans é um ótimo filme - assim como Triângulo da Tristeza, Tár ou Os Banshees de Inesherin -, não ganhou nada, mas a Academia encheu o rabo de prêmios daquele filme idiota cheio de chineses, esses sim uma ameaça se não para a Terra, para os EUA, a OTAN, já que os chinas estão fornecendo suprimentos, e provavelmente armamentos também, para a Rússia, na guerra que o Putin provocou com a invasão da Ucrânia.”
Fiquei pasmo, de boca aberta, não apenas porque o alienado, quero dizer, o alienígena tinha amplo conhecimento das atualidades políticas da Terra, também sobre arte, pelo menos arte cinematográfica. Mas convenhamos, vindo de onde veio, do espaço cheio de astros, era natural que conhecesse não apenas seus brilhantes vizinhos do universo, mas por afinidade, também os astros e estrelas de Hollywood. Aí eu disse:
“É que justamente o filme mais premiado da noite, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, esse cheio de chineses perigosos como o senhor falou, parece ter muito mais a ver com o seu mundo, de multiverso ou metaverso, realidades paralelas -, não sei bem o quê, pois não vi o filme ainda, só li um pouco sobre ele -, do que a história dos Fabelmans ou a de qualquer outro dos indicados do ano, o senhor não acha?”
Antes que o etê pudesse me confirmar isso ou não, o garçom chegou com os cardápios e então passamos a escolher nossos pratos. Eu ia pedir um prato tipicamente mineiro, claro, que a comida das Minas é sempre deliciosa, não importa que nome o prato tenha e fiquei surpreso quando ele, logo em seguida, me disse que nenhum prato do cardápio o agradava.
“Não mesmo, seu etê?”, insisti. “Não mesmo.”, ele respondeu. “Hoje eu estava com muita vontade de comer escargôs, lesmas lerdas alimentadas com trigo como o amigo deve saber, mas o restaurante não parece ter essa iguaria francesa, pois ela não consta do menu, não é?”
Aí, sabem o que eu fiz? Tirei meu sapato do pé que havia pisado o excremento canino, e falei pra ele que se quisesse dar uma lambida na sola que ficasse à vontade, porque pra mim aquela iguaria francesa e bosta de cachorro tinham tudo a ver, eram a mesma coisa, uma era o reverso da outra.
Sei que não foi legal fazer isso com um estrangeiro tão simpático e educado, um visitante (quase um ficante por aqui mesmo, na verdade), mas acima de tudo tomei tal atitude porque não sabia como terminar essa merda de história. Que alívio poder colocar um ponto final aqui. Ufa!