Futebol não se aprende na escola
Todo início de ano escolar Mr. Bowles, nosso idoso professor de inglês no curso Oxford, natural de Londres mesmo, explicava aos novos estudantes que havia algo que jamais deveriam esquecer (mas depois esqueciam, claro): não existia nenhuma hora mais ou menos isso ou mais ou menos aquilo, apenas a hora certa. Em alguns países nem tão desenvolvidos assim podia ser que sim (ele não dizia isso, mas pode-se supor que pensava isso), mas não na Inglaterra, que lá se cultivava o hábito da hora certa, exata.
E explicou que até mesmo os suicidas que se atiravam da roda-gigante de Londres, a London Eye, dois ou três por semana, procuravam fazê-lo pontualmente, nas horas redondas, nunca em horas quebradas. Ainda que fossem suicidas, os ingleses se orgulhavam de pessoas assim, que preferiam quebrar a cabeça e outras partes do corpo do que quebrar a tradição. Então, e Mr. Bowles continuava explicando, a hora exata era uma coisa tão exatamente incorporada à cultura inglesa quanto a monarquia, o futebol ou o secular hábito de tomar o chá da tarde: servido não às cinco e pouco, mas às cinco em ponto!
Isso suposto, e embora quase todo mundo soubesse algo a respeito de Agatha Christie, Harry Potter, David Beckham, os Beatles ou Susan Boyle, quem não frequentava o Curso Oxford (ou não fazia suas próprias pesquisas) deixava de se aprofundar em assuntos que realmente importavam como, por exemplo, a obra completa de Shakespeare, suas tragédias, comédias e sonetos. Igualmente, deixaria de tomar contato mais sério com interessantes e pitorescos aspectos da vida e da cultura inglesa.
Que eram os casamentos reais, as férias de verão da rainha em Balmoral (quando ela estava viva, claro), os ônibus de dois andares (que alguns modernistas demais queriam aposentar), o peixe com batatas fritas, Mary Quant e a minissaia, as cabines telefônicas vermelhas (já em processo de extinção por conta dos celulares), o sanduíche de pepino, as regras da caça à raposa, a direção no lado direito dos veículos, as histórias de Sherlock Holmes, a morte trágica de Lady Di etc., e até mesmo diversos fatos acerca de John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Richard Starkey Jr. Sim, os estudantes mais adiantados do Oxford sabiam que o nome verdadeiro do baterista dos Beatles não era Ringo Starr!
Por último, mas não menos importante, os estudantes também eram apresentados aos fatos, datas e histórias que envolviam a grande contribuição dada pela Inglaterra à humanidade, a já citada hora certa. Uma verdadeira obsessão para os ingleses mais idosos. Igualmente para Mr. Bowles, claro. Tanto, que ocupava um capítulo especial dentro de suas aulas. Juntamente com a história do futebol, outra invenção inglesa.
Assim, ele explicava aos novos estudantes, os sortudos do curso básico que caíam em suas classes, que dado o meridiano de Greenwich não ser visível sequer para Sua Majestade, os ingleses acharam por bem erigir então um grande monumento em Londres, o Big Ben - uma homenagem explícita à pontualidade britânica e bem mais apropriado que o observatório de Greenwich.
A partir de 1859 (ano em que o Big badalou bem pela primeira vez), atender a um compromisso na hora estipulada, além de obrigação para um súdito real, passou a ser também uma característica de comportamento marcadamente britânica. Tanto quanto, alguns anos depois, em 1863 (para ser exatamente exato), assistir a uma partida do chamado esporte bretão em Cambridge - cidade mais que universitária, o berço do futebol mesmo.
Para que jamais perdessem a hora e a fama de pontuais, os ingleses desde sempre contaram com a preciosa ajuda dos relojoeiros suíços, que ao longo do tempo aperfeiçoaram os mecanismos que tornaram os relógios altamente precisos. Desse modo, as partidas do futebol inglês puderam começar sempre na hora aprazada, nem um milésimo de segundo antes ou depois. Embora as aulas em Cambridge, Oxford, Harrow ou Eton se iniciarem na hora exata não foi coisa que deu tão certo assim. Não por culpa dos relógios suíços certamente.
Além da hora certa, essa outra contribuição inglesa para o avanço da civilização, o futebol profissional, aos poucos foi conquistando todos os povos do ocidente. Ainda que em alguns países as partidas quase sempre começassem com atraso ou terminassem em pancadaria na saída dos estádios. Ou ambas as coisas. E graças ao hooligans, os fanáticos torcedores ingleses de tempos atrás, os atrasos nas partidas e as pancadarias antes e depois dos jogos se tornaram frequentes também na Inglaterra. Para desgosto do primeiro-ministro, da rainha e de muitos de seus súditos.
Com o passar dos anos, até do próprio século, o esporte bretão já se encontrava espalhado por todos os campos da Terra. E se firmara até no oriente: Coreia do Sul e Japão sediaram, em 2004, a Copa do Mundo de Futebol, o torneio mais importante do planeta bola. Mais ainda: havia muito que o futebol se encontrava muitíssimo bem adaptado às terras brasileiras e italianas, melhor até que em seu país de origem. Era só verificar o número de vezes que Brasil e Itália venceram aquele torneio.
Os ingleses, que um dia deram o futebol ao mundo, haviam conquistado a Copa apenas uma vez, no remoto ano de 1966. Mesmo que os “simpáticos” hooligans tivessem se multiplicado assustadoramente desde então e tenha sido necessário passar uma borrachada neles – palavras de Mr. Bowles. Apesar de cultivar algum humor e certa dose de ironia fina (senão não seria verdadeiramente inglês nem apreciaria P. G. Wodehouse e Evelyn Waugh), o fraco desempenho da seleção inglesa nas Copas era um assunto sobre o qual Mr. Bowles não apreciava muito falar. Nem gostava que ficassem lhe lembrando disso durante as aulas ou fora delas.
Secretamente ele nutria a esperança de que numa próxima Copa o time inglês se sagrasse campeão, mostrasse ao mundo que aquela gente esbranquiçada e de veias azuladas também tinha seu valor. Não apenas os bronzeados rapazes brasileiros ou italianos (esses um pouco menos bronzeados).
E como essa história foi escrita bem antes da Copa de 2026 nos EUA, Canadá e México, nem mesmo se sabe se a Inglaterra será um dos países classificados para participar do torneio, Provavelmente sim: é esperar para ver. E esperança (hope, em seu idioma) era uma das palavras que Mr. Bowles mais apreciava.
Então, em homenagem ao mestre, com carinho saudemos todos: Hope, hope, hooray!