Cidade maravilhosa

Era uma vez uma cidade que já havia sido maravilhosa e hoje é bastante perigosa e barulhenta demais para o gosto de muita gente. Há tempos, para o lado das favelas e dos morros, policiais e traficantes de drogas, armas e mulheres, viviam trocando tiros muitas vezes por ano e, às vezes, muitas vezes por dia - embora nunca o dia todo, que ninguém é de ferro feito Tony Stark, o homem de ferro do cinema, claro.

Seguramente, daqueles marginais ali das periferias e morros quase uma centena já havia sido da polícia uma vez, antes de ser expulsa das corporações. E certamente parte dos policiais em ação um dia ainda acabaria passando para o lado de lá, do crime. Ambos os lados eram perigosos, porém o do crime parecia compensar muito mais; não tanto quanto no Rio de Janeiro, contudo.

E da mesma forma que no Rio era comum que durante esses combates uma bala perdida, ou mais de uma, acabasse encontrando alguém, geralmente um inocente subindo o morro em busca de drogas. Para consumo próprio ou revenda para os bacanas do asfalto e das praias.

Por conta dessas guerras, algumas vezes por ano grande parte da cidade virava um verdadeiro campo de batalha, um inferno. Se pouco adiantava reclamar da situação com as autoridades policiais, menos ainda adiantava reclamar com o bispo ou com o arcebispo. Que obviamente não compravam armas, não fumavam e tampouco cheiravam qualquer tipo de substância proibida.

Andrew Bishop apreciava apenas um licorzinho de jabuticaba após as refeições, um digestivo; quanto às drogas consumia apenas aquelas vendidas nas farmácias e drogarias, quase sempre sob receita médica. O arcebispo irlandês da cidade, defensor dos pobres, oprimidos e favelados, entrara de gaiato nessa história, de fato. E ao contrário das armas dos traficantes e policiais a sua disparava nada muito além de palavras. Santas palavras que entravam por um ouvido dos fieis e saiam pelo outro, sem contudo provocar-lhes ferimentos.

Em vez de seguir estritamente a antiga orientação de Roma antiga, quer dizer, do Vaticano, preocupar-se com o avanço cada vez maior das igrejas evangélicas sobre seu rebanho e seus dízimos, fazer algo concreto para detê-lo que não fosse simplesmente distribuir algum tijolo, cimento e argamassa para os favelados de vez em quando, o arcebispo optara, no entanto, por outro tipo de missão.

Tempos atrás, estimulado por fiéis e subordinados, tivera a ideia de escrever à Santa Sé para solicitar ao papa que excomungasse todos os bandidos violentos dos morros. Pedido que, por sua inutilidade, o sumo pontífice se recusou a atender, evidentemente.

Quando os traficantes, os bandidos souberam da boa nova se juntaram em confraternização, comemoraram bastante, exemplarmente, com muita bebida, drogas, cachorras e sexo animal. Também com incontáveis disparos de armas para o ar, vários deles em homenagem ao arcebispo. Foi o que ocorreu então e a cidade toda ficou sabendo.

Para os bandidos o papa lá distante em Roma ainda não, mas as autoridades da igreja católica local reconheciam sim, que eles eram do capeta mesmo - a polícia então que passasse a respeitá-los mais!

É o que não apenas os religiosos e a população estão fazendo, também muitas autoridades municipais, estaduais e federais – respeito total pela bandidagem. Sobre isso, nas várias ocasiões em que conversei com meu amigo, o delegado Nordmark, sobre os crimes que iam pela cidade e pelo país, ele sempre se saía com a conhecida frase, uma de suas preferidas, a de que a polícia prendia e a justiça soltava. Não apenas os bandidos do morro e os traficantes, igualmente os corruptos que desviavam dinheiro público.

Nordmark dizia mais: que o propalado "estado de direito" (as aspas eram dele), do modo como era entendido por vários magistrados dos tribunais superiores estava sempre mais a beneficiar os criminosos do que efetivamente a proteger a sociedade contra eles. Que se não existia o crime perfeito, esses mesmos tribunais, "com suas ações, minúcias e preciosidades" se esforçavam sobremaneira para que os bandidos e corruptos pudessem torná-lo real um dia. E fechava o assunto com uma de suas expressões favoritas: "Tá tudo dominado."

E o pior é que tá tudo dominado mesmo!