Balbino Di Surro
Era o primeiro dia de aula. O velho professor de Religião da escola para jovens entrou pela sala portando sua bengala de cedro e marfim, virou-se para a turma, bateu com a bengala na mesa e ainda secando os óculos molhados de chuva na borda do paletó pediu que todos fizessem silêncio, pendurou-os novamente na ponta do nariz grotesco, pôs a pasta de couro marrom sobre a mesa e em seguida anunciou de modo solene:
— Senhores, na aula de hoje abordaremos alguns Preceitos Fundamentais do Cristianismo. Façam silêncio e abram seus papiros nas páginas 210 e 211.
Todos atônitos e em silêncio profundo, o homem corcunda e pesado continuou:
— Levante a mão direita só aqueles que forem cristãos.
E então, com apenas uma exceção, todo o restante da turma levantou a mão com orgulho soberano e um sorriso no rosto, cada um parecendo querer ser mais cristão que o outro. Desta feita, o professor foi até o canto da sala e tentou levantar um grande crucifixo que estava apoiado no chão, mas suas tentativas foram em vão e a turma toda, ainda com mãos levantadas começou a rir daquela situação jocosa.
— Estão vendo este pesado crucifixo de bronze aqui no canto? Bem, como podem ver sou um velho cansado e manco, não consigo levantá-lo para pendurar no alto daquela parede, alguns dos senhores poderiam ter a bondade de ajudar-me? Disse ele olhando para a turma.
A grande pausa silenciosa continuou por alguns breves segundos, até que o menino franzino, pálido, maltrapilho e de olhar profundo, o mesmo que não tinha levantado a mão e nem tinha rido do professor, caminhou até o palanque — Lá vai Bambino o Sujo — alguém gritou lá do fundo da sala e todos começaram a rir sem parar numa balburdia extrema. O menino agarrou o pesado crucifixo de bronze, subiu numa cadeira e mesmo com grande dificuldade pendurou-o no alto da parede. Em seguida, desceu da cadeira meio ofegante, com as pernas bambas e olhos esbugalhados pelo esforço, abriu um largo e triste sorriso...
— Muito obrigado, senhor! Disse ele.
E em seguida voltou para se sentar e admirar o belo crucifixo cintilante na parede. Um murmurinho ainda corria o recinto. O professor, que a tudo assistia por cima dos óculos de arame, meio estupefato, levantou-se pesadamente, coçou os ralos pelos da nuca e perguntou:
— Menino, qual o seu nome?
O menino ficou de pé ao lado da carteira e com voz baixa e trêmula respondeu:
— Me chamo Balbino Di Surro, senhor, mas todos dizem Bambino o Sujo.
Neste momento o silêncio foi rompido pela turba de alunos com uma bruta gargalhada de deboches e chacotas, muitos batiam nas mesas e gritavam. Balbino, sem reação, apenas abaixou o olhar em direção ao chão e pode ver além de dois sapatos furados, seu próprio olhar tristonho refletido numa poça minúscula.
— Calem-se todos! Bradou o professor com voz de trovão e logo o silêncio foi restabelecido... e continuou ainda com voz de trovão — Notei que o senhor foi o único que não ergueu a mão quando fiz a pergunta, afinal, qual é a sua religião?
Ainda mais trêmulo que antes, Balbino respondeu à voz minguante:
— Não sei, senhor, acho que nunca tive uma dessas. Minha mãe e meu pai são muito pobres e acho que não podem comprar uma religião para mim, além disso, minha mãe sempre disse que eu só precisava ter Fé.
A galhofa foi geral. Todos gritavam histéricos e pronunciavam em coro palavras de desprezo e escárnio, jogavam bolotas de papel e chicletes. E então ele continuou...
— Mas na parede da nossa casa tem uma cruz parecida com essa e é bem pequenininha e de madeira. Todas os dias minha mãe e meu pai se ajoelham na frente dela pela manhã e antes de dormir e é quando minha mãe sempre chora.
Uma nova gargalhada zombeteira tomou conta do recinto e o velho professor, exigindo silêncio, continuou com seu interrogatório:
— Por que razão o senhor se levantou sozinho e prontamente veio me ajudar com o crucifixo?
Balbino desviou o olhar até o papiro surrado e borrado de lágrimas sobre a carteira...
— Senhor, ali está escrito que um verdadeiro cristão tem que trabalhar para manter sua Fé, praticar a bondade, demonstrar gratidão, falar sempre a verdade, ajudar ao próximo, nunca zombar de seu semelhante, principalmente de Deus e....
Neste momento, antes que Balbino continuasse, o professor o interrompeu, sua voz de trovão embargou e foi minguando, minguando até quase sumir. Ele respirou fundo, as lágrimas desciam-lhe pelo rosto barbudo e já nem tão carrancudo, na verdade, seu semblante agora quase denotava um leve ar de ternura. Apoiado em sua bengala, o homem caminhou até “Bambino o Sujo” estendeu-lhe a mão e disse sorrindo ainda com voz embargada:
— Pode ir para casa, filho. Amanhã você volta para trabalhar como meu assistente na escola, se quiser, e receberá um bom salário por isso. Tome essas moedas de ouro e entregue-as à sua mãe. Diga aos seus pais que a partir de hoje você é um verdadeiro cristão e que sua Religião é Jesus Cristo. Diga também que este velho professor será sempre um humilde servo de sua família.
Balbino foi para casa pensativo, enquanto jogava as moedas para o ar que tilintavam ao cair de volta em suas mãos. Quando chegou em casa viu sua mãe ajoelhada diante da cruz e pode ouvir em suas preces um pedido para que não lhes faltassem o trabalho e o pão, pois já estavam perdendo a Fé. Balbino ajoelhou-se ao lado dela, secou suas lágrimas, deu-lhe as moedas de ouro, um beijo e um sorriso. Em seguida, ainda abraçado a ela, olhou para o pequenino crucifixo na parede e disse:
— Senhor, já temos o trabalho e o pão, só pedimos que nunca nos falte a Fé.
MARCANTE, Alexandre.
In Balbino Di Surro - Coração de Pedra / Casa de Papel.
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