O Duelo Final
No porão, esperávamos o Águia. Atrasado, como sempre. Mas viria, cedo ou tarde. Viria com o nariz erguido, a roupa surrada e a tatuagem no braço que lhe valera o apelido. Iniciamos sem ele. Raimundo Sanchez estava com aquele casaco que o deixava ainda mais gordo, e foi desenrolando devagar a planta, desenhada em papel de embrulho. Olhamos em direção à porta: ninguém nos observava. O esquema todo abriu-se ali, clareira em mato de silêncio. Domingues, o manco, questionava os riscos de cada etapa. Quando mostrávamos a ele a fronte encurvada do seu medo, tentava se defender:
— Meu pai dizia que alguém precisa ser o advogado do diabo.
Emiliano chegou logo depois, e pôs uma espada militar sobre a mesa. Um por um de nós a experimentou, como se ensaiássemos um duelo imaginário e futuro. Emiliano a tomou de volta e outra vez colocou-a na mesa, desta vez sobre a planta. Em seguida, ergueu os olhos desafiadores a Raimundo Sanchez, que encarou-o por um tempo e depois resolveu tirar a espada dali, dizendo:
— Não é comigo a tua raiva.
O gordo Raimundo tinha razão. Conhecíamos as provocações do Águia com o Emiliano. De tempo em tempo, Emiliano tentava descontar em alguém. Mas pressentíamos, para algum quando, o duelo final entre os dois. As rivalidades vinham de questões muito antigas, a começar por Maria Rita Herrera, prima de Emiliano. Depois que se estranharam da primeira vez, tudo passou a ser motivo para azedar na caixa dos rancores.
Quando o Águia chegou, falamos sobre o plano. Ele reclamou da umidade e da escuridão. Algum de nós disse que o escuro era por ele estar chegando da rua, e logo acostumaria as vistas.
— Não te perguntei.
O Águia era assim. Em muitos momentos, quase intratável. Estava no bando porque sempre arranjava armamento pesado. O Águia olhou com desdém para a espada de Emiliano e jogou-a no chão. Domingues riu quieto um riso nervoso. O gordo Raimundo ficou impassível, parecia ter a respiração trancada. Depois, a vista de Emiliano que estava fixa na espada foi se erguendo até bater com a cara debochada do Águia. Os dois se olharam com toda a raiva que cabe no redondo dos olhos.
Prevíamos o pior, e o pior às vezes pode ser mais cruel do que se pode pensá-lo. Corpos a rolar pelo chão batido, frontes retorcidas de dor e ódio, adagas terceando na cara um vento rubro. Entre nós, um cheiro de sangue antevisto. No corpo da umidade, naquele porão de sombra e entulhos, escorria o suor nas paredes mal rebocadas e no rosto de Emiliano. O Águia foi devagar até a espada e pisou nela.
— Vai encarar?
Emiliano desta vez não baixou a cabeça nem desviou o olhar. O gordo Raimundo engoliu a expectativa, imóvel como todos nós. E assim ficamos por instantes intermináveis, até o manco Domingues arriscar algumas frases. Disse que seria bom irmos ao trabalho, rever a seqüência do esquema, o plano não comportaria desavenças e coisas assim. Com mais uma fala do gordo Raimundo, fomos sentando. Emiliano e o Águia sentaram por último, olhos espetados um no outro. Sabíamos: enquanto os dois não resolvessem aquele problema, de tempo em tempo teríamos o duelo pressentido. Os dois também sabiam, e num repente tornaram a se levantar. O Duelo Final. Olhares na paralela do grito, horizontais e definitivos. A cara da morte nunca esteve tão clara quanto desta vez.
Nisso, invade nosso esconderijo dona Etelvina, vinda não se sabe de onde. Pega a espada de plástico, bate na bunda do Águia, faz ameaças e manda todo mundo pra casa estudar matemática.