Nas bandas esquecidas por Deus (ou, pai é homem bom)

Pode?

Pode mesmo? Tá certo, certo de certeza firme, certeza de raiz funda que vai chover muito, muito tanto, que vai achar gente achando que Deus resolveu findar tudo novamente, como já feis um dia, tempo faz, tempo muito passado, quase esquecido. Tempo que padre Rufino disse na igreja no batizado de Maria, filha mais nova de José?

Sei não. Tenho desconfiança, pouca, mas tenho, que não vem chuva não. Tenho quase certeza sua, só que de lado trocado, que chuva que está viajando, assim, no caminho caminhado, não vem pra essas bandas. Aqui é longe muito, é demais que longe, tão esquecido, que as veis penso que Deus, quando resolveu fazer o mundo, esqueceu no papel rabiscado, essas bandas. Não acho que esqueceu porque quis, não, não acho que foi maldade. Era tanta coisa pra colocar, tanta floresta, tanto pássaro, mar, peixe, tanta maravilha, que ficou no rabisco essas bandas.

Pai disse, talvez por dizer, assim, sem querer, sem pensar nas palavra, sem maldizer de Deus, que Deus não esqueceu não. Pai disse, mãe brigou com ele, que esse canto de mundo, longe mesmo, sem terra boa de plantar, sem água pra matar sede dos bicho, disse pai, mãe e vó brigaram muito com ele, que Deus deixou aqui pro Diabo cuidar. Mãe brigou muito com pai. Vó saiu falando suas coisa de xingo. Tudo ficou quieto. Pai falou nada mais não. Pai também saiu, saiu quieto, não resmungou pra vó, nem pra mãe. Pai é homem bom. Homem que ajuda mais gente que prefeito e governador. Pai não gosta de vê mãe e vó braba, então fica quieto, no silêncio silencioso dele, não fala nada, se fala, fala com a mente, só ele escuta, ninguém mais, só escuta, no silêncio silencioso do pensamento. Pai sai saindo, homem bom demais é o pai. Mãe e vó falam muito do pai. Mãe e vó e mais Deolinda, irmão de vó, também fala muito de pai. Fala mal, não. Falam que pai é homem bom, ajuda as pessoa, mais que prefeito e governador. Vó Deolinda, irmã de Vó Olinda, vó Deolinda também é vó, então todos chamam de vó, igual vó legítima, mãe de mãe. Vó Deolinda, também fala muito de pai. Que pai é homem de coração grande, de coração do tamanho do mundo, ela ri, porque diz que não sabe o tamanho do mundo, só sabe que é grande, então, coração de pai, que é grande também , é igual de grande o mundo. Mãe e vó Olinda, dia desses passado, lá na cozinha, fazendo tapioca e milho de pamonha, falavam de pai. Que pai , noite escura por demais chuvosa e escura, pai saiu , sem proteção, pra socorrer seu Fidelis. Seu Fidelis, homem mui gravoso no falar e por demais de honesto, seu Fildelis, veio falar seu Dito, amigo antigo de pai e seu Fildelis, seu Dito veio dizer que seu Fildelis não passava bem. Pai nem pensou mais nada. Saiu na noite escura e chuvosa pra ajudar o amigo. Mãe sempre diz que pai não pensa nem segundo pra ajudar. Pai nem pensa, vai e ajuda, mãe sempre diz. Pai é homem bom, ô se é.

O cachorro Costela morreu. Morreu de picada de cobra. Pai e mãe choraram que muito. Mãe chorou mais que pai. Vô Olinda e Deolinda, também choraram. Pai veio com Costela ainda bem pequeno. Pai trouxe no bornal. Mãe gostou demais do Costela. No primeiro dia, Mãe fez cama de palha de milho. Costela dormiu tanto que tanto, que mãe foi vê se estava vivo; todos riram. Mãe riu junto. Vó Olinda lembrou do Zezeu, o cavalo malhado. Vó também lembrou quando o Zezeu chegou. Vô Belmiro que trouxe, foi paga de serviço feito na plantação do seu Matoso, pai do seu Fildelis. Zezeu também morreu. Não foi cobra, não. Morreu de tempo esticado, disse Vó, pra dizer que morreu de viver muito, morreu de velho. Vó disse que também chorou, lembrou que mãe, menina pequena quando Zezeu morreu, chorou por demais por três dias. Mãe lembrou riu baixinho. Agora choro de novo, Costela, coitadinho, cobra picou, morreu Costela, coitadinho.

Irmã Irma e irmãos Pedro e Rufino, igual nome do Padre, não sabem, mas Vó Olinda vai fazer bodas. Mãe explicou, que bodas é igual aniversário, mas não falou pra eles porque são língua solta. Pai, mãe e vó Deolinda, estão de combinação com o padre e com o prefeito, de fazerem festa pra vó. É segredo de não falar nada. Mãe disse que vó não pode saber. Vai ser uma oferta de agradecimento pra vó. Vó é pessoa boa, disse mãe. Pai também, lasquei eu dizer. Pai e mãe, riram. Não falou pros outros porque sao língua solta; só eu sei, disse mãe e pai. Fiquei contente, não sou língua solta, disse pai.

Pois vai. Pois vai sim. Zeca e Lúcia, tios visitantes das bandas muito longe estavam com vó e pai a conversar. Tio Zeca mais falava.

Falava tanto de tanto, que pai e mãe só ouviam. Ouviam bem préstimos, sem piscar olhos. Mãe, as veis, buliçava o terço, pai levava à boca caneca de alumio e tascava um gole de café. Todos ouviam tio Zeca que falava parecendo que era algo muito do sério, não falava alto, não. Falava silencioso, quase uma reza, baixinho, baixinho.

Tia Lúcia, mulher e prima do tio Zeca, trouxe presentes. Pros meninos carrinhos e uma bola feita de couro, bola muito que bonita. Pedro e Rufino nem quiserem ver os carrinhos, correram ligeiro pro terreiro pra jogar de bola, eu fui também, mas só despois de ver o carrinho. As meninas, Laurinha e Dorinha, ganharam bonecas de pano, mais umas panelas de plástico. Dorinha não gostou das panelas, fez uma cara, mas agradeceu com sorriso; mãe e pai sempre ensinou ser agradecido com as pessoas. Pra todos, meninos e meninas, tia Lúcia trouxe roupas, roupas demais de bonitas. Laurinha ficou vermelha de tão bonita com o vestido florido de rendas; vestido com flores branca e amarela e pontinhas de azul. Pai, mãe e vó Olinda e vó Deolinda, também ganharam roupas. Tio Zeca e tia Lúcia sempre traz roupa quando vem de visita. Tio Zeca é irmão de mãe, homem por demais do gosto de pai. Ainda moço foi trabalhar na cidade pras bandas de São Paulo, sempre ouvi pai responder quando alguém perguntava. Homem muito trabalhador, pai e mãe e vó Olinda, sempre dizia.

Laurinha não acordou bem. Vó Deolinda disse que não carece se preocupar, Laurinha vai ficar boa depois que tomou chá de plantas que vó deu. Pai não se sossega, fica num rebuliço de preocupação quando alguém não está bem; inté com bicho ele fica assim. Pai se preocupa demais, mãe fala toda veis que pai fica pra lá e pra cá.

Vó Deolinda tinta razão, Laurinha acordou novinha em folha, um bezerro que acabou de nascer, forte e corado, disse pai, feliz, de ver Laurinha boa. Mãe ficou feliz de ver pai rindo com travessura do gato puxando renda da toalha de mesa.

Tio Zeca e tia Lúcia voltaram pra cidade. Vó Olinda foi junto. Mãe e pai choraram que muito. Vó Deolinda também chorou. Vó Olinda disse que não ia chorar, mas mãe disse que ela com os zóio bem com muita lágrimas, então, vó Olinda também chorou. Dorinha segurou Laurinha pra não correr atrás da vó Olinda. Pai disse que vó ia pra cidade porque lá tinha um bom médico que ia olhar a saúde dela. Pai chorou de saudade antecipada disse quando Rufino perguntou.

Tio Zeca mais tia Lúcia e vó Olinda sumiram na poeira atrás do carro. No céu as escuras nuvens fez os pássaros sumirem nos ninhos. No curral, o cavalo malhado relincha. As plantas, despois das primeiras gotas de chuva há muito tempo esperada, formam um verde tão bonito, que pai inte chorou de feliz. Pai inté falou pra mãe, e fez sinal da cruz, que se Deus tinha esquecido aquelas bandas no rabisco do papel, lembrou. Mãe disse, e fez sinal também, que Deus não esquece nada, não. O homem é que esquece de Deus, isso é que é, pois sim, que é. Pai falou nada , ficou no silêncio silencioso. Se disse alguma coisa, falou em pensamento, só ele falou, só ele escutou.

O vento sopra forte, inté com tanta força que as árvores quase que chegam no chão.

Chuva forte vem. Será que Deus vai finda tudo igual já feis outra veis. Que Deus cuida de traze vó loguinho, saudade de vó, Laurinha disse. Dorinha, tráz Laurinha pra perto e com as mãos no ombro de Rufino, silêncio silencioso todos ficaram, chuva cai.