Escombros em memória

Foi de noite. Uma noite fria e sem possibilidade de saber se a casa estava aberta. Deserta, ao menos na aparência, a pequena morada escondida entre escombros de uma época outrora cheia de opulência, de uma época de grandes espaços e salões e seus móveis em madeira talhada. A pequena casa guardava, nas paredes de tintas velhas e desgastadas, memórias nos quadros abandonados ou esquecidos. Quem sabe, quem ousa dizer, ao menos como possibilidades, quem se arrisca um palpite, quem saberá, diz a corretora sem escrúpulos, porque negócio é negócio. Quem saberá, continua a corretora, que nessas paredes, nesses quadros, restam um pouco do que foi, um pouco de memória diluída em cada vão do piso de madeira. Restam, quem sabe, resquícios de momentos inesquecíveis , e que, em algum lugar inacessível pela razão, restam guardados fragmentos que só o ar, o pó e mesmo os percevejos e cupins, até eles, vai se saber, possam ser testemunhas de um tempo passado que persiste existir. É memória, somente lembranças grudadas em cada tecitura das paredes, do assoalho, do velho lustre que balança como se, num esforço quase humano, tentasse resistir para esconder que ficou velho e perdeu o viço da juventude. Duas rosas soltas num jardim abandonado, impedem que o jardim seja esquecido. Memórias, só memórias. Igualmente a pequena morada, ou o que restou de uma época farta e cheia de esplendor, aquelas paredes não deixam esquecer. Foi, como tudo que vai. Leva consigo o presente, o passado e deixa para o futuro, sem oferta de negociação, possibilidades. É nas possibilidades, porque possibilidades, que tudo pode acontecer. É nesse instante, na casa visitada por uma corretora sedenta de vendas e comissões, sem memória, porque negócio é negócio, que a corretora não está disposta às lamúrias dos saudosistas. Ela não se curva para essas filigranas saudosistas, não.

A casa, solitária numa existência que agora se negocia, calada, a casa, sem reação, sem qualquer possibilidade de reação, a casa, em meio aos escombros, como se buscasse, como um náufrago em alto mar, nas paredes, e quadros, e lustre, e assoalho, como se buscasse a boia salvadora.

Batido o martelo, a casa não resiste. No outro dia, as maquinas iniciam seu trabalho.