Cúmplices

Carina fechou a mala e largou sobre a cama. Friamente, ela virou em direção a Carlos e disparou.

- Está tudo aí dentro. Pode levar.

- Você tem certeza?

- Eu não vou me medir com nenhuma rapariga. Pode ir. Volte quando enjoar dela.

- Você sabe que não precisa ser assim.

- Claro que não. Mas você é homem, não é? Tem que se meter com uma e com outra como o seu pai e o seu avô.

- Por que o seu pai era um santo, não é?

- NÃO ABRA A BOCA PRA FALAR DO MEU PAI. - Carina levantou a voz, apontando o dedo na direção de Carlos, como se fosse uma arma carregada.

- Tudo bem. Tudo bem.

- Meu pai não era perfeito, mas minha mãe nunca derramou uma lágrima por causa dele.

- Tua mãe é incapaz de chorar de maneira geral. O casamento pra ela era só uma conveniência.

- E pra você é o que?

- O casamento é o que nós fazemos dele.

- Então vá logo. Pegue a mala e corra pros braços da sua puta.

- Por que isso agora?

- Preciso de silêncio.

- Tudo bem.

Carlos andou até a cama e pegou a mala. Pelo peso, avaliou que deveria contar três ou quatro mudas de roupa. Virou de costas e saiu do apartamento.

atrás de si restou apenas silêncio.

2

Carlos tinha acabado a primeira garrafa de cerveja quando Lilian parou com o carro na frente do bar.

Ele pagou ao garçom e entrou no carro.

- O que aconteceu dessa vez? - Lilian perguntou ao ver a mala nas mãos dele.

- O de sempre.

Lilian abriu um sorriso cínico e acelerou o carro.

- Qualquer dia desses é capaz dela te dar uma surra.

- Não faz o tipo dela.

- Não é o que parece.

- Você tem uma impressão errada.

- Todas as amantes têm. - Lilian comentou, depois de parar o carro em um sinal vermelho.

Rapidamente ela baixou o vidro, acendeu um cigarro e deu um trago.

- Por que você mantém essa situação? - Ela perguntou, depois de soltar a fumaça pra fora.

- Ela nunca me pediu o divórcio.

- E você está satisfeito com esse casamento?

- Quem disse que casamento tem a ver com satisfação pessoal?

- Talvez antigamente não. Mas hoje em dia não tem por que se manter um casamento infeliz.

- Existem várias nuances quando se olha pra isso. Eu preciso dela e ela precisa de mim.

Lilian virou os olhos para Carlos e ficou encarando até ser interrompida pelas buzinas dos carros parados atrás.

Ela acelerou e permaneceu calada até o fim da viagem.

Quando estacionou o carro em frente à sua casa, ela desceu e bateu a porta.

Carlos desceu logo depois e seguiu atrás dela.

Quando entrou em casa, Lilian finalmente quebrou o silêncio.

- Vai ficar por quanto tempo?

- Por uns dias. Pode ser?

- Pode ficar o quanto quiser.

Carlos deixou a mala num canto e se sentou no sofá como se tivesse finalmente sido derrotado pelo cansaço.

Lilian entrou num quarto e voltou depois de alguns minutos com usando um vestido florido já um pouco surrado pelo uso. De alguma forma pareceu uma pessoa totalmente diferente da que ele tinha encontrado minutos antes.

- Quer uma cerveja, meu amor?

- Aceito.

- Se quiser tomar um banho, tem toalhas limpas em cima da cama.

- Certo. Depois da cerveja.

Lilian abriu um sorriso e saltitou em direção à cozinha.

Carlos tirou os sapatos e se espreguiçou no sofá.

Lilian voltou com um copo e uma garrafa de cerveja gelada, entregou para Carlos e se sentou na poltrona bem na frente dele.

Carlos tomou um gole da cerveja e murmurou.

- Você nunca pensou em se casar?

- Só quando eu era mais nova.

- Agora não?

- Não acho que eu sou feita para o casamento.

- De onde você tirou essa conclusão.

- De algo que meu pai me disse.

- Sério?

- É uma longa história.

- Tudo bem. Eu tenho todo tempo do mundo.

Lilian sorriu e ajeitou os cabelos.

- Você nunca se interessou por saber da minha vida.

- Agora estou interessado.

- Certo.

Carlos tomou mais um gole de cerveja e Lilian acendeu um cigarro.

- Eu nasci e fui criada no interior. Meu pai e minha mãe se casaram bem jovens, num acerto de família. Coisa que ainda era comum naquele tempo. Minha mãe nunca amou o meu pai. E acredito que não teria amado nenhum homem com quem se casasse. O único homem que ela amou morreu pendurado numa cruz. Ela vivia pra a religião, e o casamento era apenas uma obrigação mundana que tinha que cumprir. Depois que eu nasci, meus pais nunca mais dormiram juntos. Se é que você me entende.

- Entendo bem.

- Pois então. Eles chegaram a um tipo de acordo, e meu pai podia buscar na rua o que não tinha em casa. Mas ele sempre foi muito discreto e respeitoso com isso, a ponto de eu só perceber depois dos meus doze anos.

- Como foi isso?

- Ah. Às vezes meu pai voltava pra casa com alguns arranhões e eu sempre perguntava o que tinha acontecido. E ele falava que uma gata o tinha arranhado. Só depois de uma certa idade foi que eu percebi de que tipo de gata se tratava.

- E sua mãe não se incomodava?

- Desde que ele fosse pra a missa com ela todo o domingo, e a história não caísse na boca dos vizinhos, não fazia diferença para a minha mãe.

- Entendi.

- Mas indo ao ponto que você perguntou. Quando minha mãe faleceu, eu vim pro Recife morar com minhas tias. Uns três anos depois meu pai veio me visitar e me contou que iria se casar. Eu perguntei se ele iria se casar com a “dona gata”, que era como eu tinha me acostumado a chamar a amante dele, mas meu pai balançou a cabeça e disse que era outra com pessoa. Quando perguntei por que não a “dona gata”. Ele sorriu e falou. “Minha filha, certas mulheres não se encaixam bem na figura de esposa. O casamento não é pra todo mundo.”

- E ele deixou a amante depois do novo casamento?

- Não. “Dona gata” ficou no mesmo lugar que esteve sempre. Muito satisfeita com isso, inclusive.

- E a nova esposa?

- Pelo que sei ela finge que não sabe de nada.

- Parece conveniente.

- Sim. Cada qual no seu papel.

Carlos terminou a cerveja e se levantou.

- Preciso de um banho.

- Quer companhia?

- Não. Mas talvez depois.

Lilian sorriu e os dois seguiram para o quarto.

Quando saiu do Banheiro, Carlos encontrou Lilian nua sobre a cama.

Ele se enxugou e se deitou ao lado dela.

Depois de se beijarem por alguns instantes, Lilian murmurou.

- Me conta algo que você nunca falou pra ninguém.

- Por que isso?

- Eu entendo que é a cumplicidade que mantém duas pessoas juntas. Quero ser sua cúmplice em algo.

Carlos sentou-se na cama e ficou alguns instantes pensando. Depois falou num tom sério que Lilian nunca tinha visto vindo dele.

- Eu sou o meu irmão.

- Como assim?

- Lembra que eu te falei que eu tinha um irmão gêmeo que faleceu quando éramos crianças.

- Sim. Lembro.

- Pois então. Eu sou o meu irmão.

- Não estou entendendo, meu amor.

- Então. Quando os meus pais desquitaram, nós tínhamos nove anos. Eu e meu irmão fomos passar as primeiras férias na praia com o meu pai. Meu pai tinha um certo problema com bebida, e sofremos um acidente de carro. Meu irmão faleceu e meu pai ficou em coma por algumas semanas. Apesar do estado de choque, eu sofri apenas alguns arranhões e uma pancada na cabeça.

- E aí?

- Quando acordei da sedação, minha mãe estava na beira da cama de hospital, e eu percebi que eles não sabiam qual dos dois irmãos havia falecido. Ela chorava na beira da cama e quando viu que eu tinha acordado, me chamou pelo nome do meu irmão. Eu sempre senti uma certa predileção dela por ele. Então daquele momento em diante eu deixei de ser Ricardo e passei a ser Carlos.

Lilian tinha lágrimas nos olhos quando Carlos terminou de falar.

- Isso é sério?

- É isso ou eu estou alucinando desde que acordei do acidente.

- Ninguém nunca desconfiou?

- Nunca.

- Carina sabe disso?

- Não. Ela nunca teria entendido as minhas razões.

- Sinto muito meu amor.

- Pelo que?

- Que você tenha guardado isso dentro de você por tanto tempo.

- Está tudo bem. Precisei morrer pra encontrar o amor da minha mãe. Talvez em outras vidas eu encontre o resto.

Carlos se calou e se aninhou no peito de Lilian, que o prendeu entre os seus braços, como uma mãe que acalenta um filho.

Em silêncio, Carlos derramou uma lágrima que escorreu pelos seios dela e desapareceu em seu umbigo.

Com um suspiro, ele fechou os olhos, derrotado pelo cansaço,

esperando talvez, se perder entre as quatro paredes cúmplices daquele abraço.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 07/03/2023
Reeditado em 07/03/2023
Código do texto: T7734711
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