O naufrágio
(Nota do autor: esta é uma obra totalmente ficcional, portanto qualquer semelhança com eventos e pessoas reais terá sido o que costumo chamar de coincidente coincidência. "É verdade este bilhete".)
De relativa distância, o Capitão olhava pesaroso o soçobrar do enorme navio. Jamais, em seus quase sessenta e oito anos, vira uma embarcação afundar de maneira tão pressurosa sem que a bandeira da guerra estivesse hasteada. Embora seja incorreto afirmar que não houve guerra de fato. Esta, no entanto, ocorreu de maneira dissimulada, sub-reptícia, de modo que parte significativa da tripulação, anestesiada pelas festas e pelo rum, nada soube a respeito disso. Uma lágrima furtiva rolou em sua face de aparência cansada enquanto lembrava do estado em que encontrou o navio quando o assumiu há alguns anos. Piratas o haviam saqueado e danificado tanto a estrutura interna quanto a externa deixando-o às portas de ir a pique. Havia um enorme rombo no teto, e ratos nédios eram vistos por todos os lados: na despensa, na sala de máquinas, ao redor do tanque de combustível e inclusive na cabine do comandante da embarcação. O que se via era um caos generalizado...
Tão logo, porém, assumiu o comando cercou-se daqueles que tinham competência e principiou o reparo na estrutura interna. Todos estavam seguros de que não seria tarefa fácil, mas de igual maneira estavam certos de que podiam lograr a completa restauração, uma vez que tudo estivesse funcionando da maneira correta. Durante a análise dos danos descobriu-se que, em gestões antigas, parte significativa do granjeio fora enviada para embarcações vizinhas sob a promessa de pagamentos que jamais foram liquidados. Novos envios foram então cancelados, permitindo que o Tesouro aumentasse ao invés de sofrer decréscimo. Os bobos, contratados para entreter a tripulação deixando-a idiotada, entorpecida e sem forças para demandar melhor uso daquilo que era fruto de seu árduo trabalho, foram dispensados. Descobriu-se posteriormente que os bobos de bobos nada tinham, pois, com esforço mínimo, subtraíam verdadeiras fortunas do Tesouro. Era uma verdadeira farra do ouro. E uma vez que isso lhes fora tirado, os bobos uniram-se contra o Capitão, pois odiavam-no com todas as forças.
Um sem número de outros problemas apareceram pelo caminho, uma vez que parte enorme da tripulação era de marinheiros ligados às gestões corruptas que deixaram o navio naquele estado lastimável. Eles faziam de tudo para sabotar a embarcação enquanto o Capitão esforçava-se com sua equipe para salvá-la. A batalha era diária e espartana. Os opositores, que na verdade não tinham em si qualquer apreço pelo navio, estavam em todos os lugares: na cozinha, no convés, na proa, na popa e inclusive entre aqueles que se assentavam dissimuladamente à mesa com o Capitão. Ainda assim, apesar da trupe de malfeitores espalhada estrategicamente pela embarcação, era notável a melhora que dia a dia ocorria. Até mesmo na sala de máquinas, lugar mais quente do navio, onde os tripulantes tinham escassez de água desde tempos imemoriais, passou a ter água abundante graças à boa vontade do Capitão e sua competente equipe.
Mas se o trabalho já era árduo, à vista do elevado número de opositores e suas posições privilegiadas, as coisas ficariam ainda mais difíceis. No segundo mês, após o Capitão completar um ano à frente do navio, um tipo de pestilência assaltou a embarcação. A princípio apenas um dos tripulantes apresentava os sintomas dessa nova peste, mas havia notícias de que outros navios já contavam com elevado número de infectados. Por essa razão, o Capitão determinou uma interdição na embarcação, o que deixou os opositores enfurecidos. Era a época do ano em que os tripulantes comemoram sua mais aguardada festividade anual. A festa, uma versão moderna das antigas celebrações a Baco, tem ano após ano o mesmo propósito: entorpecer ainda mais os tripulantes e permitir que os chefes de setores nadem no ouro que chega ao navio, sobretudo vindo de tripulantes abastados de outras embarcações. O Diário Global, um decadente veículo de informação de bordo, entrou em desespero à vista da determinação. Às portas da morte, o grupo carecia desesperadamente do ouro que ganharia realizando a cobertura da festa. Então, no intuito de manipular a opinião dos tripulantes e obrigar o Capitão a rever a determinação de interdição, o Dr. Vareta, médico de aparência cadavérica ligado ao Diário Global, subiu no lugar mais alto do mastro e discursou nos seguintes termos:
— Amigos da embarcação! Vós todos me conheceis e sabeis que sou um homem que pratica a medicina há muito tempo! Hoje subo neste mastro para, em nome da ciência, assegurar-vos que esta nova peste não representa o perigo alardeado! Tendo em vista o clima quente do nosso querido navio, considero correto afirmar que de cada cem pessoas, oitenta delas não terão sintomas maiores que os de um simples resfriadinho. Por isso estejam certos de que não há nada acontecendo nesta embarcação que justifique qualquer mudança em nossos hábitos!
Os tripulantes, sobretudo os mais pobres e os que ainda reputavam que o Diário Global era digno de alguma confiança, receberam de bom grado a notícia. Aquelas palavras eram tudo o que queriam ouvir. Os opositores, é claro, fizeram coro com o tal médico. Seus verdadeiros interesses não passavam pelo bem estar e saúde do povo, mas em usar toda e qualquer possibilidade para aumentar o número de moedas de ouro em seus próprios baús. E foi assim que o decreto de interdição acabou não se cumprindo e a festividade ocorreu normalmente, como se nada estivesse acontecendo no mundo. Tão logo, porém, a festa de Baco chegou ao fim, já no dia seguinte o Diário Global passou a aterrorizar os tripulantes com notícias sobre a peste. Menos de vinte e quatro horas se havia passado desde o encerramento da festividade e o Diário não falava em outra coisa, senão no elevado número de infectados. Isso, obviamente, sem estabelecer qualquer ligação com o evento recente. Os opositores, que jamais tiveram qualquer preocupação genuína com os tripulantes, viram nisso ocasião oportuna para voltar a saquear o Tesouro e ainda culpar o Capitão por qualquer coisa que ocorresse em decorrência da peste. Ainda que o mesmo estivesse acontecendo em todos os navios ao redor do mundo. Nessa ocasião, parte significativa do Tesouro foi parar exatamente nas mãos daqueles que, apesar de exercerem cargos importantes, nada tinham de diferente dos salteadores. Barba Negra os teria feito caminhar sobre a prancha no local mais infestado de tubarões que encontrasse pelos sete mares. Porém apenas um ou dois dos responsáveis perderam seus cargos. O ouro roubado jamais foi recuperado, e os aparatos supostamente adquiridos nunca apareceram.
Na medida em que a peste se espalhava entre a tripulação, os opositores tiveram uma ideia. Com a ajuda do Diário Global, passaram a divulgar diariamente o número de pessoas que morriam no navio. A partir de então, atribuiu-se à peste todos os óbitos que ocorriam na embarcação. Certo tripulante morreu após cair acidentalmente no convés e bater violentamente a cabeça. Mas o registro de sua morte informava que ele havia sido mais uma vítima fatal da nova pestilência. Dois rivais se enfrentaram num combate de espadas e um deles foi mortalmente ferido indo a óbito três quartos de hora depois. Ele também foi registrado como vítima da peste. Um sem número de casos semelhantes ocorreram, porém nem uma linha a respeito disso foi publicada. A culpa pelas mortes, diziam em coro os opositores, era do Capitão. Os Bobos, o Diário Global e todos os que amavam o ouro fácil que outrora obtinham do Tesouro, fingiram desconhecer o fato de que trezentos talentos de ouro foram, pelo Capitão, destinados ao cuidado dos tripulantes. Contudo isso, no entanto, o navio seguia prosperando. O responsável pelo Tesouro era o mais competente que o navio já tivera, e o ouro, antes subtraído pelos antigos cleptocratas, passou a sobejar. Por essa razão, parte dele pôde ser distribuído entre os tripulantes mais necessitados. Mas os opositores, que agora se haviam tornado verdadeiros adversários, tanto do Capitão, quanto da tripulação que o tinha em grande estima, esforçavam-se o quanto podiam na tarefa de furar o casco do navio. Todos sonhavam em tornar a saquear o Tesouro e cada um deles estava disposto a fazer qualquer coisa para que isso efetivamente ocorresse. Qualquer coisa mesmo…
Ao chegar o tempo em que a tripulação decidiria, através de urnas de carvalho, espalhadas nos diversos setores da enorme embarcação, se manteriam o Capitão ou o substituiriam, muita coisa tinha acontecido. O navio figurava entre os que mais haviam prosperado no mundo apesar da pestilência, e o responsável pelas finanças tornara-se um homem de renome, muito respeitado; os crimes entre a tripulação foram reduzidos a números que há muito não se viam, e o Capitão era ovacionado nos quatro cantos do navio. Mas nem todas as notícias eram boas. Desesperados com a incontestável popularidade do Capitão, algo jamais visto na história da embarcação, e o fato de que não havia quem pudesse vencê-lo na disputa, os adversários tiveram a mais insana das ideias. Desvestidos de qualquer recato ou moralidade, eles decidiram libertar Barril de rum, um criminoso que no passado fora comandante do navio. Porém, Barril de rum tornou-se chefe de um bando que saqueou todos os compartimentos da embarcação, deixando-a numa situação que ultrapassa a definição de caos. E foi assim que um prisioneiro, mentiroso contumaz e velha raposa do mar, foi posto em liberdade para disputar com o Capitão o comando da embarcação. Isso, obviamente, levou o bom nome do navio a tornar-se motivo de troça entre os tripulantes de outras embarcações. Era-lhes impossível compreender como algo dessa natureza tornara-se possível. Eles, porém, não sabiam que os adversários estavam dispostos a qualquer coisa para levar o navio de volta à antiga rota. Qualquer coisa mesmo...
Não obstante, uma vez libertado da prisão, o criminoso não podia sequer andar pelo convés sem que fosse hostilizado pelos tripulantes. Reunia-se tão somente com seu diminuto grupo de seguidores, entre os quais figuravam as pessoas mais humildes e iletradas, facilmente manipuláveis; os desinformados; os descendentes dos piratas e todos os que anelavam pela volta do saque ao Tesouro. Para cada um deles, no entanto, era evidente que o prisioneiro não tinha a mínima chance de vencer pelas vias da licitude. Porém os mais sagazes entre eles sabiam que os adversários mais influentes do Capitão e do navio estavam dispostos a fazer qualquer coisa para alcançarem seus objetivos. Qualquer coisa mesmo… O Diário Global passou a noticiar diariamente uma alegada predileção dos tripulantes pelo desencarcerado. Ao mesmo tempo afirmava existir uma suposta rejeição ao Capitão, conquanto todas as evidências apontassem exatamente para o oposto disso. Quando arguidos a respeito da veracidade das notícias, eles asseveravam que a informação tinha como fonte um grupo idôneo que realizava pesquisas nos compartimentos do navio. Omitiam, porém, que as alegadas pesquisas eram realizadas na porta da prisão, entre os familiares dos salteadores encarcerados. Mas a essa altura, apenas uma fração ínfima de tripulantes ainda dava ouvidos ao que dizia o Diário Global. A boa reputação da qual outrora o tendencioso periódico gozara, agora jazia no fundo do oceano, acorrentada a uma grande âncora. A maior parte dos tripulantes tinha aprendido a trocar informação entre si e já não era tão fácil manipulá-los com dados fraudulentos. Mas os adversários tinham um plano. Enquanto Barril de rum, o criminoso aspirante a capitão, continuava sendo hostilizado, o Diário fabricava notícias a seu favor dia sim, outro também. Ao mesmo tempo buscava-se, por todos os meios, atribuir algum tipo de inadequação ao Capitão, ainda que a maior parte das alegações beirassem ao ridículo. Certa manhã, a primeira página do periódico moribundo estampava a frase: "Capitão come dourado assado sem lavar as mãos". O escritor do referido artigo contava que uma suposta "fonte segura ligada ao Capitão" relatara-lhe que este certa vez comera posta de dourado sem antes lavar as mãos. Curiosamente, ao lado havia uma foto do desencarcerado fazendo a assepsia das mãos numa bacia. Mas o resultado disso é que os tripulantes detestavam cada vez mais o Diário e entregavam-se a comentários chistosos acerca daquele tipo de matéria.
Os dias se passaram e finalmente chegou a época em que os tripulantes escolheriam efetivamente quem seria o responsável pelo navio nos próximos anos. Era sabido por todos que não havia a menor chance de uma vitória do criminoso. Nesse tempo, um conglomerado com as almas mais vis e desprezíveis do navio tinha se juntado a ele e pairavam no ar muitas suspeitas acerca do Homem da Contagem, o responsável por apurar os votos e revelar o vencedor do pleito. Este, apesar de sua posição exigir total imparcialidade, agia despudoradamente em favor de Barril de rum e sua trupe de malfeitores. Na verdade, desde a soltura do criminoso e a permissão para que este disputasse o cargo mais alto do navio, muita coisa estranha passou a ocorrer na grande embarcação. O direito passou a ser vilipendiado diariamente, opositores do descondenado passaram a ser perseguidos e o navio inteiro passou a viver em um verdadeiro estado de exceção. Os tripulantes assistiram aquilo em completo estado de perplexidade, sem entender como permitiu-se que as coisas chegassem àquele ponto. A esperança era que os homens da Sala de Armas, os responsáveis por promover a garantia da lei e da ordem na embarcação, interviessem caso o Homem da Contagem agisse de maneira ainda mais suspeita e ficasse evidente alguma fraude. O Capitão também confiava nos homens da Sala de Armas...
Finalmente chegou o dia da disputa. Como já era esperado, um sem número de denúncias foram feitas por tripulantes nos quatro cantos do navio. Todas indicavam alguma anormalidade que favorecia o criminoso Barril de rum. Porém o Homem da Contagem ignorava as queixas dizendo que o método era seguro e que desconfiar dele seria doravante considerado crime. Mas dois dias depois descobriu-se que, em um número expressivo das urnas de carvalho, só havia votos para o descondenado, embora a maior parte dos tripulantes daquele setor declarasse abertamente que tinha votado no Capitão. E o Homem da contagem seguia ignorando as denúncias até, enfim, para a surpresa de ninguém, declarar que Barril de rum havia sido escolhido pelos tripulantes como o novo comandante do navio...
Revoltados com a evidente fraude, os tripulantes saíram de seus aposentos e puseram-se diante da Sala de Armas, solicitando aos Homens Armados que verificassem as urnas para confirmar a lisura do decorrido pleito. Mas os tripulantes desconheciam o fato de que os homens que comandavam a Sala de Armas tinham vendido suas almas a Barril de rum. Para esses homens, que um dia juraram defender o navio mesmo à custa de suas próprias vidas, só o que importava na realidade era o ouro e as regalias que gozariam ao apoiarem o malfeitor. Os tripulantes ainda permaneceram por muitos dias diante da Sala de Armas, todavia descobririam da pior maneira possível que gritavam para ouvidos moucos. Após cientificar-se que, tanto a tripulação quanto ele próprio, haviam sido traídos pelos maiorais da Sala de Armas, o Capitão ausentou-se do navio, temendo por sua vida e a de sua estimada família. Então, Barril de rum ordenou ao Homem da Contagem que aprisionasse os tripulantes que se mantinham à frente da Sala de Armas, principiando assim sua vingança. E foi assim que, numa cena típica de enredo distópico, um criminoso condenado deixou a prisão, uniu-se a piratas, salteadores e a toda sorte de malfeitores e tornou-se, à custa de incontáveis irregularidades, o comandante de um dos mais promissores navios do mundo. Em contrapartida, tripulantes honestos e trabalhadores, que jamais cometeram crimes em suas vidas, foram tratados como malfeitores e metidos no cárcere onde muitos permanecem até o dia de hoje. A mensagem passada aos tripulantes é a de que no grande navio o crime não apenas compensa, mas recompensa aos que dele vivem.
De relativa distância, o capitão seguia olhando com pesar o naufrágio do enorme navio. Jamais, em seus quase sessenta e oito anos, vira uma embarcação afundar de maneira tão célere sem que a bandeira da guerra estivesse hasteada. No topo mais alto do mastro, uma flâmula carmesim tremulava ao vento, evidenciando os dias sombrios por vir. Outra lágrima escorreu dos olhos do Capitão, pois amava o navio e sabia que Barril de rum e sua horda de salteadores o afundariam em pouquíssimo tempo. E assim como em 1912, no evento histórico de um conhecido naufrágio, salvar-se-iam apenas os mais ricos. Quanto aos responsáveis pela Sala de Armas, homens outrora respeitados pelos tripulantes de bem, estes carregarão o opróbrio de suas escolhas e verão seus nomes manchados pela ignomínia de se haverem aliado a Barril de rum…