Negro amor
Não importa o que digam sobre os gatos. Nós somos animais milenares, considerados por muito tempo deuses dotados de muita inteligência, ternura e malícia. Esta última, facilmente se explica e se apreende, no entanto a ternura, não houve quem, durante a passagem dos séculos, dos mais remotos até o presente, pudesse definir e delimitar o que é de fato.
Fato? Você me pergunta... As histórias contadas aproveitam-se deles a seu bel-prazer e, é exatamente por isso, que venho hoje resgatar estas antigas memórias. Talvez você tenha acreditado no que já foi contado há muito tempo, contudo seria um erro não atentar ao outro lado da moeda e à versão de quem foi, dolorosamente, vítima do amor incondicional pelo próximo.
Nós, gatos, desenvolvemos uma grande e bonita conexão com nossos irmãos de sangue e também com aquelas pessoas que elegemos como tutores. A frase “ele me escolheu” é mais verdadeira do que qualquer outra e, após perder meu irmão de gestação de forma tão cruel pelas mãos de um tutor que tivemos em comum, foi comprovada a sua pertinência. De alguma forma esse homem me atraiu e me escolheu. Eu ainda sentia falta daquele que tinha meu sangue. Primeiramente, teve um dos olhos arrancados e por fim, foi enforcado como um criminoso. Crime que foi apenas o de amar alguém de coração frio e andarilho, cuja capacidade de sentir empatia havia se esvaído com o álcool que costumava consumir.
Dizem que, o que acontece a um gêmeo é experimentado pelo outro de forma inexplicável. Suas almas compartilham as emoções como se fossem uma única alma, de forma que sonhos e dores são estranhamente divididos igualmente. Conosco acontece o mesmo. Perdi um dos olhos na mesma noite em que morreu o meu irmão. Noite escura e sisuda. Nunca soube quem deferiu a pedrada certeira. Há algum tempo não tínhamos mais contato e nem caminhávamos mais juntos sobre os muros sem reboco que abraçavam as casas vizinhas. Tão pouco dividíamos uma presa qualquer e nem nos divertíamos entre uma cerca e outra. Porém quando ele perdeu o último sopro de ar que o mantinha nesta terra eu também adoeci. Débil, fiquei por muito tempo como metade e como uma melodia que acabara de perder a letra em uma partitura qualquer. Recuperei-me com ajuda de um homem que me dava água fresca, sobras para comer e me permitia dormir em paz em seu pequeno estabelecimento.
A partir daí uma mancha branca começou a surgir na minha pelagem. Aos poucos, os primeiros e discretos pelos brancos começaram a expandir-se. É difícil acreditar que isso ocorra com um gato adulto, mas ocorria paulatinamente até que a mancha assumiu por completo em meu peito a assombrosa forma de uma forca, idêntica àquela que vitimou o meu irmão.
Mas, a despeito de quem não acredita, somos seres muito espirituais e após um incêndio aparentemente sem causa na casa em que morava a nossa tristeza, meu irmão foi visto claramente, como a pintura de um quadro, justamente na única parede que permaneceu de pé depois das chamas cessadas. Parede contra a qual meu tutor havia colocado a cama e sobre a qual recostava a fronte junto à esposa, sua calmaria e suporte após as bebedeiras costumeiras. Meu irmão estava lá e revelou-se. O homem, fingiu não compreender.
Não se engane com os discursos. Não havia tanta bondade assim em seu coração. Se havia, o que não acredito que fosse o caso, o álcool se encarregou de dissolver. Seu remorso, embora não verdadeiro, o levou até mim. Meu amor por quem havia sido por muitos meses cuidador de meu irmão, me levou até ele. O acompanhei de forma desinteressada. É mentira o que dizem. Os gatos não são falsos e nem frios. Era ótimo ter um lar, longe da agitação e do excesso de palavras, gritos e palavrões de homens de índole e saúde duvidosas, porém, mesmo assim, não fosse o chamado de meu irmão, que expirara naquele jardim, eu não saberei dizer se teria ido em companhia de meu algoz. Era por minha alma gêmea que meu coração queimava.
Na casa espaçosa, por poucas semanas estive em companhia do casal. Ele, me repelia e quanto mais isso acontecia, mais eu era tentado a estar perto, provocar-lhe qualquer tipo de sentimento que não fosse raiva nem desprezo. Ela, me acolhia e assim tornara-se meu ponto de paz. Isso o aborrecia ainda mais, mas gatos desprezam o mau tratamento e refugiam-se onde se sentem protegidos. Minha provocação, quando havia, era somente para chamar-lhe a atenção e fazê-lo de alguma forma completar a parte que ele mesmo, com as próprias mãos tirou de mim. No nascimento fomos só dois e seríamos dois, eu e meu irmão de alma, até a morte.
Deixe-me esclarecer que, ao descer para acompanhá-los na limpeza do porão em uma manhã qualquer, eu não tinha a intenção de atrapalhar e nem de derrubar ninguém das escadas íngremes e escuras. O que eu queria era estar junto e estar presente em qualquer lugar a que meu irmão tivera acesso. Era a primeira vez que eu tinha a oportunidade de explorar o local e, quando nós provocamos tropeços e outros incidentes, isso ocorre somente pela ânsia de dominar um território que é nosso por direito.
Ela, a querida esposa, me defendeu da morte brutal e assumiu, assim sem querer, o destino que era meu. Morta a minha esperança e minha luz em noite escura. Isso é o mais difícil de contar. Desesperado, me escondi, mas ainda assim, pude ver parte da preparação da coluna na parede para que seu corpo fosse escondido. Fiquei no jardim da casa durante aquela noite. Depois, em um terreno vizinho. Via meu cuidador de longe. Estava tranquilo e quase sempre alcoolizado aquele a quem amei. Não havia arrependimento em seu olhar vazio nem em seus passos incertos.
Minha alma então ligou-se à alma daquela que me protegia, de forma que aproveitei o reboco fresco, feito para ocultar a atrocidade, e adentrei por um espaço livre, para estar junto ao seu corpo, desejando que o pulsar do meu lhe trouxesse ao menos acalento. Lembro-me das vozes dos investigadores e da casa silenciosa, que sempre cheirou a álcool, sabão fresco e agonia. E foi quando a soberba gritou sobre nossos corpos unidos e o homem bateu na parede úmida gabando-se da impunidade, eu pedi justiça e me fiz ouvir.
Ele não foi preso, não tinha antecedentes criminais, morava em bom endereço e tinha emprego. Inventou uma desculpa duvidosa e a investigação seguiu lentamente. Ele nunca entendeu as aparições, de meu irmão e sobretudo a minha. Eu não resisti por muito tempo após ter ficado na abertura da parede guardando o corpo de minha mão acolhedora. Fui enterrado por um vizinho próximo no jardim, assim como o meu irmão, inocente vítima da loucura e da boemia. Vítima de alguém que perdeu a si mesmo pelo caminho. Mas ao contrário dos homens, nós não nos perdemos. Nenhuma de nossas vidas é vã.
Hoje, a minha semente, único filho meu e da noite, anda sob a lua e sobre os mesmos muros sem reboco e, esse sim, com a força e a fúria da juventude traz nas unhas a vingança de quem ficou sozinho no mundo, aguardando a oportunidade de então rasgar, ainda que com atraso, a fronte da perversidade. Na natureza, não há predador que em algum momento não seja também presa. Eu observo em silêncio pela fresta da janela principal da casa. As trocas costumam ser justas. O sangue já escorre pelo alvo lençol estendido na cama. Hoje, não haverá festa tão pouco bebida. Somente a casa vazia e as vidas que, no vão das dores, seguirão seu ciclo.