A face oculta da lua

Quando Sofia chegou ao jardim e tomou seu lugar junto das outras mulheres, o crepúsculo começava a tingir os céus com tons de noite. A lua minguante se erguia no horizonte, tal qual, uma foice brilhante de marfim a rasgar um véu estrelado.

A jovem recém-chegada estava deslumbrada com a beleza do lugar, o jardim de Gerusa, decerto deveria cobrir um continente inteiro, pois para onde as vistas mirassem havia centenas de milhares de canteiros com inúmeras flores e frutos a vicejar. Sofia por instantes lembrara dos livros de seu ensino médio, com gravuras de jardins parnasianos e poesias verdejantes tal qual o lugar em que estava. Quando voltou a si, resolveu ir buscar pela dona e anfitriã dali. Adentrou por rosas tão grandes que não caberiam em uma palma da mão, viu margaridas de brilho intenso, sentiu os aromas dos inúmeros tipos de jasmins, peônias, camélias, angélicas e tantas outras flores de cores e perfumes inebriantes. Já um tanto distante da entrada do jardim, avistou um bonito chalé e a crer que Gerusa ali estava, seguiu por um caminho mais obscuro. Os vaga-lumes voejavam aos milhares por aqueles lados do vergel, as luzinhas iluminavam as flores mais exóticas que já tinha percebido na vida e na morte. Elas não se pareciam em nada com qualquer vegetal, suas pétalas eram como as penas de uma ave, com padrões que se assemelhavam a olhos coloridos em tons pastéis perolados, como as plumas de um pavão. Além disso, ao sentir a presença da moça, essas flores farfalhavam liberando aos ares, névoas brilhantes. Quando sentiu a névoa adentrar as vias aéreas, Sofia provou de uma leve ardência no nariz, acompanhada de um forte odor de sangue fresco, instintivamente olhou para seu peito. Em seguida ficou entontecida e acabou por esquecer o que deveria observar no seu peito, também esquecera o que havia ido fazer por aquele lado do jardim. O mal-estar se intensificou tanto que estava prestes a cair e perder a consciência, foi quando avistou um rosto familiar se aproximar e amparar-lhe.

A velha lhe apoiou no ombro e as duas caminharam em direção ao centro do jardim por outro caminho, durante a caminhada Gerusa lhe falou sobre as estranhas flores emplumadas, se chamavam "Ceresvolib amerion”. Explicou que elas roubavam memórias e que não era aconselhável andar sozinha por seus canteiros, sob pena de perder todas as memórias a ponto de esquecer-se de si. A velha coletora acomodou Sofia em um dos chalés com as demais moças e pediu para as mais velhas cuidar e instruir as novas moradoras.

As mulheres edênicas eram livres para fazer tudo o que desejassem, bem como comer de todos os seus frutos. A única restrição aplicava-se aos canteiros de Ceres, as devoradoras de almas durante a lua minguante e o respeito ao tabu da lua nova.

Nos dias que antecediam a lua nova, Gerusa servia às moças um néctar adocicado e estimulante, após as refeições. A bebida escarlate avivavam suas lembranças de suas vidas pregressas, dos momentos bons e felizes aos terrores e dores de morte. Essas enxurradas sensoriais preenchiam à velha anfitriã com rostos, vozes, sentimentos e sensações advindos de suas convivas. E quando o céu vestia-se de azeviche, as mulheres não podiam sair de seus chalés em respeito ao tabu. Nessas noites, a doce e acolhedora velha sofria uma metamorfose, tornava-se nova, forte e portava uma beleza que obrigava a lua a esconder sua face em vergonha e ciúmes. Sob a face oculta da lua, Gerusa era Benedita, a foice escarlate da morte, a vingadora e perseguidora dos algozes de feminicídios.

Francisco Grandiel
Enviado por Francisco Grandiel em 28/02/2023
Reeditado em 28/02/2023
Código do texto: T7729883
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