Bala de Canhão
Na planície reservada para manobras militares, o tenente N. comandava um exercício com tanques de guerra. O sargento se aproximou do recruta e emitiu a ordem de seu superior. O recruta imediatamente se afundou no tanque para executar as ordens militares. O tanque fez um giro brusco que pela reação do sargento não parecia uma manobra esperada e em seguida um tiro. O tenente N. que observava as manobras com seu binóculo de um plano elevado, viu o trajeto do tiro em direção a um bairro civil nas proximidades.
O tiro atingiu em cheio um prédio residencial. Toda a parede lateral foi destruída. Ficou-se sabendo que não houve vítimas fatais, ninguém sofreu danos físicos, mas material. O Exército prometeu reparar os danos. As pessoas que testemunharam o acidente diziam que o dano era moral, extremamente, moral. Pois a parede lateral que foi destruída revelou alguns cômodos dos apartamentos. Num andar um jovem se cortava com uma gilete. Noutro andar, um homem violentava sua mulher. Noutro, uma criança solitária brincava com seus brinquedos. Noutro, um jovem se masturbava. E muitos outros cômodos que ficaram expostos revelavam o drama cotidiano das pessoas, dramas ocultos que foram descortinados pela bala de canhão.
Uns dias depois do acidente, um jornal noticiava que os militares envolvidos tinham sido severamente punidos. A maior punição caiu sobre o tenente N., comandante da missão. O sargento e o recruta foram punidos com menos severidade, pois cumpriam ordens. As crônicas posteriores informaram que o tenente N., envergonhado, suicidou-se em sua cela. O sargento após cumprir sua pena caiu em desgraça e se perdeu no alcoolismo. O recruta parece não ter ficado mais do que alguns meses na prisão, conheceu e fez amizades no presídio e hoje segue uma vida mais tranquila como segurança de um chefão criminoso.
Outro dia passei pelo prédio e vi que o Exército cumpriu com sua promessa e recuperou o prédio. Os dramas individuais voltaram às suas privacidades.. E como a antiga área de manobras militares foi interditada, agora o Estado negocia a sua venda para a construção de um condomínio residencial, pois mais urgente do que as manobras militares são as privacidades dos dramas humanos..