Conto em Chamas - (Parte I)

"Não tenha medo

Nem tudo tem explicação

Há mistério em quase tudo, nem todo veludo é azul

O mundo é muito grande pra quem anda de avião

Pra quem anda sem destino ele cabe na palma da mão"

Humberto Gessinger

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(GOIANINHA - RN, 23 de Março de 2016)

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Não tenho para onde ir.

Peço à menina do posto mais açúcar para o meu café frio. Tenho cinco cigarros no maço e alguma chuva no caminho. Preciso de mais café e, naturalmente, mais cigarros. Sempre vou ao mesmo posto procurar meus mesmos vícios. A menina já está cansada da minha cara. Mas não tem nada. Minha casa pegou fogo. Foi tudo para os ares e eu preciso arrumar um jeito de dormir esta noite.

Tenho talvez a possibilidade de me abraçar com meu travesseiro incinerado. Cobrir-me com as cinzas de meus lençóis e olhar, com muita imaginação, o céu de carbono da noite. Mas não vai ser possível. Sobrou-me o carro e com ele o resquício de minha rotina. A casa pegou fogo, mas o carro não. O carro só precisa de lanternagem, alinhamento e balanceamento.

Já vai anoitecer. E vejo o movimento de caminhões na BR-101. Olho para o sul e penso que vou a Recife. Procurar parentes? Ou ir a Natal procurar algum amigo varrido de zona. Ou talvez, como terceira opção, dormir abraçado com alguma moça carinhosa de São José do Mipibu. Lá consigo boa cama e ar gelado. São cinco e meia da tarde. Se for pra Recife, pelas minhas contas, chego às nove.

Mas não. Preciso voltar à razão. Perdi a casa, até ai vá lá. Mas a verdade é que ainda tenho meu emprego. Prometi ao Duarte uma cobertura porreta da Mostra de Balé de Canguaretama. Não posso, simplesmente, pegar minhas cinzas e voar na BR. Aliás, a resposta está aí. Vou para Canguaretama. Lá há quartos baratos para pernoitar. Vai dar seis horas da tarde.

Vou ao frentista e peço 50 reais de gasolina. O tanque está baixo. Quando estou saindo para pegar a BR, quase atropelo uma sombra. Pediu-me carona. Perguntei para onde ia: - “Pra frente.”. Sendo assim, está encaminhado. Entrou no carro e vamos para frente.

O velho me pediu fósforos. Vai lá pras bandas de Pedro Velho. Quer fumar. Roço o peito e pego o cigarro no bolso da camisa. Pego o meu e o dele.

- Você sabe quem eu sou? – perguntou em tom de enigma.

Daí foram 21 quilômetros falando do ofício, dos móveis que faz e conserta, das raparigas que sai pelas noites e, um tanto mais sério, da virtude das filhas. Neste ponto insistiu de tal forma que parecia querer que eu as despisse na imaginação. Da esposa falou pouco. Declarou-se viúvo e pronto e acabou. Pediu o último cigarro e finalmente deixei-o na porta de casa. Já ia entrando, mas virou-se com um último pedido:

- Amanhã é meu aniversário. Vamos fazer alguma coisa aqui lá pras seis. Quero que venha.

Fiz nem que sim, nem que não. Talvez.

Despedi-me. Estou em Pedro Velho e as pessoas aqui me olham como se já conhecessem a mim, ao automóvel e também minha casa em chamas. Peço mais um café. Mais açúcar e desta vez a frentista me olha com um pouquinho de simpatia. Retribuo o sorriso e pergunto pelo maço de Hollywood. Ela quis saber meu nome. O seu era Suelly. 25 anos. Pele morena, dois filhos para criar e um dente careado que lhe dava certa graça ao esconder.

Chamo-me Antônio. Falei do balé, das crianças e de Canguaretama. Suely prestava mais atenção na minha boca mexendo do que nas minhas palavras.

- Tu volta quando, menino? – perguntou adocicando um pouquinho mais o olhar.

Despedir-se da moça foi ruim, mas Duarte já estava puto. Pelo telefone já havia chamado uns 3 ou 4 palavrões. Mas o fato é que Pedro Velho já me rendera duas belas prendas nesta tarde.

Agora é o balé. O balé das meninas de Canguaretama. Não posso perder. E depois quem sabe eu volte? Mas Cristo, agora lembrei: - minha casa pegou fogo! Não, eu não quero ficar aqui. E eu só tenho uma ideia na cabeça. Preciso ir. Preciso ir embora.

Quero ir embora pra Recife.

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@edu.cassilhas