Conto de uma Noite de Natal
Conto de uma Noite de Natal.
Amélia Luz
Menino pobre da Rua da Chácara, eu morava numa velha casa de grandes janelas, com vidraças em guilhotinas e amplas venezianas, a realçarem nas paredes cansadas, necessitadas de nova pintura. Sala ampla, de assoalho de madeira, teto sem forro, coberto por telhas portuguesas expostas, deixando entre suas frestas, vazar a luz.
Gostava do caminho para a escola pública. Íamos em bando, festejando a vida, especialmente antes do natal, quando as ruas da cidades ficavam com suas vitrines coloridas e enfeitadas, Admirava os presépios, principalmente os mecânicos, que tinham engrenagens e movimentos. Todos os dias, repetíamos o mesmo ritual.Íamos de vidraça em vidraça, olhando as vitrines.
Chegávamos, muitas vezes, um pouco atrasados, quando os alunos perfilados,
Cantavam afinados o Hino Nacional. Na verdade, o que muito me atraíam eram as Cestas de Natal com todas as guloseimas. Insisti, a escrever meus primeiros bilhetinhos, tentando na minha inocência, convencer o Papai Noel a nos dar uma daquelas cestas. Isto não aconteceu e eu muito me decepcionei quando injustamente, os presentes chegaram com bonecas zarolhas, caminhõezinhos de madeira, piões e cavalinhos de pau, comprados no Bazar da Esquina, do turco Salomão. Amarguei mais esta decepção em silêncio.
Outro ano chegava e parecia que na minha casa o Natal seria diferente. Pela primeira vez, graças às Leis Trabalhistas, meu pai estava feliz por estar mais folgado de bolso. Em emprego fixo iria receber pela primeira vez o seu décimo terceiro salário. Embora tão pouco, este dinheirinho a mais estava causando uma grande confusão lá em casa. Mamãe não se cansava de dar sugestões para o seu emprego. Os óculos da Maria da Glória que era míope e já não enxergava direito para copiar do quadro negro. O Zezinho havia posto seus óculos na cara do cachorro dele, o Bob, que saindo em disparada deixou-os espatifados no chão. Uma pasta para a Maria Lúcia que com sete anos ia ser matriculada na escola no ano que vem, um cordão para Sueli que ia fazer quinze anos em janeiro e um reloginho de pulso para ela fazer o controle de saídas e voltas da criançada.
Papai, a vítima, silenciava. Chegava cansado do exaustivo trabalho de vendedor e apagava em profundo sono entre o falatório da mamãe e a gritaria da criançada. Fazia-se de distraído para não escutar as reclamações dela: o ferro elétrico escangalhado, porque o Afonso havia deixado cair, o remédio da garganta da Alice que havia acabado e a febre ameaçava voltar, a janela que perdeu o trinco e estava dormindo aberta, o tanque que estava entupido desde a segunda feira e o chuveiro que, além de frio estava sem água.
Ele balançava a cabeça em sinal de protesto interior e com o seu olhar sofrido pedia paz. Eu imaginava o que o coitado estava a pensar diante do massacre verbal da mamãe. Um verdadeiro campo de guerra!
Certo dia, outra vez, peguei a caneta-tinteiro, Parker 51, no seu bolso e num pedaço de papel rascunhei em garatujas o meu mesmo bilhete do ano anterior, ou seja, um pedido ao papai Noel de uma cesta de natal.
A semana passou interminável. Os dias que antecedem o natal são sempre intermináveis para a criançada. O ano letivo havia terminado e as minhas provas foram as melhores lá de casa. Em Língua Pátria havia tirado dez, a mais alta nota da sala!
Mamãe costurava na sala, eu sonolento, com o barulhinho do pedalar da antiga máquina Singer, assistia à televisão na velha Telefunken, em preto e branco. O palhaço Carequinha, na TV Tupi, distraia a criançada todas as tardes. Então ouvi quando alguém lá fora bateu palmas. Saímos juntos, um atropelando o outro para ver quem era. Um homem alto e forte com um uniforme de firma “Mercado do Povo”, entregou á mamãe uma imensa caixa embalada em papel pardo, amarrada de barbantes.
Fiquei curioso. O que teria enfim naquela caixa? Diante de tantas queixas e pedidos da mamãe, entre tantos sonhos de consumo, era difícil de adivinhar... Assustei-me de repente com um lampejo de pensamento, seria, quem sabe, uma CESTA DE NATAL?
O homem entrou, deixou o embrulhão sobre a mesa, conferiu o endereço, pediu que mamãe assinasse a nota e saiu numa caminhonete Chevrolet, azulzinha como o céu.
Mamãe nos olhava séria. Nós ficamos mudos, perplexos com o tamanho da encomenda. A curiosidade parecia que ia me estrangular por dentro, mas, criança naquela época não vez nem voz. Fomos para cama na hora de costume. No quarto das meninas, como era chamado, dormia a turma do sexo feminino e no outro quarto os quatro molecões. Adormeci e levei um baita susto quando a Soninha, dois anos mais velha que eu, me chamava em cochichos para uma aventura secreta. Fomos até a sala. Nessa altura o coração parecia que ia acordar a mamãe de tanto que pulava no meu peito. Furamos um cantinho do papel, mas a sala mal iluminada não nos deixou ver grande coisa além de outro papel colorido debaixo daquele, com motivos natalinos. Rasgamos devagarzinho e descobrimos um trançado de vime envernizado. Nada mais pudemos ver, mas já era uma grande pista para um pequeno Sherlock Holmes. Eu tinha certeza, era mesmo uma cesta de natal. Recusaria, se preciso fosse, qualquer tipo de brinquedo para ter satisfeito o meu desejo. No dia seguinte a misteriosa caixa foi colocada no alto guarda-roupa para não ser invadida. Era um móvel herdado da minha avó com espelho na frente, o único da casa, porém de impossível escalada para nós. O jeito era se conformar com a espera. Os dias arrastavam-se lentos. Os olhos namoravam a caixa à distância, em silêncio cruel.
Enfim, véspera de natal. Mamãe nos arrumou. As meninas com fitas nos cabelos e saias engomadas. Os meninos de sapatos engraxados, já menores que os pés que haviam crescido. Papai bonitão, de camisa de mangas compridas e barba bem feita. Mamãe de saia plissada, de Tergal xadrez, blusa Ban Lon, herdada da Dona Clarisse, para quem fazia algumas costuras. Fomos para a Missa do Galo. O Padre Otávio não parava de falar, uma pregação sem fim, e no meu pensamento só o embrulho-surpresa.
Voltamos para a casa aflitos. Enfim eram apenas alguns minutos que nos separavam dela. Papai colocou na velha vitrola um disco do Nat Kig Cole, Catito, era a música do momento. Então, subiu na cadeira e com esforço, nosso herói arreou a encomenda sobre a mesa. A criançada em volta a roer as unhas de ansiedade. Mamãe sorria e pedia calma. A Sueli trouxe a tesoura e ajudou a cortar os barbantes. Depois a fita de cetim colorida. De súbito, papai retirou o papel e desnudou num só gesto a caixa, que era mesmo uma CESTA DE NATAL, chamada Amaral, que se comprava às prestações a pagar ao longo do ano vindouro. O lacre foi rompido e lá dentro um mundo de sabores, ali, à altura das nossas mãos e do nosso paladar.
Cômico e emocionado papai foi ajeitando tudo sobres a mesa, toalhinha branca, com os nossos pratinhos, talheres e copinhos individuais. Nem parecia verdade. Biscoitos recheados, vinhos, cidra, nozes, amêndoas, damascos, tâmaras, castanhas, coquinhos, doces diversos em calda e cristalizados, o figo seco Rammy, além de geléias, bolos, uva-passas, queijos em conserva, tudo, tudo, cheirando e me embriagando de felicidade. Papai alegre, já com alguns goles de vinho a mais, tirava mamãe para dançar que, tímida mal ensaiava seus passos. Todos nós estávamos participando da primeira ceia de natal em família.
Não tinha árvore. A iluminação era péssima pois a Norte Fluminense nada fazia para melhorá-la. Os fogos de artifício ajudavam clareando o céu. Não sabíamos o que experimentar primeiro. Os coquinhos e as nozes eram quebradas, aos risos, ao fecharmos as folhas das janelas contra o cachonete, massacrando-os. Ao sabor de tanta alegria assistíamos na TV a mensagem de natal do papa João XXIII, na Basílica de São Pedro, em Roma. O Presidente Juscelino também se dirigia à nação com seus votos d Boas Festas. Lá fora uma chuva fininha começava a cair mansamente. Meus irmãos se entreolhavam com cara de raiva pois cobravam seus presentes. Papai nos explicava que a cesta era muito cara e que era um presente para todos. Insatisfeitos, armaram guerra de ciúme contra mim, sentindo-se injustiçados. Reuniram-se para suas brincadeiras e eu tive que pagar o preço de ficar de fora. Isolado e triste de um lado e imensamente realizado do outro, curtia o meu inesquecível natal. Pegava as sobras de papel colorido, as caixas e potes já vazios e guardava os restos de tudo como relíquia. Olhava a mesa e já não via o mesmo entusiasmo, apenas um resto de alegria solitária, que eu não podia dividir com os meus irmãos, que armaram guerra contra mim. Só a Sueli que se aproximou, me ajeitou os cabelos e me disse:
- Liga não, Fernandinho, Natal tem todo ano. Ano que vem tem outro e tudo vai ser diferente. Quem sabe o Papai Noel lembrar-se-á mais deles do que de você? Vá para cama e reza para o seu Anjo da Guarda. Ele vai estar sempre perto de você;
Tempos e tempos depois, já adolescente, eu descobri que a tão esperada Cesta de natal Amaral não tinha sido um atendimento ao meu pobre bilhetinho ao Papai Noel, mas sim um brinde da firma onde meu pai trabalhava por ele ter sido o melhor vendedor do ano. Em toda essa história contada e recontada por mim com especial carinho, ficou o espírito de natal em família que deve ser visto e vivido como algo valioso a ser conservado ao longo da vida de todos nós.