Contradição

Contradição

Pedro estava arrumando suas coisas; faltava pouco para a pesca.

— Apressa o café, mulher. Tá quase na hora.

- Vai já. A água ainda não ferveu, mas não custa.

Tudo ali era simples; a aldeia de pesca, em Itaipu, as casas do lugar, como a de Pedro: sala e quarto, contendo o mínimo indispensável – a mesa com quatro cadeiras, o armário envelhecido, o Cristo pendurado na parede.

Na cozinha havia um modesto, mas bom fogão a gás e uma geladeira antiga: os peixes não eram ingratos com Pedro.

Francisca – ela não gostava deste nome – trouxe o café. Quentinho, cheiroso, perfumando a casa.

Pedro e a mulher comeram pão com lingüiça, enquanto tomavam o café. Já haviam comido uma banana antes.

- O dia vai ser bom, mulher. A água está quente, e não tem vento forte. Viu o jeito do céu?

— Inda não.

— Mas veja. Vai dar peixe hoje, e não vai ser pouco não.

— Tomara.

— Enquanto comia, a mulher olhava o seu marido. Bonito, o Pedro. Moço, amigo dela e pai cuidadoso do pequeno filho, que havia feito dois anos no Natal. Eles se orgulhavam disto: o menino nascera num dia de Natal.

Francisca era feliz; tinha o que sonhava. Diziam que Pedro era neto de um alemão, daí os seus olhos claros e um tipo nada grosseiro. Queimado do Sol, mas ainda sem as rugas profundas dos velhos pescadores, e forte. Forte como todo homem do mar.

— Tá na hora.

Beijou a mulher e passou a mão calejada, mas carinhosa, no rosto da esposa.

— Sorte.

— Vou ter, mulher. Sempre tivemos, graças a Deus.

— Graças.

O dia já estava quase claro. Por causa da montanha próxima, Pedro não podia ver aquela unha do Sol, que nascia de trás do mar. Mas já vira muitas vezes; era lindo e ele amava a beleza da aparição. Primeiro, uma leve claridade. Depois surgia a unha vermelha, semelhando brotar de dentro d’água, crescendo até se mostrar toda. Aí não se podia olhar mais, porque o brilho da bola vermelha era forte e queimava os olhos.

Estavam em janeiro e por isso, embora ainda fosse cedo, o calor começava.

A mulher deu-lhe adeus, da porta. Pedro saiu para a praia, camisa de meia fina e muito branca, lavada com carinho, calça cortada pelos joelhos, pés descalços na areia fofa e acariciante.

Numa sacola, levava pão e goiabada, além da garrafa de água. Os amigos mexiam com ele por causa da merenda, mas vinha a justificativa: sentia fome durante a pesca, e a goiabada tirava um bocado daquele gosto de mar salgado. Não que ele não gostasse do mar; nada disso. Mas era bom comer algo doce, lá pelas nove horas, caso ainda não tivessem cercado o cardume.

Os três homens esperavam-no. Honório e seu filho Jairo, e o velho Elíseo, pescador experimentado. Todos eram donos da canoa grande, bem construída e conservada com carinho. Sempre pintada de novo, para durar bastante, a “Santa Rita” era invejada. Canoa de peroba, não era de desarranjar à toa.

Rede tratada vez por outra na fervura de casca de aroeira, que lhe dava mais resistência, além da cor vermelha, renovada.

A “Santa Rita” ia para o mar e eles remavam até cercar algum cardume. Então, era só fazer a volta, estendendo a malha e retornar à praia.

Puxavam, faziam força, a rede vinha lenta, pesadona de corvinas, tainhas, algumas lulas e, às vezes, xaréus.

Quase sempre o trabalho era proveitoso; raro não trazerem bons peixes.

Ruim era quando chovia muito, e a água estava fria. Mas naquela época do ano isto quase não acontecia.

— Que beleza, hem, seu Elíseo. Peixe de dar com o pau!

- Tempo bom, Pedro. ‘Inda vamos trazer muita coisa daí.

— Se vamos!

Recolhiam os peixes, e os compradores estavam esperando. Guardavam na areia a canoa, estendiam a rede para secar. Tudo muito organizado e metódico. Depois, rumavam ao bar.

- Me dá um negócio.

E lá vinha a pinga. Nem precisavam pedir mais; bastava aparecerem e o dono da venda preparava os copos, daqueles de fundo grosso, o martelo, como o chamavam.

Pedro não tomava a cachaça de um só trago, igual aos outros. Bebia um gole, acendia um cigarro, tirava umas baforadas. Isto feito, liquidava o resto.

Conversavam no botequim, fala calma, pausada, enquanto tomavam cerveja e comiam sardinhas fritas, com moderação. Depois, iriam para casa almoçar.

— Sorte hoje, mulher. Eu não disse?

— Pegaram muita coisa?

— Então. E vai continuar dando peixe, estamos na época.

A comida era simples. Feijão cozido com pedaço de toucinho e louro, para temperar bem. Arroz branco e solto, farinha torrada e quase sempre, peixe. O preço da carne estava exagerado; no mais, por que comprar carne se tinham tanto peixe? Só na quarta-feira comiam carne, variando o prato. Aos domingos, o almoço era mais cuidado, com salada e pudim de sobremesa.

Depois, o café. Pedro fumava um cigarro e dormia um pouco; o trabalho era bom, mas pesado. Quando não botavam espinhéis ao largo, ele podia dormir mais e depois, com os outros, guardar a tralha de pesca. Se colocavam espinhel, a canoa ficava dentro d’água e lá pelas três da tarde eles iam recolher as linhas. Quando tinham sorte vinham peixes bons, coisa fina, de qualidade.

Mas nem sempre deixavam o linhão comprido, pedra numa das pontas e bóia na outra, cheio de anzóis iscados esperando os peixes.

“É duro puxar um espinhel”, pensava Pedro. “Corta a mão quando tem muito peixe, ou quando vem algum grande. Miséria quando é cação.”

Adormeceu pensando a grandeza do mar. Quando acordou, sentiu um pouco de frio.

— Como tá o tempo, mulher? Parece que o vento rondou.

— A cara não é boa não. Vai ver.

Pedro foi até a porta da cozinha, uma que dava para o mar. Olhou o céu. Lá longe, mas distante mesmo, a pretura. O sudoeste começando fraco, mas insistente.

— Vem ele, Chica. Tá vindo de manso, mas não custa a soprar feito o cão. E o aguaceiro vai ser brabo. Olha lá – e apontou na direção das nuvens carregadas.

— Que vale que você está aqui – falou a mulher, apertando-o contra o seu corpo.

— É, mas aqueles na lancha, não. Que imprudência! Lanchão grande, podem chegar ao Rio muito antes do pau começar. Nem ligam...

Acarinhou a mulher, e tomaram mais café fresco.

— Vai ser um bruto toró. Mas amanhã é sábado e não íamos pescar mesmo, a de hoje foi muito boa, compensou por demais. Esse raio desta gente que invade a praia espanta até marisco, e não deixa o pessoal trabalhar sem ficar pedindo um peixe. Fingem que puxam a rede e depois já sabe: “me dá aquele ali?”. Só apontam os graúdos. Comigo não! Dou nada, só se o cara for pobre mesmo.

Conversou mais com a mulher, passando-lhe a mão nas pernas.

— Pedro...

— Ora, mulher.

— De dia.

— Que diferença faz?

Deitada, Francisca pensou uma vez mais na sua felicidade; estava sorrindo ao lado daquele homem tão bom e correto. Que mais podia desejar?

— Vou esquentar a janta e preparar mais umas postas.

— É, deu fome.

Pedro foi até a venda. Encontrou lá seus camaradas, que tinham o mesmo hábito, antes do jantar. Mais uma cachacinha e conversa fiada.

— Os caras da lancha vão se danar. Ainda estão ali – falou.

— Também vi. Devem ser macacos velhos – disse um.

— Qual! Gente que entende de mar não se atreve. São uns araras – foi a vez do velho Elíseo.

— Porque têm estes lanchões, pensam que podem enfrentar qualquer coisa. São burros. Vai ver: tudo principiante. Pelo jeito do barco não tem mês de construído.

— Mas alguns são espertos, Elíseo – foi a vez de Honório.

-—Lá isso são. Mas poucos. Gente danada mesmo é essa que tem barco à vela. Ali não tem lugar pra trouxa, não. Já conversei com muitos deles. E digo: uns entendem muito mais de mar que a gente. Sabem nomes de estrelas, força da vazante e da cheia, imagine, tem até aparelho para medir a velocidade do vento! Já entrei num barcão destes. Beleza de coisa bem tratada. E que mastro! Todo muito seguro por cabos de aço, falaram o nome, não mais. Atravessam o mar, vão para África e não sei mais onde. Já pensou?

— Mas eu também iria com eles – falou Pedro.

— Ir, vai. Disso eu sei. Mas quem dirige o barco? Você? Pedro, eles sabem coisas estranhas. Orientam-se pelo Sol e pelas estrelas, usando um aparelho que também esqueci o nome, e usam hora diferente da nossa, é coisa complicada, não entendo nada disso – completou Honório.

— É, mas vai ver que não sabem distinguir um cardume de sardinhas para um de corvinas.

— Bom, este é o nosso ofício.

Interrompeu o que dizia, quando alguém alertou sobre o tempo.

— Gente, que chuvarada. Cruzes!

Realmente a chuva era das grandes. Tocada forte pelo sudoeste apertado, lavava o chão e revirava as copas das árvores. Um molecote entrou bar adentro, olhos espantados.

— A lancha tá vindo para a praia!

Os homens, todos que estavam bebericando, saíram rápidos e olharam o mar. Estavam encharcados pela chuva. E viram a lancha vagarosamente vindo para a areia; o ferrou não estava bem unhado.

Apanharam uma canoa leve, a “Neguinha”, uma âncora velha, mas em estado de ainda ser usada, e um rolo de cabo. Não foi fácil chegarem ao barco ameaçado, mas homens calejados com as tempestades chegaram depressa.

— Joga este ferro longe – berrava um.

— Liga o motor, homem de Deus.

— Unhou. Veja, a lancha tá firme.

Tão rápido subiram que nem puderam ver quem estava lá. Cessado o tumulto, verificaram: só um casal.

O rapazola, nervoso ainda com o acontecido, e a moça beirando o pânico.

— Muito, muito obrigado. Não sei como agradecer.

O rapaz apertava as mãos fortes que haviam salvado seu barco.

— Estão encharcados!

— Ora, moço. Num é a primeira vez...

— Vamos tomar algo.

— Isso é bom, amigo!

Ele apanhou uma garrafa de uísque estrangeiro, que estava muito na moda e encheu os pequenos copos, oferecendo um a um aos pescadores.

— Ô que diferença para a cana brava!

— E forte também. É bom.

— Vamos, bebam a vontade. Vou pegar um queijo.

— Não é preciso, moço. A garrafa vai muito bem. Inda vamos jantar.

— Esperem até que a chuva e o vento passem um pouco.

— Vamos esperar – falou novamente Elíseo – porque a situação ainda está meio braba. Que houve com sua mão. Pedro?

— Um corte, só. Coisa de nada.

A moça, bem mais calma, bonita e de uma graça perigosa, prontificou-se a pensar o ferimento.

— Não senhora, já disse, não é nada.

Exibiu o corte. Não era profundo nem perigoso. Sangrava um pouco, apenas. Mas ela insistiu e já com a caixa de socorros, obrigatória em todos os barcos, limpou a mão de Pedro com água pura e passou bastante mertiolato, colocando uma pequena proteção de gaze e esparadrapo.

Pedro não pode deixar de perceber o olhar da moça, infantil e malicioso ao mesmo tempo, seu corpo bonito, os cabelos compridos, a bermuda curta mostrando as pernas bem feitas. Mas o diabo mesmo era aquele olhar!

Como todo homem de vida simples, ele não a fitou mais. Poderia ser percebido; não ficava bem.

— Sorte a minha, vocês estarem por perto. Ia encalhar, na certa. E podia perder a lancha, com a arrebentação.

— Por que não ligou o motor, moço?

— A máquina não virou. Bateria pifada.

Pedro ajeitara-se num canto, e esquentou o corpo com o uísque, coisa boa que ele nunca bebera. Gostou daquilo. Era forte e tinha um cheiro bom, não queimava as narinas, como as cachaças ordinárias. Vez por outra, atrevia-se a um olhar para a moça, mirada rápida.

Durante a conversa comum, alegrada pelos goles, sentiu-se tonto. Não só pela bebida: aquela mulher buliu com algo que dormia dentro dele. E agora ela havia sentado bem junto ao canto onde ele estava. Suas pernas tocaram-se de leve. Pedro recolheu-as depressa, medroso. O contato com as pernas macias aterrorizou mais ainda quando veio pela segunda vez. O pequeno lampião aceso tinha luz fraca, mas ele se afastou novamente. Não estava direito, e pronto. Foi o que pensou na hora.

O temporal arrefeceu, e com mais agradecimentos do moço, foram-se embora.

Naquela noite, dois homens não ferraram no sono.

O rapaz, invejando a vida simples, saudável e alegre dos pescadores, que tiravam com as mãos, do mar, o seu sustento. Gente amiga e dura para enfrentar a vida, o mar, o tempo. Sim, ele gostaria de poder existir da mesma maneira, morar na aldeia, ser pescador. Tão diferente da vida que levava, como engenheiro numa grande firma, morando numa cidade sufocante. Como eram felizes os pescadores!

Pedro, pensando na moça. Que pernas! E o estranho feitiço no olhar que possuía? Francisca era ótima esposa, mas aquela mulher!

Nova, rica, fresca e tão linda.

Pela primeira vez na vida ele sonhou em um dia, ser dono de uma traineira. Com o dinheiro dos lucros, compraria outra, e mais uma, até ficar também um homem rico. Poderia morar na cidade grande, ter uma lancha igual àquela e, quem sabe, uma mulher com as pernas tão macias e olhos tão fascinantes...