Sonhar Não Custa Nada

Romeu, brasileiro, bem-sucedido, casado, com três filhos e quatro netos, dono de apartamento duplex, casas na praia e no campo, quatro carros na garagem, é o próprio “self-made man”.

Aposentado, ainda bem-disposto e com todas as condições de realizar seus sonhos, sentou-se em sua cadeira favorita e percebeu-se pensando: o que ainda posso sonhar?

Rememorou sua infância pobre e difícil no interior. Um entre oito irmãos, morando praticamente no mato, em uma choupana distante vinte e três quilômetros da cidade mais próxima. Reviu seu falecido pai, homem rude e amargurado com a vida que, juntamente com sua mãe, mulher forte e sofrida, tentou em vão tirar do solo inóspito o alimento para a família; e também meios para evitar que a doença e a subnutrição não permitissem a sobrevivência de quatro de seus sete irmãos.

Lembrou, não sem culpa, o fato de ter sido privilegiado; a partir do momento em que seu padrinho, morador da cidade, resolveu criá-lo, livrando-o daquela vida sem esperança.

Em suas reminiscências, lembrou o encantamento da primeira vez que foi ao cinema. Ficou extasiado e sonhou em trabalhar com cinema. Como ator, como diretor, como produtor; seja lá o que fosse ligado ao cinema.

Repassou o colégio; os passeios; a primeira namorada; o primeiro beijo; sem preocupações com a última, a primeira transada; o emprego na usina; as horas de sono e lazer não utilizadas em função do estudo; a bolsa na faculdade; a formatura; o emprego de executivo; as viagens; o casamento; o nascimento dos filhos; a criação do seu próprio negócio; a concordata; a saída da concordata; sua afirmação como um dos maiores empresários do país; as falcatruas; as pessoas que destruiu e aquelas que ajudou a crescer; lembrou...; lembrou...; lembrou...

Com pesar, deu-se conta que, paulatinamente, abandonara o cinema. Primeiro em função do estudo; depois em função do trabalho; após em função da busca de riqueza material e da afirmação social; e, por fim, pela morte de sua porção criança, que não resistiu à crueza da realidade que se impusera na luta pela vida.

Com o que poderia sonhar? Fazer um filme? Tarde demais. Já não tinha mais idade para isso. Na verdade, nunca tivera. Quando queria, era criança e não podia; quando pode, já adulto, não se permitiu sonhar e dar vazão a sua fantasia. Sequer operou uma filmadora naquelas ocasiões especiais, como nascimentos e aniversários dos filhos e netos, ou nas viagens a serviço ou de lazer. Tarde demais agora. Não cronologicamente, mas porque hoje não mais sabia sonhar. Nunca mais fora ao cinema. Jamais faria um filme.

De repente, no meio dos seus devaneios, surgiu uma idéia. Poderia se presentear e presentear a mulher com quem dividia sua vida há quarenta e cinco anos com algo que, em parte, resgataria algo que perdera ao longo da vida. Sairia com sua mulher em uma longa viagem pelo mundo e, no roteiro, incluiria visitas aos mais famosos estúdios cinematográficos da terra. Sorriu e não teve dúvidas que colocaria a idéia em prática.

Quase adormecendo pensou ainda: não há idade para se ter sonhos ou para se concretizá-los, ainda que no outono da vida. Basta para isso que mantenhamos, não obstante as agruras da existência, a nossa capacidade de sonhar.

Maugo
Enviado por Maugo em 29/01/2023
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