É real?
E ela chega de novo. Quando menos espero ouço bem lá dentro de mim. Não tem padrão, às vezes estou calmo, às vezes muito atarefado, ou dormindo, ou com saudades de alguém ou com muita raiva, ou sono, fome, tesão. De qualquer jeito que eu estiver, ela aparece e me apavora. Ela não tem filtro, me manda fazer as piores coisas e eu não consigo dizer não. Já tentei ouvir música bem alta com fone, até missa eu já coloquei para ouvir nos meus fones, gravo as vozes de minha mãe, irmão, sobrinhos amigos para ouvir bem alto. Durmo ouvindo qualquer coisa, mas nada sufoca o seu barulho. Não adianta, ela sempre está ali, imperiosa, pedante, manda. E como sabe mandar! Quando eu percebo já é tarde, já fiz o que ela manda. Dr. Ricardo me entende, quando conto para ele o que eu ouço, ele não ri e nem fica nervoso. Ele me prometeu que ia controlar esta coisa com remédio e conversa. Não acreditei, mas fiz tudo certinho como ele mandou. Ela sumiu um tempo e agora olha ela aí de novo.
Acordei em um quarto de hotel? Onde? Não sei. Com quem? Não sei. Estou apavorado, tenho sangue na camisa. Sangue ou ketchup? Não sei. Coloco a camisa suja na boca e chupo aquela coisa vermelha ou bonina sei lá. ketchup não é, pode ser sangue, um gosto de nada, grudento. Vou ao banheiro, meu rosto está com um roxo enorme perto de queixo. O lábio muito inchado, perdi um dente, onde? Tenho medo de abrir a porta e sair. Tenho medo de saber o que aconteceu. Cadê meu celular? Porque minha calça está rasgada? E este facão? Onde peguei? Está em cima da mesa de cabeceira deste quarto que eu não sei de quem é, onde é e porque estou aqui sozinho quase sem roupa, machucado e dolorido. Tenho certeza que foi a voz, agora a ouço lá dentro dizendo: esconda, fique aqui, não se mexa, você precisa deixar as pessoas te procurar e não achar.
Procuro por minha carteira. Tenho alguma mala? Que dia é hoje? Quanto tempo estou aqui? Estava dormindo?
Ouço vozes lá fora, sirenes de ambulância? Polícia? É para me socorrer? Me prender? Fui vítima de um assalto? Matei alguém? O giroflex de muitos carros de polícia iluminam mais o meu quarto. Quarto? Casa? Apartamento? A voz me comanda: pegue a faca e lute. Não deixa eles te capturarem. Lute por você e por todos que você ajudou nesta noite. Lute. Mate. Fuja. Corra...
Abro a porta do quarto e saio correndo com a faca na mão. Estou em uma casa, na sala várias pessoas que eu nunca vi deitadas no chão e muito sangue nos móveis e no chão. Falei com a voz: Você, eu, nós fizemos tudo isto? Onde estou? Ouço um barulho parecendo bala saindo de uma arma. A voz silenciou, eu caí no chão. Lembro de pensar: venci você desta vez. Você não me manda mais...
Márcia Cris Almeida
28/01/2023