Norte - Sul
Tinha uns dias que eu vinha me sentindo mal comigo mesmo. Como se eu estivesse estatelado debaixo de uma ponte, ou debaixo de um caminhão carregado de pensamentos ruins. Enfim. Eu vinha engolindo seco e ruminando minhas próprias crises até o ponto de não conseguir fazer nada direito no meu dia a dia. E era nesses momentos que eu mirava no copo e me jogava sem pensar duas vezes.
Eu estava encostado em uma parede, com um copo vazio na mão, quando Matheus se aproximou e perguntou se estava tudo bem.
Claramente não estava. Mas eu menti e fui até o banheiro.
Havia uma pessoa que estava responsável por escolher a música que tocava no ambiente. Eu não a conhecia, mas tinha certeza que ela estava tentando me matar. Uma atrás da outra, as músicas pareciam me lembrar de tudo o que eu estava lutando pra não pensar. Nesses momentos o álcool deixa de ser um aliado e se converte num inimigo ferrenho. Pensei em meter o dedo na goela e vomitar tudo o que havia bebido. Mas eu não era esse tipo de mau perdedor. Um capitão sempre afunda com o seu navio. E eu estava pronto pra me afogar. Seja com a cabeça no vaso sanitário, ou na próxima garrafa de cerveja. O que chegasse primeiro.
Quando eu saí do banheiro a dona do bar piscou o olho e sorriu pra mim. Eu nunca tinha ido naquele lugar, então não tinha como saber se ela só estava simpatizando com o meu estado alcoólico, ou queria puxar algum tipo de conversa.
Andei até a parte de fora do bar e dei de cara com meus amigos fumando e conversando alegremente. Ketley, Romário, Taís, Pablo e um desconhecido que parecia totalmente embriagado. Em um canto um pouco afastado Matheus tentava escapar do flerte de um magrelo careca com uma camisa estampada que parecia ter sido transportado dos anos 80.
Enchi o meu copo com a cerveja que estava em nossa mesa e me esgueirei por um espaço vazio e me escondi da chuva embaixo de uma marquise. Fiquei lá por um tempo, até que Ketley se aproximou com um cigarro entre os dedos.
- Matheus me disse que você estava querendo ir embora.
- Estou pensando nisso.
- Aconteceu alguma coisa?
- O que você acha?
- Tem mulher no meio né? Quando se trata de você, sempre tem.
- Sim... Minha vida e obra.
Ketley riu e deu um trago do cigarro.
- Eu gosto de você e da sua companhia, não tenho culpa dos teus problemas com tuas mulheres. Deixa eles pra lá e fica com a gente.
- É fácil falar, Ket.
- Eu sei. Mas sua raposa tá pedido.
- Vou fazer um esforço.
- Já é um começo.
- Tem momentos que tudo fica um pouco mais difícil.
- Eu sei. Dá pra ver que isso te afetou bastante. – Ela respondeu e me deu um abraço.
- Quando eu me apaixono por alguém, quase sempre acontece alguma coisa. Algum tipo de decepção ou traição. Às vezes acontece rápido, às vezes demora um pouco mais. Mas dessa vez precisou de uma rasteira pra que eu pudesse perceber que estava vendo a situação por um ângulo errado.
- E o que você está vendo agora?
- Não estou vendo nada. Só me lamentando por ter feito papel de otário de novo.
Dei um beijo na testa de Ketley e me afastei carregando o meu copo comigo.
A chuva tinha dado uma trégua, tomei a rua vazia, buscando um pouco de ar e silêncio.
Eu já tinha estado tantas vezes nessa situação que a sensação era familiar. Familiar como uma ressaca de domingo de manhã. Talvez por isso eu conseguisse manter a calma necessária para esperar que tudo passasse.
Depois de alguns minutos resolvi voltar para o bar que dessa vez estava em silêncio. Havia uma discussão ao redor do som, entre a mulher que escolhia as músicas e um bêbado que tentava buscar intimidade com todos que passavam por ele.
Puxei uma cadeira e me sentei junto a nossa mesa. Todos estavam do lado de dentro tentando apartar a confusão ao redor da caixa de som. Enchi novamente o meu copo e percebi que Matheus vinha se aproximando. Ele sentou do meu lado e me olhou visivelmente preocupado.
- Decidiu ficar?
- Sim. Não tenho nada melhor pra fazer.
- Você tem que se distrair, cara.
- Estou no processo.
- Que processo?
- No processo de tentar esquecer. Mas pra isso é necessário sentir um pouco e aceitar a dor.
- Faz sentido.
- Você já sabe o que aconteceu, não é?
- Sim. Pablo me contou.
- Pois é meu amigo. Nada de novo no front.
- Cara. Você tem todos os motivos para estar indignado. Eu estaria se estivesse no seu lugar.
Mas não faz sentido você se isolar por causa disso. Ela não merece.
- Matheus. Tanto faz... Que ela se foda e o meu pau cresça. Daqui pra frente é sistema Norte-Sul.
- Como assim?
- Ela no norte e eu no sul. Ou vice e versa.
Matheus deu uma risada contida e tomou um gole de cerveja.
- Essa foi ótima cara.
- Eu estava precisando disso.
- Disso o que?
- De um baque. Uma porrada, uma rasteira... Pra ver a realidade. Pra parar de romantizar uma situação fodida.
- Entendo.
- O amor sempre me deixa meio idiota. Meio besta. Minha mãe sempre diz que todo dia saem de casa um besta e um sabido. Dessa vez eu fui o besta. Está doendo agora, mas como em todas as minhas histórias, a dor acaba antes do ponto final.
Matheus ficou com os olhos cravados no chão, como se tivesse pensativo com as coisas que eu disse. Talvez em algum lugar da vida dele tenha existido um ponto final como o que eu tentava colocar na minha vida. Ou talvez ele estivesse apenas bêbado demais pra conseguir pensar numa resposta amigável para o momento.
- Vai ficar tudo bem, cara. – Ele disse depois do momento de silêncio.
- Tenho certeza que sim.
Me levantei e peguei um dos cigarros que Romário tinha deixado sobre a mesa.
Era um Gudang Garam de canela. Há duas ou três décadas atrás o cigarro valeria uma fortuna. Hoje nem tanto.
Eu não era muito dado ao fumo, mas achei que aquele momento merecia um trago.
Acendi o cigarro, me sentei na beira da calçada e puxei com força.
Segurei a respiração e soltei a fumaça pra cima, justamente quando a música voltou a tocar e junto com ela a minha vontade de desaparecer.