o circo

Das memórias inesquecíveis, ficou a do dia em que vi o circo

O circo chegou!

Gritava o homem em cima do caminhão, seguido por outro, mais baixo, baixinho...anão, no asfalto irregular do bairro.

Todos correram pra ver o circo.

A mulher de barba, tinha a pele das mãos, tão lisas e brancas, que pareciam lavadas à leite. Eram tão alvas que Cleópatra, a rainha egípcia, que ficou conhecida por sua crueldade e mania de se banhar em leite de cabra e outros produtos que não cabem listar aqui, perto da mulher do circo, era apenas mais uma rainha das que a história nos reservou.

Fato é, e ninguém discorda, que o circo, pelo menos por alguns dias, alterou a rotina da cidade. A moça tímida saiu espalhafatosa. O Rapaz galanteador, famoso por suas "cantadas", se recolheu, assim que o homem do trapézio foi visto e provocou certo frenesi nas moçoilas atentas a qualquer aparição masculina. As crianças , alheias a qualquer outro sentido que não fosse o de ver o palhaço, ficaram ansiosas, e, para desespero de pais e responsáveis, estavam sempre a beira da pequena "avenida". Homens mais velhos e suas senhoras, cientes de que o circo é um evento que causa certa ebulição, se dispuseram nas calçadas, e serenos, olhavam atentos a toda movimentação das moçoilas, dos rapazes e das crianças, igualmente alegres e "infantis". Todos unidos, num sentimento único, o sentimento de receber o circo como quem espera o mais esperado dos eventos. É como se o circo, tanto quanto num dia de Natal, representasse todas as alegrias. Como se o circo, assim como o nascedouro de novos tempos, fosse ele próprio a mensagem e o mensageiro, numa só configuração. O evangelho da alegria. O evangelho trazido por palhaços, homens-bala, domadores de feras, mulheres-barba, anões, gigantes, enfim, os novos mensageiros de um evangelho que ensina o riso como uma nova religião. Que traz o riso, e suas possibilidades de contágio, como um novo e necessário mecanismo comunicacional. O circo chegou!

O circo chegou! Não havia quem não soubesse da chegada do circo. Não se cogitava, mesmo que por falar, alguém não saber da chegada do circo. Todos, velhos e crianças, homens e mulheres, até o prefeito e sua comitiva, o bispo, o vigário, o delegado, o juiz, o bêbado, detido na noite anterior, para não colocar e se colocar em risco, de sua cela, pode ouvir e ver, pela grade, o circo a passar à frente da delegacia.

Um acontecimento! O prefeito, de olho na reeleição, arriscou improvisar discurso, seguido de aplausos e vivas pela comitiva, todavia, comitiva e prefeito, desistiram de continuar. Ninguém, mesmo alguns familiares, se deram ao trabalho de virarem seus olhares e ouvirem o prefeito. Mais que a presença de autoridades, o povo, que as conhecia muito bem, queria mesmo era ver o circo. Não queria desperdiçar tempo com discursos iguais e sem verdade, discurso de abestado, se diz na cidade. Também estavam fartos dos discurso do delegado. Discurso sempre igual, sempre de "combatemos o crime e os criminosos", mas que, todo mundo sabia, tinha parentes recebendo verbas da prefeitura sem prestar nenhum serviço. Igualmente o padre. O padre, velho conhecido por seus exageros eclesiásticos, falava tanto do inferno que para alguns o céu era apenas uma palavra sem sentido. Não, ninguém queria ouvir discursos.

O padeiro, sempre atento aos gostos da população, e da criançada, em particular, de imediato ordenou ao chefe da confeitaria, que aumentasse a produção de suspiros e sonhos, para distribuir com balas e marias-moles, em agradecimento pela passagem daqueles artistas. Dizem que ele chorou ao ver o homem das pernas de pau. Que, ao vê-lo, se pôs às lágrimas porque isso lembrava seu tempo de criança e da primeira vez que viu o circo. Pensou em fugir com o circo, mas o amor pelo pai e pela mãe, não deixou. E do momento que o anúncio do circo se fez presente e conhecido por todos, o homem da padaria, como se retornasse aos tempos de criança, largou massas e bandejas; correu à porta do estabelecimento e dali não saiu, igual ao apaixonado à espera da amada para que dela receba mesmo que só um sorriso. Ali ficou, comemorava e sorria para cada artista que passava. Arriscou até uns beijos jogados às bailarinas/acrobatas. Encantou-se com o mágico que fazia aparecer flores na cabeleira do Seu João, homem já próximo aos 90 e que sorria como se aquele fosse o último de uma existência começada na roça e na roça vivida. Na roça, e da roça, criou-se e criou seus filhos. Os netos, alguns foram para a cidade, se formaram e se tornaram doutores, como se diz a gente da roça.

No alpendre da casa Verde, cada de dona Isa, como chamavam Ivanilda da Rocha Matos Matoso Alburquerque de Orleans Bragança Araraquara Prado da Silva Pedra Pedreira Pereira da Silva Silveira, dona Isa, ou Zá, para os netos e bisnetos, dona Isa dizia ser descendente dos Orleans e Bragança, os mesmos, do Pedro, quer dizer, Dom Pedro, o rapaz mimado do império, que se rebelou contra o pai, outro Dom, e que, num dia de fúria (a quem diga de cólica intestinal), como quem resolve dar seu Grito, passando por um bairro de São Paulo, Ipiranga, vindo de Santos (foi ver uma amante, diziam os influencers da época), resolveu dar seu Grito. Independência ou Morte!, foi o que ficou pra história. Há quem diga que não, que o real grito fora um beeemmm diferente do que ficou nos anais históricos. Fato é que dona Isa, digo, dona Ivanilda da Rocha Matos Matoso Alburquerque de Orleans Bragança Araraquara Prado da Silva Pedra Pedreira Pereira da Silva Silveira Epaminondas Espanta Mosca Mosquito (ela omitia esse finalzinho), fato é, que a senhora da casa Verde, estava tão irradiante que não havia quem não notasse em suas risadas e aplausos efusivos. Verdadeira representante de uma nostálgica, outrora, importante, aristocracia, dona Isa, àquelas alturas da idade, e do local onde se encontrava, dona Isa, quase uma criança, chamava atenção por seus espalhafatosos Gritos de "viva!"

Pensar numa nova possibilidade, nada mais, eis, ao que parecia, ser as boas novas que o circo trazia. Pensar numa racional tentativa de se dar ao riso, e só isso, dar ao riso o primado de sua maior, e talvez, mais importante razão de existir. O riso como o caminho, a trilha, por onde trafegam as mais variadas idades, cores, credos, etnias, enfim, o riso como a verdadeira manifestação inconteste de que não há diferenças. O riso, e somente ele, como o demarcador de que, com o riso, vem a alegria, a feliz alegria de que somos o que somos porque sorrimos. E ao sorrir, seja homem, mulher, velho ou criança, quem sorri, permite que sobressaia nossas mais íntimas e secretas sensações. O riso rompe as fronteiras da etiqueta, dos gestos ensaiados, da polidez forçada e repressora das sociedades baseadas na lógica hierárquica que nada constrói. Bem o contrário, a hierarquização põe à baixo o que se tem de mais precioso na espécie humana: a possibilidade do encantamento com o devir sem amarras. O circo e o riso, juntos, de mãos dadas, como irmãos siameses, transformou a cidadela e seus habitantes. Um dia inesquecível. Um dia memorável.