ISONOMIA
José acordou às 5:30 naquela manhã de sábado.
Ele não iria trabalhar de ajudante de pedreiro aquele dia, porque o empresário dono da obra havia paralisado o projeto.
Já fazia mais de trinta dias que aquele edifício de doze andares estava parado e José procurava emprego.
Ele até foi conversar com seu João Cláudio, o dono da construtora, que comandava o empreendimento, mas ele estava em outro trabalho e não queria ser perturbado.
José pediu emprego na nova construção, mas não havia mais vagas.
O problema é que Jandira, estava cobrando há dias, o leite da filha de quatro anos, que todos os dias chorava sem parar.
Mas, claro que não era só isso. A água e a luz estavam no corte e quando a esposa abrira as latas de arroz e feijão que estavam se esvaziando em cima do minúsculo armário de madeira apodrecida que havia na cozinha, ela percebera que aquela combinação da mesa de todos os brasileiros, daria apenas para mais um almoço, ou uma janta que fosse.
José era um cara arrojado e lutador que se aventurou em deixar o Nordeste, para enfrentar a turbulência e a rotina ensandecida de uma Capital desse Brasil imenso.
“Agente vai se dar bem Jandira, lá o dinheiro “corre” e eu ainda quero voltar aqui pro Nordeste e ajudar todo esse povo pobre, que sofre dia e noite sem parar’.
Uma reflexão bonita e sonhadora de José, mas talvez, no Nordeste, ele não tivesse internet, nem televisão e muito menos jornal impresso; talvez nem soubesse ler, para poder descobrir (e só descobrira depois) que nas grandes Metrópoles do País, hoje em dia, a “guerra” está cada vez pior e a luta dos “cachorros de rua” por uma migalha de pão que cai da mesa dos “cachorros grandes” está cada vez mais difícil, selvagem e desigual.
Talvez, José apenas sonhava e sonhava demais, porque um dia alguém partiu de sua terra e se deu bem na vida. Talvez um tio, um primo, um amigo ou outro parente qualquer. Claro, aquilo havia acontecido há anos, mas José ainda sonhava, ainda pensava que, ao deixar o sertão sofrido, o céu ardente e o sol escaldante da sua terra, certamente “ganharia o mundo”, seria um homem de respeito, sua filha poderia ter uma boneca; enfim... meu Deus uma boneca! Quem sabe a Barbie, o sonho de todas as meninas, quem sabe aquele estojo de maquiagem que um dia ela viu na televisão da rodoviária, enquanto aguardava o ônibus que trazia sua avó do lugar onde fazia tratamento de saúde, alguns dias antes de morrer.
José se esgueirava pelas madrugadas do grande centro urbano e enfrentava filas quilométricas para tentar algum emprego, mas as portas se fechavam a cada dia mais.
Naquela segunda-feira, José tentava de novo (o leite havia acabado e o arroz e feijão também), ele ficou o dia todo em busca de empregos em diversos lugares. Não comeu, não bebeu água e ganhou uma lesão nas pernas por ficar quase que o dia inteiro em pé, mas, emprego mesmo, não arrumou nada.
Já eram quase quatro horas da tarde, e José se lembrou que tinha que correr até a escola pública do bairro, para pegar o leite que o governo fornece àqueles que têm necessidade, embora, (a gente já sabe) na prática, vai para muitos que podem pagar por ele.
Já era tarde, o leite gratuito havia acabado e a mulher do cadastro informou a José que ele necessitava renovar a ficha e trazer documentos, senão no próximo mês, ele ficaria sem o leite. Ele pensou: “De que adianta isso, se já fiquei sem o leite o mês inteiro e agora não consegui pegar. Será mais um mês de espera! E a minha filha? Eu não vou trazer documento nenhum, que porcaria é essa?”.
José sentiu na pele, como é torturante, revoltante, humilhante e triste, muito triste, querer trabalhar e não poder, como é duro, é duro demais, sentir a dor no peito de que sua filha chora por um leite e você não tem pra onde correr.
Como voltar agora pra casa? O que Jandira vai dizer?
Ele lembrou então do “Robertão” o cara da borracharia ao lado de sua casa e que o acudiu algumas vezes.
José caminhou confiante de volta. Ele rezava e pedia, a fim de que “Robertão” lhe quebrasse o galho mais uma vez e arrumasse, nem que fosse “cinquentão”.
“Tenho certeza que ele não vai me negar, afinal, ele sabe que sou um cara trabalhador, saio de casa todos os dias muito cedo e só não estou trabalhando porque a obra parou e eu não consegui outro emprego”.
Mas, quando José chegou, a borracharia estava fechada; ele pediu licença para entrar na residência e pedir o dinheiro emprestado, mas ele não foi bem recebido e ouviu:
“Ei cara, você ainda não me pagou nem aqueles trinta da semana retrasada, meu irmão! Eu não tenho mais dinheiro, malandro!”.
José pediu para ser ajudante na borracharia, nem que fosse para quitar os trinta e receber mais cinquenta, mas foi logo avisado de que não havia necessidade de funcionário.
Ele saiu cabisbaixo e não teve coragem de entrar em casa.
E então, tomou rumo incerto e saiu desnorteado.
Ao chegar próximo ao edifício onde trabalhava e recebia todos os fins de semana (e ficava feliz, pois nessa época não faltava comida em casa, e a filha tomava seu leite e sorria pra ele), ele avistou um carro importado de luxo, era um “PORSCHE CAYENNE COUPÉ” do empresário dono da obra, dono do empreendimento, e José então apertou o passo.
Aproximando-se do poderoso empresário, ele perguntou quando a obra retornaria.
O homem pouco se importou com a pergunta e disse a ele que isso era problema da construtora.
Mesmo sendo recebido a “coices” e com indiferença, pensando em sua pequena, que chorava alto no quarto, pensando em Jandira que, certamente o cobraria por mais uma busca sem sucesso, por mais um fracasso e iria pensar que ele não era um homem de verdade, pois não tinha capacidade nem de manter o leite da própria filha, José arriscou e contou seu problema ao “todo poderoso” que foi impassível e indiferente.
Isso era problema dele e do pedreiro chefe, o dono da construtora. Imagine só, ficar dando dinheiro assim, sem mais nem menos para um vagabundo qualquer.
O homem entrou na potente máquina e foi embora.
José sentou então à frente do edifício e ficou pensando que, se não fosse por ele e tantos outros homens (iguais a ele) que sofrem dia e noite pela desigualdade e indiferença constantes, se não fosse por ele e tantos outros caras, que jamais irão morar em um edifício daqueles, talvez esse mesmo edifício nem existisse.
E então, ele refletia com desespero, será que era só ele que tinha que passar por tanta dificuldade e humilhação? Será que, só ele que queria apenas ter um lar digno, dar o que comer à família e poder trabalhar feliz e realizado.
Ainda bem que José continuava desinformado e à margem da realidade do seu País, pois ele mal sabia que mais de quatorze milhões de brasileiros estavam na mesma fila que ele.
Naquela noite, José voltou pra casa. Mas antes, ele passou no bar do Seu Anísio.
Meu Deus, fazia mais de dez anos que José não bebia e quando ele entrava em um bar era para comprar um salgado, talvez um doce pra levar pra sua filha, ou tomar um refrigerante.
Mas, naquela noite, José se sentiu derrotado, impotente e humilhado e a bebida seria um refúgio, um consolo, uma anestesia e uma saída para sua desgraçada sina, ainda que por um breve espaço de tempo. Afinal, para tomar uma, duas ou três “cachaças”, não precisa ter dinheiro, pois companhias de boteco e consumidores de álcool, era o que mais existia nos bares da vida.
José finalmente chegou em casa. E, então, a discussão começou. Não tinha como não começar, pois, por mais que Jandira não quisesse ofendê-lo ou causar brigas, ela tinha que cobrar uma posição: “E o emprego? E o leite da filha? E essa construção não vai voltar nunca? Não tem outra em que você possa trabalhar?”.
Não, nada disso havia dado certo.
A criança dormiu após chorar por algumas horas. Jandira conseguira um copo de leite com a vizinha e foi isso que fez com que a menina dormisse um pouco.
Jandira estava com fome, com muita fome, mas ela dormiria assim, mais uma noite.
Antes disso, porém, ela deixou claro, que iria voltar a trabalhar de empregada doméstica na primeira residência que encontrasse. Pois antes, logo que eles chegaram ali naquela Capital, ela trabalhava como faxineira e empregada em algumas casas e o dinheiro ajudava bastante.
Mas, ela havia parado de trabalhar, quando a filha nasceu, mas agora, daria um jeito de arrumar alguém pra ficar com a pequena ou então deixá-la na creche o que seria mais adequado.
Mesmo com fome, Jandira foi para o quarto e chorou baixinho perguntando o porquê de sofrer tanto, já que o jogador da seleção brasileira ganhava um milhão por mês (ela teria ouvido no rádio) e ela só queria ter um lar decente, um pouco de paz e a dignidade de poder comer. Após soluçar por algumas horas ela enfim pegou no sono.
Mas, José não iria dormir naquela noite e novamente ele deixaria a casa para subir o morro.
Lá em cima, as coisas eram diferentes e se ele estivesse disposto a entrar no inferno, dinheiro não seria problema.
Antes de falar com o “piche”, bom ele conheceu o “piche” lá na borracharia do “Robertão”, o cara comandava o morro e arrumaria um “trampo” legal lá em cima, era só questão de mostrar pro chefe que era de confiança e que estava disposto a vestir a “camisa de força”.
José não queria mais esperar pelos políticos, nem pelo dono da obra, nem pelo pedreiro chefe, nem pelo emprego de Jandira; José não queria mais esperar para pedir cobertor para o padre, nem cesta básica na fila da paróquia, nem mesmo alguns trocos emprestados e muito menos pela assistência social do bairro que dissera a ele que faltavam documentos no cadastro do leite.
Ele então contou a sua história para o chefe e o “piche” fez cara de desconfiança e rezou as lições da cartilha a José e já de cara lhe mandou: “A lei do morro não emite boleto e nem promissória, não manda recado, nem espera e muito menos volta atrás, ou seja, malandro, pega seu “brinquedo” que a dança vai começar”.
Agora José estava disposto a ganhar dinheiro, de qualquer jeito, mesmo estando cara a cara com o diabo todos os dias. Ser respeitado, ter dinheiro rápido e garantido para comprar o leite da filha e ver Jandira sorrindo era tudo que ele queria.
José se recordou de quando ainda era um menino no sertão nordestino e ajudava seu pai na roça, levando marmita todos os dias para o pai no sertão, enfrentando chuva, sol e vento e que, mesmo com tanto sofrimento, ele não deveria ter deixado o sertão, seu cantinho, sofrido, isolado, mas feliz. Lá Jandira fazia sopa, colhia abóbora e quiabo e de vez em quando deixava uma carne de porco sobre o fogão de lenha para comer por alguns dias.
E agora, como voltar? Sem passagem, sem dinheiro, sem rumo? Como esperar pelos homens corretos da sociedade? Os homens que geram empregos, os homens que criam as leis e os programas para a população ser mais feliz? Como esperar pelo cara bom que certamente ele votaria na próxima eleição?
Até onde e quando as pessoas vão para sobreviver ou ao menos pra poder comer?
José, homem de parca instrução, mas correto e trabalhador, estava agora olhando para suas mãos onde havia entre os dedos uma “Pistola GLOCK G17”, que espantava o próprio demônio.
Mas José nunca havia pegado em uma arma antes! Como manusear aquilo?! José, homem simples do sertão nordestino jamais se envolvera em coisa errada.
Não era possível que um bom homem que tinha lá na roça, lá no sertão, dois cabritos, alguns porcos e umas vacas magras, (mas ainda assim sobrevivendo), teria agora que enfrentar o “mundo cão” pra poder comer?!
Eu não sei se você pode perceber isso, mas o crime (bom pelo menos eu acredito nisso), é muito mais um fato social do que jurídico.
O que eu quero dizer, é que a desigualdade social tomou proporções dantescas, que, muitas vezes, pessoas boas, são levadas por alguma razão a cometerem crimes ou perder a visão da vida.
É claro que os discursos que nos condenam e certamente condenariam José, podem fazer e de fato, fazem algum sentido:
“Eu já passei coisa pior e nunca roubei nada de ninguém; eu passei fome e sempre fui correto; vagabundo, nunca prestou, por isso que agiu assim! Eu passei todas as privações do mundo e venci, hoje estou aqui para provar que é possível vencer honestamente. Isso é desculpa de derrotado, isso é discurso de piedade!”.
Todas essas ilações podem fazer algum sentido, e, de fato, é louvável e muito nobre a trajetória de quem conseguiu vencer.
Mas, por outro lado, há uma citação musical que, na vida de muita gente soa como verdade irrefutável:
“Toda vez que algo nos falta, o invisível nos salta aos olhos”.
E naquele momento, José estava cego. Talvez, cego pro mundo, cego para as indiferenças, cego para a frieza da soberba humana, cego para as portas que se fecharam em uma segunda feira de manhã quando ainda havia esperança nos olhos e sorriso no rosto; cego para os homens de bem, (ah as pessoas do bem!), cego pra a hediondez da escória humana, cego para o mundo e para a vida.
No primeiro dia em que José iria começar a “empreitada”, ele subiu o morro decidido, e quando deu de frente com “Piche” as ordens foram dadas. Porém, elas não seriam cumpridas.
Jose não conseguiu entrar para o mundo do crime. José não queria atirar, José não queria usar uma arma, José não queria praticar a violência, José não queria eliminar uma vida humana (sacrificar uma mula que já estava condenada lá no sertão nordestino, foi tarefa difícil), José não queria ser criminoso.
Ele pensou em Jandira e sua filha sorrindo e então ele recuou.
Ao retornar com lágrimas nos olhos e devolver a Pistola GLOCK G17 ao chefe do morro, José levou uma coronhada na cabeça e dois subordinados de “piche” trataram de dar uma liçãozinha no malandro, para aprender que com ele não se brinca.
José desceu o morro, ensanguentado, com os olhos roxos, mas dando gritos insanos e emitindo risos altos. Qualquer pessoa que visse aquilo podia afirmar com certeza, que se tratava de um louco, mas, mal sabiam que José havia se libertado naquele momento.
Jandira havia encontrado apenas uma casa para fazer faxina, mas o homem rico e poderoso havia dito que ela era: “uma mulatinha comível” e que, além do dinheiro que iria receber, ele poderia lhe oferecer mais alguns “agradinhos”.
Jandira, mulher honesta e recatada, fiel ao marido com todas as privações que passava na vida, simplesmente não voltou nunca mais.
José refletia amargamente: Seu País do qual tinha orgulho em cantar um pedacinho do hino nacional (era o que ele sabia), vestir a camisa verde amarela, quando aquele jogador que ganhava um milhão por mês entrava em campo na copa do mundo, dizer aquela frase que alguém fez ecoar por aí, e que não tem nada de simpática: “sou brasileiro e não desisto nunca”; seu País, seu berço, sua pátria, que não o acolhia bem; seu País, parece que não o amava de verdade. Pois, para poder viver com sua esposa e filha, ainda que fosse uma vida modesta, desgraçadamente humilde, simples e insignificante, era preciso se tornar um criminoso ou então roubar pra poder comer? E sua esposa, para ser faxineira, era preciso, primeiramente aceitar ser prostituta?! Não, definitivamente não! Não era esse o País que José sempre sonhou e tinha orgulho em viver.
Mas, ao mesmo tempo, o deputado, o presidente, o senador da república, o senhor Ministro, o dono da multinacional milionária, o diretor da estatal, os latifundiários, os banqueiros, meu Deus! o Brasil é tão lindo e maravilhoso pra eles! Mas, mesmo assim, essas pessoas iam morar nos Estados Unidos, ou na Europa, como assim? Puxa, como que alguém que diz amar tanto o seu País, vivendo tão bem aqui, pode ir embora? Por que será? José nunca entendia aquilo. Ele só queria ser feliz e ter uma vida digna, ele queria trabalhar; meu Deus! Ele não queria nada de graça, ele queria trabalhar e poder viver em paz com sua Jandira.
Não, isso não está certo e nunca estará, José era honesto. Ele não iria entrar para o mundo do crime e mesmo apanhando, levando coronhada na cabeça com o sangue escorrendo no rosto, José voltou pra casa. Ele preferia passar fome por mais um tempo a tornar-se um criminoso.
Ele aguentou firme por mais um tempo. Não passou mais fome, porque “ainda há gente no mundo” (embora o Fernando Pessoa duvidasse, em linha reta) e as cestas do padre Charles salvaram sua família por mais alguns dias.
Mas, a luz no fim do túnel iria clarear para José.
Na segunda-feira, quando Jandira saiu para deixar a filha na creche e fazer mais algumas faxinas, José foi procurado por João Cardoso, um homem que era responsável pela construção de uma rede de lojas em diversos lugares do País.
Um bom homem, homem de Deus, havia indicado o nome de José.
Após anos de sofrimento, vendo a desgraça de perto todos os dias José enfim foi convidado para fazer uma experiência na “Cardoso & Silva Construtora”.
Era uma empresa que havia fechado um contrato de parceria de obras padronizadas, com o fim de construir diversas lojas de uma grande e famosa empresa do setor varejista e que depois se espalharia pelo Brasil inteiro.
José agarrou com as duas mãos e com toda força que um sertanejo nordestino, sofrido, judiado e arrebentado de sol a sol poderia agarrar. Era uma final de campeonato e ele não podia perder essa partida.
Foi aguerrido, deu o sangue e mostrou a raça.
De ajudante de pedreiro a encarregado de obras em dois anos. Mesmo sendo analfabeto, sua disciplina, sua dedicação, sua pontualidade, sua honestidade e respeito valeram o ingresso para o patamar de cima.
José agora estava feliz. Jandira sorria e a pequena Cecília estava estudando de barriga cheia, calçados nos pés e uma blusa decente para não passar mais frio como antes.
José tinha até mesmo um plano de saúde e ele agora viajava por diversas capitais para trabalhar naquelas construções.
Parece que a vida de José, enfim havia melhorado. Ele acreditou nisso e talvez esse desfecho mostre que vale a pena ser honesto e esforçado e nunca desistir, mesmo aqui no Brasil? Sim, certamente vale a pena e certamente José venceu, mas isso não muda o cenário, não muda o panorama, não muda a desigualdade social, não muda a corrupção e não muda o fato de que muitas pessoas boas como José, mas não tão fortes quanto ele, podem se enveredar e muitas vezes se enveredam para o mundo do crime e de lá não saem nunca mais.
José sabia que, mesmo se tornando um exemplo, um herói, um grande vencedor, era preciso tomar cuidado, pois a vida bate forte, o mundo é impiedoso e que, “nas curvas do futuro, muito carro capotou”.
O encarregado José agora, ajudava algumas pessoas mais pobres que vinham lá da sua região do Nordeste e lhes dava empregos; comprava algumas cestas básicas para quem precisava e até podia se dar ao luxo de comer um churrasquinho com Jandira aos domingos.
Mas, quando José olhava para trás, ainda via um abismo, um mar de injustiças, um povo sofrido e escravizado, que só tem mesmo consolo quando chega ao fim de mais um dia, para poder passar nos botecos da vida e tomar uma cachaça e ir para casa, para recomeçar tudo no dia seguinte. Que, nas quartas e domingos assistem ao futebol como espetáculo e diversão. E o que dizer das mulheres, que sofrem cantadas, discriminação e humilhação de uma imensa camada misógina e machista de seu País? A única diversão é ver os filhos crescerem, cuidar do lar e assistir algumas novelas e programas na televisão.
Afinal, não é todo mundo que pode fazer compras em Miami, né? Bom, mas pelo menos dá para ver pela internet, ou “ir até lá” pelo Google Earth. (Ah! A tecnologia é um consolo também).
José no podia mudar isso, mas ele tinha esperanças que seu País iria se tornar melhor, estava se tornando melhor. José ainda batia no peito e se orgulhava de ser cidadão, patriota e filho da “Pátria Amada Brasil”, o que combinava inclusive com a única passagem do hino nacional que ele sabia cantar.
O tempo passou e José viu Cecília crescer um pouco, e sua vida melhorar, mas, comparada a tantas desproporções, ele ainda era mais um José, um analfabeto que trabalhava como o “Sansão” de George Orwell para ter uma vida razoável. Mas, comparado a tudo que havia passado, ele estava bem e feliz.
Mas, em um domingo de dia das mães, quando José estava em casa, ele havia ido até o velho bar “São Judas” para buscar um frango assado para o almoço especial e ficou ali conversando um pouco e matando a saudade de alguns velhos amigos, e alguns dias depois, José sentiu fortes dores de cabeça, sua garganta secou e uma coriza forte começou.
Durante a noite, José sentiu febre e calafrios. Sua respiração estava ofegante e o oxigênio diminuindo a cada minuto.
O José brincalhão, o José lutador, o José exemplar, o encarregado de construção, marido da Jandira e pai da Cecília fora levado às pressas para o hospital, sua falta de ar era constante e só aumentava.
José foi posto no oxigênio e entubado. Mas, naquela madrugada ele não resistiu e veio a óbito no Hospital Municipal “Nossa Senhora de Fátima”. E lá se foi o “José Brasileiro”, mais um homem que amou o Brasil, mas não foi amado.
José fez de tudo nessa vida e lutou forte por um pouco de dignidade, mas nessa época havia no Brasil (e no mundo) uma pandemia, que até a data da morte de José, já havia vitimado mais de quatrocentas mil pessoas.
Ele tentou se cuidar, (na medida de suas instruções), mas ele foi vítima de uma coisa que ele mal sabia falar: “Um tar de coronha vírus”.
É, a gente sabe disso, Coronavírus ou doença da Covid-19, não importa.
O que importa mesmo é que o País de José, demorou novamente, foi tardio, omisso, falho e ineficaz, pois José, homem de mais de sessenta anos, poderia ter recebido duas doses da vacina e continuar se sentindo orgulhoso de ser encarregado na vida. Mas não, não deu tempo pra isso.
Aqui as coisas são assim, chegam tarde, demoram, desmoronam sonhos e quando chegam é sempre tarde.
Mas José, puxa cara! Fique orgulhoso, afinal seu País conseguiu ser o primeiro, conseguiu o primeiro lugar, como o País mais atrasado do mundo em vacinação. É José, muitos morreram e muitos ainda morrerão.
José só queria ser feliz no seu lugar, José só queria um Brasil igual para todos, porque um dia o seu Inácio que era advogado lá no sertão nordestino, leu para ele, que, na Constituição Brasileira estava escrito, que todos eram iguais perante a lei e sem distinção de qualquer natureza.
José só queria um pouco de alegria, José só queria que existisse Isonomia.
E Drummond, depois de tudo isso nos diria, com ou sem fé:
“E agora José?”.