Memória molhada
Chaleira com água no fogão aceso, filtro cheio de pó de café. A cozinha apertada estava um pouco quente, então ela abriu a janela para sentir a brisa macia e fresca entrar. Olhando seu quintal de grama seca, ainda viva, mas sem muita cor, lembrou-se das tantas semanas sem chuva. Ao menos as roupas recém-lavadas no varal secariam logo, mas olhando para o céu com atenção, apesar do calor, notou nuvens escuras naquela tarde.
Imediatamente, perdeu-se em pensamentos e lembrou-se dele — ele amava a chuva, mas odiava os trovões. Ouviu então sua voz aguda e doce chamando por ela:
— Mãe!
Ele já havia entrado com os pés descalços e sujos de terra em contato com o piso limpo, uma flor qualquer em mão, talvez mais uma das inúmeras apanhadas do jardim de algum vizinho, contudo, ela não se importava. Sentia sempre como se acabara de receber a mais rara e preciosa flor do mundo. Na verdade, nem era a flor que a alegrava tanto, mas ouvir sua voz, abraçá-lo, perceber seu corpo miúdo e suado, depois de tanto brincar no lado de fora durante a tarde inteira, e poder sentar-se à mesa com ele no fim da tarde: ele tomando leite, ela, café.
Chegava então a chuva em poucos pingos grossos, gradualmente mais densa, banhando o lado de fora. Ele se sentava próximo à janela, na cozinha apertada, e ficava admirando a chuva cair. A cor cinzenta do dia e o som das gotas caindo nas telhas e no chão traziam certa tranquilidade para aquele momento. Eles ficavam então lado a lado, atentos à vida líquida que caía do céu, conversando sobre qualquer coisa. Não era necessário afirmar em palavras o que sentiam. Era claro para os dois. Era real. Era mútuo.
De repente, enquanto um clarão rasgava o céu em direção ao chão, seguido de um alto estrondo, ela piscou os olhos repetidamente, agora cobertos por óculos que refletiam a luz do relâmpago. Ele não estava mais lá. A chaleira apitava no fogão. Pelo menos a chuva ainda caía lá fora e era real, não apenas uma lembrança. Ela então se levanta e despeja a água fervente no filtro de café, inundando a casa com seu aroma. Caminha até a sala, parando ao lado de uma pequena mesa num canto, onde repousava um telefone. Assim que o retira de sua base, começa a discar um número que está tão bem gravado em sua memória. Fica silenciosamente aguardando, até que uma voz, grave e doce, responde do outro lado da linha:
— Alô?
Com um sorriso estampado em seu rosto marcado pelo tempo, ela respondia ao ouvir aquela voz que, apesar de ter mudado tanto, ainda lhe soava tão familiar. Agora ela já nem se lembrava mais das roupas no varal. A chuva continuava lá fora. A grama já não secaria mais.