IMACULADA

A música era repetida por várias vezes durante as novenas e os grupos de orações que ocorriam todas as semanas. As palavras confundiam-se com a melodia. Algumas letras viravam notas que deixavam de existir.

Ela cresceu ouvindo esta música. A única que sua mãe sabia de cor. Quando ela nasceu, a sua mãe não teve dúvidas de qual nome ela teria.

A missa era possível apenas nos finais de semana. Durante a semana, a mãe dela participava de grupos de orações e terços a noite. A filha era uma benção, um presente divino. Desejava o melhor e o sublime para ela. O mais do que seria possível.

Quando tinha um ano e meio de idade, o pai abandonou as duas. Sua mãe teve que trabalhar na panificadora, ela ficava ao seu lado. Seu coraçãozinho, do tamanho de sua mãozinha fechada, crescia contorcido. Sofria pela ausência do pai e pela distância da mãe.

Quando via um pai brincando com os seus filhos, corria para junto deles. Ele a ignorava. Olhava para as costas daquele pai. O tempo não parava de demorar para passar. Estrangulava o seu pescocinho. Não tinha como dizer.

Cresceu com a cresça de que um pai presente daria segurança e estima para a família. Via a mãe cada vez mais distante e apática. A carência trilhava o seu caminho. Desde pequena sofreu preconceito por ser miudinha, magrinha, com aspecto de desnutrida e meio acinzentada e, também, por ter sido abandonada pelo pai. A chamavam de Maculada.

Conforme foi crescendo, ajudava a mãe na panificadora. Não recebia por isto. Sua alimentação não a ajudava. O café da manhã, o almoço e a janta eram ali. Os exames de sangue, urina e fezes refletiam a fala do seu corpo que pedia socorro.

Sempre estudou em uma mesma escola, aquela ao lado da padaria. De madrugada, saia de casa com a mãe que ia para o trabalho. As 7:20 horas ia para a escola pública.

Era dedicada, mas tinha dificuldades para aprender. Suas notas eram medianas, o suficiente para passar de ano. Muito quieta e de poucas amizades. Sentava-se na primeira fileira, ao lado da mesa da professora. Sempre disposta a auxiliá-la.

Em um dia, saiu da aula para ir ao banheiro. Estava sozinha no das meninas. Chegaram os meninos, da mesma idade ou um pouco mais velhos. Trancaram a porta.

- Quero ver a "Maculada"

- Menina do terço?!!!

Riam dela enquanto aproveitavam da oportunidade.

Novamente, não tinha como dizer e o tempo não parava de demorar para passar. Este tempo ficou selado. Era pré-adolescente. Não podia falar.

Naquele redemoinho de vida, cresceu. A idade fê-la mulher imatura.

Casou-se com os valores de menina, aquela prestativa que se sentava ao lado da professora. Teve três filhos, dois meninos e uma menina.

Quando estava grávida do filho mais novo, soube do paradeiro do pai. A vida inteira, a mãe trabalhava para o mínimo e, o pai casado com uma mulher de bens, com filhos tendo a sua presença. Novamente, não tinha como dizer. Já estava habituada ao transcurso do tempo. Naquele redemoinho de vida, ela se encontrava soterrada em meio aos destroços.

Como sempre, o que não se resolve, as vezes tarda, mas não falha em se repetir. O marido a deixou com os três filhos pequenos. Diferente de sua mãe, ficou com o apartamento e com uma boa pensão.

Por algum tempo, parece que o tempo deixou de ser unidade de medida, não passava ou não existia. Parece que estava morta e viva ao mesmo tempo. A sua incapacidade de dizer permanecia.

O tempo passava lento.

Libertou-se daquela menina reprimida. Libertou-se daqueles homens iguais de berços diferentes que lhe foram referência. Ficou robusta. Quando a chamavam de gorda, ela retrucava dizendo que era gostosa e fogosa, perguntava se queriam experimentar. Tornou-se corada. O colesterol estava no limite. Os exames diziam que o seu corpo estava sedento de vida e que podia mais. Tornara-se mulher madura, já com alguma idade.

As marcas estavam nos seus poros e nos seus rebentos. Não tinham como livrar-se delas. Passou a ser o redemoinho. Forte.

Ensinou para os filhos que não se controla pessoas. Ela dá suporte e estrutura para eles. Uma excelente cozinheira que provê os filhos com a sua profissão.

Sua descarga: a vizinha do andar de cima. Nunca a viu. Independente do momento, a importuna em função de barulhos que não existem. Qualquer coisa que cai no chão no apartamento de cima, a faz despejar os resquícios de um passado que passou. Aproveita a oportunidade para gritar e soltar a voz que lhe fora reprimida por anos e que lhe tirara a infância e a sua jovialidade.