O ancião e o calouro
Entusiasmado era a palavra certa para o estado de espírito de Sávio.
Dezoito aninhos e um deus na barriga.
Fora nerd, claro. Já riscava da lista de disciplinas aquelas para as quais muito pouco estudo certamente seria necessário: já devorara as principais obras em pdf nos anos do ensino médio!
Já tinha até um título para seu TCC: As Metáforas na Constituição da Linguagem Verbal. Era fascinado por tudo que dizia respeito ao signo, ao símbolo, ao ícone ou ao que quer que mantivesse relação com a representação. Passava horas e mais horas consigo mesmo, edificando altíssimos arranha-céus de lógica da linguagem. Eram andares sobre andares de “ses” e “entãos”. Considerava-se quase no cume...
Do “Dr.” orgulhosamente desdenhava. Seu objetivo era apenas chegar na pontinha, lá bem na pontinha, onde a vertigem seria mortal e, portanto, não se devia olhar para baixo; lá onde um esticar de braços colocaria seu indicador em contato com o do Criador...
Seu Zé, da esquina, pacientemente ouvia as elucubrações do jovem calouro enquanto lhe servia o dog prensado, o melhor da cidade, segundo ele mesmo. Iletrado, um tanto quanto parvo, para dizer a verdade, Seu Zé, José da Silva para ser exato, vinha passando suas décadas atrás do balcão do Cachorrão do Zé. Mulato de pai preto e mãe branquela, sua vida não lhe permitira a leitura, mas não lhe impedira o tirocínio. Seus dentões brancos como neve e duros como diamante, um dom de Deus ele dizia, representavam seu PhD na sutil arte de encantar com um sorriso também mestiço: mestiço de sinceridade e simpatia. No barraco, uma velha gaveta de um respeito conquistado guardava seu sustento sem chaves. Um telhado de zinco sustentado por ripas muito bem improvisadas protegia seis mesas com quatro cadeiras cada. Todo o madeiramento do estabelecimento, Seu Zé não cansava de recontar, vinha dos rejeitos das construções das mansões que haviam se multiplicado no entorno da universidade. Bairro que virou chique depois dos anos oitenta; lugar planejado, urbanizado, arborizado; lugar onde ainda sobreviviam umas poucas casinhas humildes dos primeiros moradores, desajeitadas em meio a pequenos shoppings e academias que também proliferavam para atender os filhos dos granfinos. É... Conhecimento é dinheiro, arrazoava Seu Zé.
Mas veio o dia em que as palpitações de Sávio tinham chegado ao seu limite biológico. Era o final do curso. Sávio tinha no Seu Zé o melhor ouvido que alguém poderia querer; Seu Zé, por sua vez, tinha no jovem o filho que não pudera ter, pois todos os três Maria perdera para as patologias da pobreza. Agora eram Inférteis, mas o casal abraçava o bairro de uma labuta otimista exemplar; e o bairro devolvia. Nesse dia, porém, também as preocupações do velho lhe terminariam de branquear os últimos fios da barba negra. Sávio não era mais o mesmo. Há tempos que seus olhos não enxergavam realmente.
Mas isso só Seu Zé percebeu.
Sombreando o barraco, uma centenária figueira tinha sido, desde a juventude precoce de Sávio, a coisa representada preferida.
"A palavra árvore representa uma árvore real (qualquer que seja a espécie). Árvores são metáforas da vida como nenhuma outra poderia ser melhor: seus troncos simbolizam firmeza, alcance, masculinidade; suas flores representam a delicadeza, a feminilidade, a beleza; suas folhas são vestimenta, proteção; suas raízes são como o fundamento, como a persistência; seus frutos são o prosseguimento da vida através das sementes e do alimento; sua sombra é moradia; os anéis acrescentados a cada ano, o tempo e o espaço...".
E assim Sávio passara seus anos solitários acumulando raciocínios na esperança de encontrar a metáfora definitiva, a representação cabal da existência. Julgava tê-la cristalizado, agora na graduação, na imagem da árvore. Por isso pensava ter chegado ao topo de sua extenuante construção.
"A humanidade é tal qual a árvore: os diversos seres (plantas e animais) que a habitam são como todos os relacionamentos possíveis entre os entes". Entre simbioses, mutualismos, canibalismos etc., Sávio traçava a lógica entre os elementos do mundo.
"Então temos na árvore a existência humana; nos demais habitantes, os entes além do homem; nas edificações à sua volta, a cultura e o trabalho; nas intempéries às quais é submetida, o transcendente misterioso e sagrado; nas barracas como a do Seu Zé, o princípio unificador: o amor".
Dessa forma, a árvore seria a analogia derradeira para a existência que só podia ter no amor seu princípio, a arqué que mantinha o relógio funcionando.
Já nas considerações finais que seriam, certamente, uma ponte efetiva para sua dissertação e para sua tese, Sávio sofreu o maior choque de sua vida até então: a prefeitura havia decepado a enorme figueira e os peões já entulhavam as caçambas com galhos, folhas e rodelas de tronco. Os sopradores já varriam a serragem.
Manhã sombria...
Sávio, embasbacado, impotente ante o fato já consumado; Seu Zé chorando no barraco, pois nada pudera fazer ante as ordens do prefeito demandadas pelo reitor, que queria mais espaço útil nas vizinhanças.
Sávio não foi à aula e seu TCC, no latão de lixo, começava a borrar com os pingos de chuva que acinzentavam a manhã ainda mais. Logo virou embrulho para os restos de cachorro-quente ali largados.
Na verdade, tal poda tinha feito ressuscitar no bairro uma indignação que já cheirava à naftalina fazia um bom tempo.
Houve manifestações diversas lideradas pelos diretórios de estudantes e líderes da comunidade.
Dois foram os resultados após todo esse imbróglio: um deles foi o compromisso (forçado) do prefeito de criar um parque com árvores nativas.
O outro foi mais íntimo, menos visível.
- Pô, Seu Zé, meu TCC foi por água abaixo!
- Menino, pousa seu avião, pousa!...
- Como assim? Pousar? Que avião?!
- Já vi muito doutor aqui, meu filho, iniciou amorosamente Seu Zé. E muita doutora tamém, continuou. Eles falava de uma montoeira de “ismo” (que Seu Zé pronunciava com calma e dificuldade): marxismo, feminismo, liberalismo e o diabo a quatro. Mais eu reparava era na vida deles, no jeito que eles comia, como eles tratava as pessoa, como é que era a família. Bem igualzinho a ocê, eles tamém tava construino um prédio, que nem ocê diz. Eu ficava aqui matutano: o prédio que eles construía tinha andar que não existia... Presta atenção, Savinho, presta atenção. Ocê fica c’olho vidrado que nem o deles. Ocê num tá construino prédio com andar em branco, não, né?!
Só algumas semanas mais tarde, após tentar em vão encaixar na sua teoria a tragédia ecológica que derrubara sua Torre de Babel; após ter chegado a conclusões tão estúpidas quanto afirmar que árvore é metáfora do não-ser; após ter divagado em maniqueísmos arborícolas diversos; só depois de tudo isso é que Sávio teve o insight que lhe permitiu compreender o que Seu Zé, que mal dominava o vernáculo, lhe havia dito. Puta merda, Seu Zé, gritou o garoto para estranheza dos demais com as bocas cheias de salsicha e ketchup nos beiços. Sávio tinha passado aquela manhã de folga olhando para o enorme toco que restara ali do lado e que logo cederia espaço para um estacionamento.
Seu Zé olhou com olhos esperançosos para o que viu. Viu, finalmente, Sávio olhando para seu entorno verdadeiramente.
Sávio tinha percebido que em seu edifício havia andares “em branco”: eram conexões inexistentes, pseudo-ligações entre metáforas de metáforas; entre símbolos de sinais de ícones que, a partir de algum ponto, não mantinham mais com a realidade sua relação sadiamente limitada. Savio tinha percebido que era impossível chegar ao topo dessa arrogante edificação, pois tal cume simplesmente não existia.
E Sávio lembrou-se de Ícaro...
E refez seu TCC, agora com outro título: Das Metáforas como Edifícios Inconclusos.
E o futuro viu Sávio conversando com Seu Zé, mas, então o garoto ficava de pé, em frente ao balcão, prestando enfim real atenção ao ancião. E não só a ele, mas à realidade que em algum ponto tinha parado de perceber.
Dezembro de 2022