O SAXOFONISTA
Eu nunca volto para casa pelo mesmo caminho por duas vezes seguidas. Não é essa nenhuma regra que eu tenha criado, ou ainda nenhuma espécie de vício adquirido. Quando percebo, as ruas não são as mesmas de ontem, e com uma grande parcela de certeza, não serão as mesmas de amanhã. Graças a isso, como a palma da minha mão, conheço todas as vielas e casarões dessa cidade onde afogo os anos finais da minha juventude.
Uma brisa rápida remove a fuligem dos meus pulmões, deixada por esse ar urbano de chaminés e escapamentos que assombram a todos com os fantasmas do petróleo. Hoje em dia o monóxido de carbono ainda assusta, mas já não sufoca tanto quanto antes. Talvez porque, como as árvores que crescem na calçada, é preciso ser persistente para sobreviver em meio à um mundo tão hostil. Lembro de quando cheguei aqui e de todos os sonhos que eu tinha e que tive de vender para conseguir o teto e os trocados que me salvariam de morrer sob uma fina cama de papelão na calçada, de fome, frio e depressão. Meus pais tinham razão, ser músico não era o suficiente para ter o conforto que eu precisaria. Pelo menos, não naquela cidade pequena, e ao que parece, nem aqui nessa cidade grande. Sequer na banda da cidade havia um espaço onde o meu pouco talento pudesse crescer. Mas eu era jovem, orgulhoso e arrogante, sentia que todos os “nãos” recebidos e as recomendações de que eu deveria procurar outra ocupação na vida sempre eram ínfimos diante da vergonha de voltar e admitir que eu estava errado e de que faltava um pouco mais de prudência e paciência nas minhas atitudes. Talvez houvessem formas certas de chegar onde eu realmente queria estar, mas procuro não pensar nisso, afinal, não tem sentido a esperança estar em um mundo onde todas as coisas acontecem da melhor forma possível, mas ela é sempre bem vinda no mundo onde nem tudo acontece como se espera.
Creio que seja dela a culpa de usar o dinheiro da passagem de volta para casa para comprar um saxofone. Foi em uma dessas andanças por lugares que não se repetiam consecutivamente, em uma pequena loja de penhores e artigos usados. Era um artigo usado, e apesar de algumas marcas tradicionais, estivera bem conservado. O homem disse que havia pertencido à um apreciador de música de uma família bem sucedida, cujo o talento era insuficiente para que obtivesse o domínio do instrumento antes que sua vida se encerrasse. A família, não tendo quaisquer pretensão, decidiu que o saxofone teria mais valor monetário do que sentimental. Naquele dia retornava para casa com meu mais novo amigo guardado em um pequeno caixote aveludado preto, enrolado em um tecido macio, acompanhado de um pequeno líquido para limpar metais.
Enquanto cortava vegetais para a humilde sopa de legumes que logo se constituiria como meu jantar, sentia a ansiedade do instrumento guardado contagiando todo o sentimento de ímpeto e emoção que a música sempre despertara em mim. Em um exercício mental, treinava com os dedos as posições das notas musicais, enquanto viajava por um infinito mar de partituras, onde os tons e semitons golpeavam minha respiração como as ondas em um rochedo. Ao acabar a refeição e totalmente submerso naquele mar sonoro de calmaria e tempestade, não me dei ao luxo de esperar o descanso ou ainda um segundo a mais sequer. Junto do meu amigo, subi a escadaria que conduzia ao térreo.
Acima das luzes dos postes, a lua reinava sob um céu limpído que em intensidade quase se assemelhava ao dia. No relógio, os ponteiros deviam se encontrar em algum momento entre as dez da noite e as duas da manhã. O volume da cidade de carros andando e o barulho natural das pessoas havia silenciado, enquanto o vento, dessa vez com mais intensidade, atuava como um metrônomo, ditando o ritmo e aguardando a minha entrada naquele conserto musical. Era tarde, no dia seguinte eu acordaria cedo e possivelmente chamariam a polícia por eu estar fazendo barulho àquelas horas da noite. A verdade é que isso não me importava nenhum pouco. Depois de tantos anos, tudo aquilo era meu: a minha noite, meu instrumento, minha música e sim, o meu sonho...