NATAL DAS ANTIGAS.

Aderbal estacou. Até parecia que alguém tivesse gritado ESTÁTUA!!! Os olhos esbugalhados. Nenhum movimento. A música o fez viajar. -"No azul do mar. A força das ondas, vai e vem. Traz no pensamento, a saudade de você. Que vontade de ver..." Quem voou no pensamento foi ele, em frente a casa 753, da rua das Azaléias. A fumaça da churrasqueira avançou pela rua, passando sobre a lona preta amarrada na grade. Indiferente aos gritos dos homens na mesa de truco da varanda, Aderbal continuou seu devaneio, relembrando os antigos natais. -"Antigamente é que era bom." Pensou o homem de sessenta primaveras nas costas. Lembrou da mãe, armando a árvore de natal e o presépio, na primeira semana do advento. Algumas imagens quebradas, outras descansando após um ano guardadas numa caixa sobre o guarda roupas. -"O menino Jesus só vai pra manjedoura no natal." Ela dizia. Armava o presépio sobre a máquina de costura, sobre um lençol branco. Tava tudo lá, as imagens de Maria e José, os reis magos, o anjo, os pastores, as ovelhas, o burro, a vaca, o galo, a estrela. Além disso, ela colocava no presépio algumas pedras, pó de serra, vasos de flores, imagens de Santo Antônio e São Francisco, fotos dos netos e até um pôster do Silvio Santos, que ela adorava. -"O presépio é meu, coloco o que eu quero. Quando você tiver sua casa, você monta do seu jeito." O pai trepado na escada, esticando o pisca pisca no telhado da garagem. -"Esse ano vou fazer diferente." Ele sempre dizia isso mas todo ano era igual. As crianças querendo ajudar. A guirlanda na porta de entrada Toalhas de natal na mesa. A vinheta da Rede Globo na telinha. -"Hoje, é um novo dia, de um novo tempo que começou....nesse novo tempo, as alegrias serão de todos, é só querer...." As estrelas, atrizes e atores famosos , todos de branco e cantarolando. A propaganda dos ursos da Coca Cola. -"Como fizeram pra treinar os ursinhos pra beberem Coca Cola?!" A gente perguntava para os adultos. O comércio da cidade, com papais noéis nas portas das lojas, abarrotadas de clientes. A decoração natalina do centro da cidade era um acontecimento e tanto. O espírito natalino contagiante. As barraquinhas no centro, vendendo cartões natalinos. -"Vinte cartões por cinco reais." Até doía a mão, de tanto escrever cartões pra mandar pra parentada. O pai mandava dezenas de cartões e recebia dois ou três." A cantora Simone, em primeiro lugar nas paradas de sucessos natalinos dos supermercados. -"Então é natal....e o que você fez???? O ano termina e nasce outra vez....." Imaginava a cabeça das caixas de supermercados, escutando a Simone o dia inteiro!?! Os shoppings lotados, com gente saindo pelo ladrão. Os atrasildos correndo, a procura de presentes na véspera de natal. Fila nos mercados pra comprar carne. Filas pra comprar gelo. Filas pra comprar carvão. Disputa por frutas no setor de Hortifruti. Disputa por perus, Chester, tender. O preço do panetone nas alturas. Lista pra ceia de natal. Rateio na família. Frutas da época, romã, uva, banana, nectarina, pêssego, kiwi, damasco, morango, laranja, abacaxi. A lista de convidados para o natal. -"Todo ano o Paulo fala que vai passar na sogra mas aparece." A escolha da casa pra passar o natal. -"Chácara alugada tá caro. Vamos passar na casa dos velhos." Enquanto estão vivos, natal é na casa dos pais mas depois que morrem, ninguém se reúne mais. Cada um pro seu lado. Ceia com frutas, panetone, chocotone, bolos, musse, pudim, rabanadas, pão com salsicha em molho, pão com carne moída, pastel, coxinhas, quibes, esfiha, tortinhas... Os fogos a meia noite. É natal... feliz natal pra cá, feliz natal pra lá. O show de cantores na tevê. Os especiais de fim de ano. A família ia pra rua, ver o fogos de artifício e festejar com os vizinhos. Champanhe nas taças, nos copos de vidro de extrato de tomate, em copos descartáveis...tá valendo. Sempre tinha alguém que jogava garrafas pra cima, quebrando-a no asfalto e espalhando cacos de vidro na rua. Tinha a tia que todo ano trazia rabanadas mas não dava a receita pra ninguém, nem que a vaca russa. -"Vou colocar as minhas rabanadas num Tupperware. Gosto mais de comer noutro dia." Tinha a prima que sempre trazia mousse de maracujá... e ai de quem falasseb que tava ruim. A sobrinha pé de cana que inventava batida de Sidra de morango com leite condensado. A prima, musa fitness, que não tomava refrigerante. A farofa de cenoura, com sobras de geladeira e uva passas. A maionese tradicional com uvas passas. O arroz com castanhas do Pará e uva passas. O salpicão com uva passas. O panetone de frutas cristalizadas e muita uva passas. O pernil, que ficava dois dias marinando na cerveja, assando no forno. O lombo com abacaxi que acabava rapidinho. O peru que vinha na cesta de natal da firma. Os parentes do interior. O primo do interior que sempre trazia uma leitoa inteira. O tio, pudim de cachaça, já manguaçado logo cedo. Um tambor com gelo e muita cerveja, no quintal. O abridor de garrafas, amarrado num galho da goiabeira. Os abraços calorosos. Os abraços falsos. Os abraços suados. O Pitbull amarrado no pé de goiaba. As tias beatas curtindo as músicas do padre Zezinho. O primo adolescente que queria colocar funk na vitrola. Os carros estacionados na rua, em frente a casa. O tiozão, metido a rico, que sempre trazia uma caixa de lichia que quase ninguém comia. A prima que trazia bolo de reis, com nozes e canela, dizendo que mandara a receita pra Ana Maria Braga. -"Tá uma delícia, pessoal. É de comer rezando." Os avós assistiam a missa do galo, na tevê da sala. -"Esse papa João Paulo segundo gosta de viajar." A vó dava umas cochiladas no sofá. Tinha a prima que sempre trazia pavê de pêssego com bolacha champanhe. O sobrinho que sempre perguntava se era pra ver ou pra comer?? O irmão que, apesar de tanta comida, ainda pedia feijão. O moleque que quebrava o copo de vidro. A menina distraída que cortava o pé no caco de vidro e era levada ao pronto socorro. O primo que nunca tinha comido salpicão na vida e se empanturrava , sendo preciso ser levado ao mesmo pronto socorro que a menina do corte no caco de vidro. O tiozão solteirão que não saía de perto do som enquanto não tocasse toda a coleção de CDs do Raça Negra, Roupa Nova, Molejo e Tião Carreiro. A tia que gostava de carne esturricada, a moda carvão. Os jovens que curtiam carne mal passada e sangrando. Crianças jogando videogame no quarto. Acabava a missa do galo, entrava o filme Esqueceram de Mim, com aquele ator mirim loirinho. Reprise do especial do Roberto Carlos, na tevê. Aquela tia do interior que sempre falava que a gente estava cada vez mais gordo. O cunhado com a camisa surrada do Corinthians, com patrocínio da Kalunga. A garotada jogando salgadinho nos vasos de plantas da vó. Um verdadeiro mercado de peixe, com um querendo falar mais alto que o outro. Tinha o primo que levava cerveja ruim mas só tomava das boas que os outros levavam. A fumaça da churrasqueira indo pro quintal do vizinho. O jogo de futebol na rua, misturando adultos e crianças. Sessão nostalgia a tarde, com todo mundo empanturrado e sonolento, folheando antigos álbuns de fotografias da família. A lembrança de quem tinha morrido na família. O tio que sempre trazia um garrafão de cinco litros de vinho tinto Sangue de Boi e fazia todo mundo provar um pouquinho. Os dois sobrinhos que saíam de carro, atrás de padaria aberta, pra comprarem pão francês. A tia que entupia o congelador de picolés pra criançada. Tinha sempre uma folia de reis passando na rua. Alguém acendia a churrasqueira de novo, lá pras duas da tarde. -"Gente, tem carne ainda. Cês tão devagar." Sempre tinha alguém que levava um prato diferente e virava a atração do natal. -"O que é isso?! Antepasto do que?!!" Antepasto de berinjela com pimentão, azeite e uva passas no pão italiano. A mulherada tentando descobrir quem fez o antepasto e querendo a receita. O marido levando um beliscão da esposa, por ter elogiado muito o antepasto. O vô sempre dormia na rede, amarrada no pé de goiaba e no gancho do muro do quintal. Um engraçadinho sempre passava creme dental no bigode do vô e tirava fotos que o vô morria de rir, ao ver depois. Alguns vizinhos sempre vinham desejar feliz natal. Um entra e sai da casa. As lonas cobrindo parte do quintal. Cadeiras. Bancos. Banquinhos. Gente sentada em tijolos, outros no chão mesmo. Gente de roupa social, gente de bermudas, gente sem camisa. Começava a sessão piadas. Piadas leves no começo. Alguém colocava CDs de forró pra tocar. A vó não querendo dançar com o vô. Fotos dos avós. Fotos dos netos com os avós. Fotos dos tios e tias. Fotos dos sobrinhos. Fotos das noras e genros. Tinha aquela cunhada que se achava masterchefe mas só trazia cuscuz paulista. Fotos de todos, de touquinhas de papai Noel, diante da árvore de natal, feita de galhos secos pintados com tinta alumínio e com chumaços de algodão imitando neve. O primo que sempre trazia a sogra. O irmão que filmava a galera comendo pratos de pedreiro. O bicão que ninguém conhecia, falando com todos como se fosse da família. Tinha sempre uma sobremesa indecifrável, que ninguém sabia quem tinha feito ou o que era. Rodada de batidinha de Sidra com pêssego e leite condensado. Batidinha de paçoquinha com cachaça e groselha. Caipirinha. Caipiroska. Salada de frutas. Sorvetone. Gelatina colorida com creme de leite e leite condensado. A mulherada zureta com tanta batidinha. A fila pra usar o único banheiro da casa, mais fétido que banheiro de rodoviária. Sidra e cerveja sem álcool pra ala evangélica da família. A sobrinha que sempre tinha um namorado novo no natal . A esperada revelação do amigo secreto. Os sorrisos amarelos de quem não gostara do presente do amigo secreto. A geladeira sem espaço nenhum. A cunhada que todo ano era encarregada de repartir a melancia. Rodada de jaca dura e jaca mole. O cheiro da jaca inundando a casa. A chuva tradicional da tarde. Os tios jogando dominó na varanda da frente da casa. A molecada correndo no quintal. A travessa de panceta assada que passava de mão em mão. Coraçãozinho de frango na farinha de mandioca. A noite caía mas ninguém arredava pé. O resto do peru virava escondidinho. A mulherada lavando a louça. A tia procurando seu Tupperware. A irmã que, todo ano fazia alguma cirurgia e fazia questão de mostrar a cicatriz pra todos. Os homens discutiam política e futebol. O gordinho que quebrava a cadeira de plástico. O sobrinho, ex seminarista, que puxava o Pai Nosso e o parabéns a Jesus. Ufa, alguém lembrava do principal, do aniversariante Jesus. Os fogos. A família correndo pra rua, feliz. Dizem que os melhores natais acontecem na Terra Santo ou no Vaticano, em Nova York ou Paris, em Fatima ou na Laponia, a terra de papai Noel mas... o melhor natal são aqueles que passamos com nossos pais qdo éramos crianças....na simplicidade,com o amor como prato principal da ceia... com Jesus no centro da família. Que saudade dos antigos natais

FELIZ NATAL.

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 24/12/2022
Reeditado em 25/12/2022
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