- Alô?! É da casa do Papai Noel?
- - Alô?! É da casa do Papai Noel?
A voz era de uma criança de uns 6 anos. Fiquei imaginando qual seria a pegadinha. Não reconhecia a voz entre os pequenos da família, mas, mais curioso do que com medo, dei corda:
- Sim, aqui é o ajudante do Papai Noel. Quem gostaria de falar?
- Meu nome é Denise e eu queria falar com o Papai Noel! - o tom decidido da menininha me pareceu tão verdadeiro que decidi seguir a conversa:
- O senhor Noel - quis mostrar certa intimidade com o velhinho para ver se meu papel de ajudante colava - está muito ocupado, mas pode me dizer o que você gostaria de falar com ele que eu passo o recado...
- O que ele está fazendo?
- Como assim, "o que ele está fazendo?" Ele eh...- tentava ganhar algum tempo - lendo as cartinhas que chegam do mundo todo.
- Era sobre isto mesmo que eu queria falar...
- Sobre as cartinhas?
- Não, só sobre a minha.
- Ah você escreveu uma cartinha...
- Na verdade eu não escrevi. Eu ia pedir para minha mãe escrever, mas ela não pode. - pensei comigo " não seria a mãe dela uma senhora analfabeta".
- Ora, por que que ela não pode te ajudar?
- Ela foi para o hospital. Está muito doente. Hoje veio uma mulher aqui em casa e disse que vai me levar num lugar onde vou fazer muitos amiguinhos. Eu estou sentindo que a mamãe não vai voltar.
- E porque você não pede para seu pai? - fiz uma pergunta protocolar, pois no fundo eu sentia que aquela menina não tinha um pai.
- Eu não sei quem é meu pai - não sei se é a época ou encontro com a pureza dos corações das crianças, mas sei que a ideia de ver uma criança com a ingenuidade de quem ainda acredita em Papai Noel morando na mesma criança que entende a gravidade de alguma situação me deixaram, digamos assim, um pouco de coração mole. Pensei comigo mesmo, ok, tem coisas que não tenho o poder de resolver, mas ser o Papai Noel de uma criança num Natal qualquer não vai me deixar mais pobre.
- Então você resolveu ligar para o Papai Noel sobre a questão da carta?
- Isto.
- Ok, como sou ajudante do Papai Noel posso te ajudar. Mas vou precisar que você me passe alguns dados... - precisava descobrir onde entregar o presente.
- Oba! - sentir a alegria sincera daquela menininha me fez bem.
- Me diga Denise onde você mora para que o Papai Noel possa entregar o seu presente?
- Não precisa, o meu presente é ter minha mãe de volta. - bom este estava entre os presentes que eu não poderia resolver.
- Bom, sabe Denise, este não é bem o departamento do Sr Noel... - buscava alguma forma de convencê-la a pensar num brinquedo, quando ela interrompeu
- Mas o Papai Noel não quer deixar as crianças felizes? Minha mãe aqui do meu ladinho me deixa mais feliz do que brinquedos. Sabe seu duende - em momento algum eu tinha dito que era um duende, mas se era assim que ela imaginava os ajudantes do Papai Noel, por que não? - minha mãe sempre brinca comigo, mesmo nos dias que ela chega bem cansada do serviço. Nestes dias sempre escolho alguma brincadeira de cartas para não ser muito cansativo.
- Oh, claro seu Noel adora ver crianças felizes! Mas o presente que você está pedindo é com outro departamento. Talvez você tenha que pedir para o Papai do Céu.
- Ué, e não são a mesma coisa?
- Bom Denise, digamos assim que são parecidos e que são muito amigos, mas não são a mesma coisa...
- Sei...- o "sei" da Denise era um misto de desconfiado e resignado triste. Não sou de acreditar em milagres, mas não seria eu, um estranho se passando por ajudante (duende) de Papai Noel que iria destruir a esperança de um coraçãozinho puro.
- Sabe Denise, como os dois são grandes amigos, talvez o Sr. Noel converse com o Papai do Céu sobre sua mãe...
- Eba! Vai dar certo: se ele conversar vai dar tudo certo! Quem nega uma ajuda a um amigo? - não sei se foi uma boa ideia minha intervenção: tu não querer destruir uma esperança a cultivá-la apesar de ser um fio da navalha, vai uma distância muito grande. Tem um ditado que diz que quanto maior a altura, maior o tombo. Será que não prepará-la para o pior, dando uma alegria momentânea em troca de uma desilusão e tristeza maior depois não seria pior?
-Mas sabe Denise, para que senhor Noel fale da sua mãe ele precisa passar os dados dela... - eu precisava saber a verdadeira situação da mãe da Denise: as possibilidades que ela tinha de se curar. Dependendo do caso o ajudante de Papai Noel iria tentar preparar uma menininha para aquilo que é certo e ninguém nunca ficará preparado. Seria minha missão pessoal, um voto, um compromisso, meu presente para um mundo (pelo menos o de uma criança) melhor.
-O nome da minha mãe é Maria das Graças da Silva. O que mais o Papai Noel precisa?
-Por acaso você sabe em qual hospital ela está?
-Não.
-De qual cidade você está falando?
-De Curitiba ué?! - bom, pelo menos era a minha cidade. Se fosse uma ligação interurbana talvez a missão do ajudante ficasse impraticável.
-Que legal, fiquei sabendo que sua cidade fica toda enfeitada para o Natal, com muitas atrações para você ver.
-Bom, eu só vejo pela televisão. Minha mãe não tem tempo para me levar e... Agora então... - já me imaginava levando Denise para ver as atrações.
- Como é o nome da senhora que disse que você vai "conhecer muitos amiguinhos"?
- Dona Juraci.
- A dona Juraci é assistente social? - sei que a pergunta era meio demais. Tinha quase certeza de que a Denise não saberia responder, mas... Vai que...
- O que é isto que você falou? - não teria um "vai que". Denise era uma criança normal - Isto é o nome que dão para as pessoas que cuidam das outras?
- É Denise. É mais ou menos isto - na verdade é mais, mas para explicar da melhor forma teria que fazer entender conceitos de cidadania e políticas públicas e mesmo se fosse para um adulto não seria tão simples - você sabe se a dona Juraci trabalha na prefeitura ou você sabe o nome completo da dona Juraci?
- Não sei.
- Este telefone que você está falando é de quem? - o número ficou registrado no meu celular. Talvez se eu tivesse a chance de falar com um adulto e explicar a ligação inusitada e que estaria disposto a ajudar...
- É da minha mãe. Hoje quando levaram ela para o hospital o telefone ficou no armário.
- Você está em casa? A dona Juraci está aí com você?
- Estou. Ela me pediu para separar umas roupas e foi atender o telefone. Liguei agora pois tenho medo que eles peguem o celular e eu não consiga mais ligar depois. - enquanto a Denise falava eu vi uma voz ao fundo que devia ser da dona Juraci - "com quem você está falando Denise?"
A Denise me disse que depois continuava a falar. Tinha que separar umas roupas. Uma voz enérgica surgiu ao telefone
- Quem está falando? - o tom de voz era meio intimidador. Acho que a Dona Juraci tinha tomado o telefone da Denise, que ao fundo pedia o telefone. Um "eu tô falando com o ajudante de Papai Noel" foi respondido com um som abafado (imagino que a dona Juraci tenha colocado a mão sobre o microfone do telefone) que me pareceu uma reprimenda algo como "quieta!" ou coisa parecida.
- Meu nome é Antônio e recebi está ligação da menininha e fiquei preocupado com a situação da mãe dela.
- E daí você se passou por ajudante de Papai Noel? - O Tom intimidador aumentava. Não podia culpar a dona Juraci. Num mundo onde o radical grego filia, tão nobre no sentido do seu significado de amor se junta com outro radical grego e dá nome à uma psicopatologia, nos faz cuidadosos com a natural vulnerabilidade das crianças e nos torna agressivos contra possíveis ameaças. - apesar de não me sentir culpado sei que eu também dificilmente entenderia a explicação de um senhor, para dar continuidade a uma conversa com uma menina desconhecida.
-Dona Juraci eu me interesso pela situação da mãe da menina. - usei o tom de voz mais austero e grave, com aquele toque de indignação por eventual suspeição que pudesse pairar no ar. Não saberia explicar que aquela conversa com a menininha que acreditava em Papai Noel era cativante. Melhor seria tirar o foco da menininha.
-Me desculpe. O senhor sabe como está o mundo hoje. - o meu tom respeitável deu certo. Sem afrouxar e mantendo o tom, sem dar muita bola para o pedido de desculpas, perguntei:
-Dona Juraci, em qual hospital está a mãe da menina? O que ela tem?
-Agora não posso falar. Depois eu retorno.
-Como posso fazer para entrar em contato contigo? - tinha medo de que dona Juraci não retornasse a ligação. - Qual seu telefone?
-Fique tranquilo que eu vou passar uma mensagem com o contato da SEJUF - depois, investigando, descobri que a sigla se tratava da Secretaria de Estado da Justiça, Família e Trabalho. Dona Juraci desligou o telefone. Compreendi que a dona Juraci não queria que a menina ouvisse suas explicações sobre a situação da mãe, o que só reforçava a ideia de que era algo bem grave.
Naquele dia fui trabalhar mas não conseguia me concentrar nas minhas tarefas. Estava pensando naquela menininha. Como não vi a mensagem da dona Juraci procurei o telefone da Secretaria. Depois de passear por diversos ramais entre os que não estavam nem ai e aqueles interessados em ajudar, cheguei num ramal que diziam era o da senhora Juraci. Já estava tocando umas cinco vezes, quando fui atendido.
-Juraci, boa tarde.
-Boa tarde Juraci, eu sou o Antônio com quem a senhora falou sobre a mãe de uma menina.
-Sei. O nome da mãe é Maria das Graças.
-O que ela tem?
-O sigilo médico me impede de lhe responder.
-A menina corre um risco de ficar sem a mãe?
-Por que a pergunta?
-Ela falou que a senhora disse que ela iria num lugar onde conheceria muitos amiguinhos...
-Me passe seus dados no e-mail: nome, cpf, endereço e telefone e diga porque quer informações sobre a sra. Maria das Graças. - a princípio não entendi, mas questão de segundos compreendi que a dona Juraci estava se cercando de cuidados para passar informações.
-Ok. Vou passar e fico aguardando seu retorno.
Passei a mensagem de imediato. O telefone demorou a tocar - imagino que ela devia estar fazendo alguma investigação preliminar com meus dados para se certificar.
Não deixei o telefone tocar a segunda vez:
-Alô? Dona Juraci?
-Sim, seu Antônio. A sra Maria das Graças deve perder a guarda da menina. Foi pêga totalmente drogada na praça Santos Andrade. Estava delirando. Não temos informações de parentes próximos, então a guarda da menina será de responsabilidade do Estado até que encontre uma família.
-Onde está a sra. Maria das Graças?
-No Centro Municipal para Recuperação de Drogados.
-Ela pode receber visitas?
-Pode, mas ligue antes para confirmar os horários de visitas.
-Ok. Obrigado.
No lugar me mandaram para uma sala com várias mesas. Me indicaram uma e pediram para que eu esperasse. De repente ao fundo, com um funcionário de jaleco branco, vinha uma mulher cabisbaixa de cabelos desalinhados e andando meio capenga.
Indicaram uma cadeira na mesma mesa que eu estava e disseram
-Dona Maria, este é o senhor que quer falar contigo... - ela me olhou por baixo desconfiada e disse:
-Eu não conheço este homem - fazendo menção de virar-se e voltar. O homem olhou para mim, deu de ombros como quem diz que teria que respeitar a vontade da senhora Maria.
-Eu queria falar sobre a Denise - disse para ver se conseguia a atenção da Maria.
Deu certo. Ela olhou o rapaz que a acompanhava, fez um sinal de "varrendo" com a mão, indicando que ele deveria se afastar. Puxou a cadeira e me olhou bem nos olhos.
- O que você quer falar sobre a Denise?
- Queria dizer que ela quer a senhora perto dela.
- Meu coração também queria, mas eu sou um lixo, não está vendo. Ela ficará melhor sem uma mãe louca.
- Ela não te acha louca. Porque você pensa assim? - Maria começou a chorar...
- Fui despedida do emprego. Não contei nada para a Denise. Eu saia e estava ganhando dinheiro fazendo programas. Mas num destes programas me ofereceram crack. Eu me viciei e o dinheiro que eu conseguia não estava mais levando para casa, mas sim financiando meu vício. A Denise é uma menina de ouro e não precisa ter uma mãe assim.
-É verdade. A Denise não precisa ter uma mãe assim, mas ela quer aquela mãe que você sabe ser, de volta.
- Não sei se tem volta...
- Já ouvi dizer que só para a morte não tem volta, mas cristãos duvidam disso também...
- Cristãos acreditam em milagres, eu sou agnóstica.
- Nem todos os cristãos acreditam em milagres, mas todos querem acreditar. Você me parece meio que com os cristãos, pois fica ensinado a Denise sobre histórias de um bom velhinho.
- Ah, mas ela é uma criança e merece ser feliz...
- Ser feliz é acreditar em Papai Noel?
- Onde você quer chegar? Sou infeliz porque não acredito em nada?
- Quero chegar que todos nós guardamos uma criança dentro da gente e que "merece ser feliz"! Talvez sua criança esteja soterrada pelos problemas da vida, mas ela ainda está aí!
- O senhor é pastor? - Achei curiosa a pergunta. Tá certo, quando fui encontrar a Maria não sabia bem o que ia falar e minha inspiração para pensamentos positivos também me surpreendia. Lembrei de passagem da Bíblia onde apóstolos que iam dar a boa nova, mas não sabiam como falar, ficavam confiantes que Deus falaria através deles. Paulo pregou na Grécia terra mãe dos filósofos e nunca se intimidou por isto.
- Não sou pastor, sou ajudante de Papai Noel.
- O quê? - a pergunta de Maria foi rápida e ela não conseguiu ficar séria e no seu rosto se descortinou um tímido sorriso.
- Olha, talvez a criança que vive em você não esteja assim, tão escondida...
- Mas também esta história de ajudante de Papai Noel foi uma piada... - Contei a história do telefonema da Denise. Maria começou a chorar. Cheguei minha cadeira perto e abracei a criança que vivia naquela mulher com carinho e ternura.
- O que eu vou fazer? - a pergunta escancarava a sensação de impotência que Maria sentia.
- Vai ficar sóbria e ser feliz com sua filha. Tenho uma vaga para uma moça do cafezinho/limpeza no escritório. Topa? - Na verdade eu não tinha. Tinha um escritório de contabilidade com poucos funcionários, mas teria que caber no meu orçamento mais um salário. Maria me olhava desconfiada: assim como eu, quando atendi o telefonema da Denise, ela devia estar se perguntando onde estava a pegadinha?
- Topo. - a fisionomia carregada estava se desanuviando e ela olhava para cima.
- Está agradecendo à Deus? Você não era agnóstica? - Ela olhou para mim com gratidão nos olhos e disse
- Às vezes tem gente que quer nos dar motivos para acreditar... - desta vez fui eu que fraquejei e diante daquele caldo emocional também chorei. Maria me deu um beijo no rosto e disse
- Tá bom! O que eu preciso fazer agora para sair daqui?
- Eu não sei. Vou falar com a Dona Juraci sobre o caso e depois eu te falo. Mas tem uma condição: quando você voltar não fale para a Denise sobre mim. Deixe que ela continue acreditando no ajudante do Papai Noel.
O que aconteceu depois, foi que, após uma burocracia chata a Maria das Graças não chegou a perder a guarda. Maria das Graças foi sempre uma empregada exemplar e conseguiu se afastar das drogas. Sempre procurava me certificar e gastava um pouco do meu dia numa conversa descompromissada que, normalmente começava por “me conte a última da Denise”. Com o tempo aquela conversa era o momento mais esperado do meu dia. Fui conhecendo e me apaixonando também pela mãe da Denise. Conheci a menininha Denise no fim do ano seguinte numa confraternização dos empregados e família. Era uma menina moreninha, linda de olhos espertos e sorriso aberto.
- Olha Denise este é o meu chefe, o senhor Antônio. Diga oi para ele.
- Este é aquele que você disse que gosta? - criança não tem papas na língua e os presentes olharam para Maria, pois já sabiam que, logo logo, não daria mais para esconder que nós estávamos apaixonados um pelo outro.
- Aquele que eu disse que TODOS gostamos - tentou corrigir a Maria.
- Oi! - o "oi" dela era lindo, fui me abaixando e fiquei de joelhos para ficar da mesma altura da Denise e, abrindo os braços, disse:
- Que tal um abraço? - eu me segurava para não chorar. Denise abraçou forte meu pescoço, me deu um beijo e sussurrou no meu ouvido
- Eu já conheço esta voz... Este ano não quero brinquedo de novo, ficaria mais feliz com um namorado para a mamãe. - Não sei se existe Papai do Céu, Noel, duendes, fadas ou bruxas, mas anjo eu sei que existe e o nome do meu anjo atende pelo nome de Denise e, com seu arco e flecha, anda fazendo estrago no meu coração.
Feliz Natal! - O amor está no ar...Cuidados com as flechadas.