O Homem, o fedelho e o torpe de beca

Aliás, me permite começar com aliás.

Aliás, desde que tudo se esclareceu, talvez por mecanismos próprios do entendimento, me pareceu que a coisa trouxe um quê de inquietação.

Não era, ao menos não estava claro, que o assunto, tal como um tabú, poderia suscitar tanta algaravia, tanto embaraço, tanta inquietação.

Desde os primeiros sobressaltos, os acontecimentos, como um dique que se rompe, vieram com tanta força, tanta impetuosidade, que nem a mais benevolente das almas, com promessa de assento no céu, seria capaz de reconsiderar e perdoar.

Como se vê, caríssimo leitor, a robustez, sim, a robustez, era o que mais nele sobressaía. Era inflado nos gestos. Sonoro no falar. Teatral. Compreende, será que compreende, amado leitor, o que significa não ter mais para onde ir? Consegue acessar o quanto isso significa para alguém acostumado aos excessos?

É penoso ter de aceitar o destino. O destino, esse cruel determinismo, tão nefasto quanto a fome e o desabrigo. É penoso saber que do outro lado da rua, a rua, antes tão familiar e amiga, tão viva e alegre, tenha se transformado tanto. Tantos são os novos rostos. Tantos os novos gestos. Tantos são os novos desejos. Há novidade em tudo. Nada mais se mantém, perdeu-se a possibilidade da nostalgia. Perdeu-se a Permanência como marca de um tempo, de um tempo que não se quer mantê-lo, nem como memória.

Fato é, rompido o dique, nada ficou incólume. O assombro causado, soube-se depois, levou ao suicídio um querido morador da circunscrição. Houve muitas especulações sobre o ocorrido, mas o inquérito concluiu que foi suicídio.

Todavia, sabemos, todos sabemos, que à plebe nada mais grandioso que um escândalo. Parece que o escândalo, tal qual a descoberta de uma infidelidade, parece que esses percalços e desestabilizadores da paz social, surte um efeito cataclísmico. Nada se segura. Tudo e todos se comportam como se o juízo final estivesse à porta.

Como se não houvesse outra saída, outra possibilidade. Os comportamentos se igualam no desespero. É como se a única possibilidade, a derradeira, e não outra mais, estivessem, em comunhão e de mãos dadas, amasiadas no mesmo propósito. Do propósito do fim. Do incondicional fim. O fim pré - determinado, incontestável, sentenciado.

Mas... voltemos ao suicídio, quer dizer, o que se disse sobre ele. É verdade que o bom homem morrera, disso ninguém tinha dúvidas. Também era verdade que sua morte, a considerar sua formação (na juventude ele queria ser padre) e devoção pela vida, devoção, inclusive, admirada por todos que conheciam. Então, suicídio, ao que tudo indicava, era, ao menos a princípio, incompatível.

Era demasiado estranho, quase uma ofensa, acreditar que aquele sujeito fosse capaz de se dar ao trabalho de dar cabo a própria existência; não era razoável, não era lógico, não era, pelo menos a considerar o modo de vida daquele homem, plausível, acreditar em suicídio.

Ademais, sem que alguém soubesse como, começou correr à boca pequena que dias antes do acontecido, isto é, do que se concluiu como do acontecido, que o falecido, passou se queixar de um certo parente. Um parente ignorado até que, como se verificou com o inquérito, chegou de maneira anônima, e sem qualquer sinal de animosidade com o falecido, a informação de que esse parente visitara o falecido cinco dias antes dos fatos.

É claro que tudo pode parecer mera coincidência, ou mesmo invencionice. A plebe se une no desespero e na criação de factóides, afinal, quem não gosta de uma carniça, não é?

Mas algo, como um tsunami, ou melhor, como a erupção de um vulcão, trouxe à tona pequenas faíscas que resultaram numa explosão sem precedentes. Chegou, como um cântico vindo dos céus, quer dizer, impossível de não escutar, relatos só possível nos romances do século XV.

Porque tudo se ajusta conforme as circunstâncias e o desejo de plebe. A plebe não pensa. Se deixa conduzir como o gado ao matadouro. A plebe só precisa do pretexto, da faísca para que o incêndio se espalhe e consuma tudo como se nada fosse.

O espetáculo. A plebe ama o espetáculo. A plebe não tem escrúpulos, não tem ética, não tem senso. Quer ganhar a plebe? Ofereça-lhe o espetáculo e espere os aplausos; ele virão.

1930 foi um passeio porque a plebe se extasiou; cantou o cântico ensaiado. Repetiu frase por frase, sem se ruborizar. Denunciou vizinhos como o mais leproso dos seres. A plebe, igual a Judas, se vende por parcas moedas.

Quer ter a plebe? Dê-lhe promessas. Mostre-lhe o caminho. A plebe seguirá, calma e docilmente conduzida.

A plebe é a criança agarrada ao pai com medo do bicho papão. Ela precisa do bicho papão para poder se agarrar ao pai.

O que foi 1930 se não o brilhante momento da criança agarrar-se ao pai com medo do bicho papão? E veio a NOITE dos CRISTAIS. O bicho papão imaginário, o judeu, aquele a quem se apontou como bicho papão, naquela noite, naquela tenebrosa e horrenda noite, foi perseguido, mal tratado e encarcerado em campos de concentração.

Era preciso acabar com o bicho papão. E veio a NOITE dos CRISTAIS. A noite que a plebe viu a faísca e gostou. Vibrou com a faísca como se o incêndio fosse uma noite de júbilo. A plebe comemorou. Festejou como a criança que vibra com o brinquedo novo.

Aquele homem, o do suicídio, estranhamente, ninguém entendeu, estranhamente, sem que o próprio homem soubesse, de repente, sem prévio aviso, lhe bate à porta um parente, até aquele momento, ao que se soube depois, ignorado pelo próprio homem.

Não foi exagero supor que o próprio, o parente, não tivesse alguma ligação com o ocorrido.

É fato, por demais conhecido e explorado, mais explorado, que forte suspeitas recaíram sobre o tal parente.

Da boca pequena tudo se ouviu. Teve quem dissesse que o querido homem, assustado com o inesperado parente, reclamou desse desconhecido visitante como alguém enfadonho e demasiado arrogante.

A boca pequena, facilmente, sem cotejar nenhuma suspeita, nenhum senso crítico, a boca pequena repete tudo, como um papagaio, tudo sem nenhum rubor. Quer que a boca pequena repita tudo? Dê-lhe a sensação de que a razão lhe assisti. Faça parecer que tudo que sai da boca pequena, item por item, é resultado de sua própria razão. A boca pequena e a plebe, são irmãs siamesas.

Irmãs siamesas que se alimentam das migalhas jogadas. Ora como fartura de opções, mas que, na realidade, são opções travestidas de novos cardápios, porém, tudo igual; conteúdo e objetivos. Em troca, apenas regurgitar.

Assim se deu sobre o suicídio. Falou-se de tudo. Desde que o fato se dera por envenenamento, tiro, até por asfixia. Versões e mais versões. Cada dia uma diferente. A prodigalidade não tem limites!

Você entende agora porque não há escrúpulos? Notou que desde o dia que se achou o pobre e querido senhor... como se chamava mesmo? Isso, senhor Dário. Notou que tão logo que se soube do ocorrido, triste e lamentável ocorrido, que tão logo se anunciou o fato, a plebe, a massa que se comporta como gado, acorreu à casa do falecido? Dali, sem critério, nem respeito, saíram ás mais mirabolante versões. Tudo se disse. Tudo se afirmou. Tudo se ventilou.

Teve, quem afirmasse, até, e sem cerimônia e um pingo de responsabilidade, um pingo que fosse, que o de cujos tinha uma filha. Nada comprovado. Tudo inventado por gente sem nenhum senso de respeito.

É conhecido de toda gente, sensata, destaca-se, sim, porque a sensatez, ao contrário da bisbilhotice, é artigo raro. A sensatez, como a um bom vinho que se aprimora no mais puro carvalho, a sensatez habita o coração de gente que se virtualiza na experiência. Então... era conhecido de toda gente que o próprio homem ficara viúvo há mais de trinta anos. Perdeu a mulher no parto da primeira filha, que também não resistiu. Todos sabem que o próprio homem desde o dia que perdera esposa e filha, dedicou-se a uma vida reclusa. Não saía pra nada.

Não se amasiou, não. Há mais de trinta anos ninguém ouvira em companhia de mulher, nem em encontros eventuais quando saia a tarde para caminhar. Sempre sozinho. Nunca acompanhado, embora, nunca deixou de responder a um aceno, um boa tarde, um como vai...

A história de uma filha, como logo se descobriu, foi de uma insensatez sem tamanho. Foi uma atrocidade em desrespeito com o próprio homem que nem havia sido sepultado. O absurdo de tudo é que nem as autoridades se prontificaram a encerrar aquela odienta invencionice. Ao contrário, como quem busca se projetar, porque sem brilho e autorrespeito, é que agentes de Estado, agentes que, a considerar a proeminência que tal posição lhes assegura, agentes, igualmente irresponsáveis, além de se calarem, também alimentaram a boataria.

Da imprensa, nem falo nada. Agem como verdadeiro urubus. Não tem a menor ética. São, tal como a plebe, vazios de critérios mínimos de responsabilidade.

Sobre o falso manto de Bem informar, cometem verdadeiros massacres morais. Destrói reputações sem o menor constrangimento. São assassinos sociais, pois uma vez estampadas imagens e ou reportagens sem critérios, o que esperar se não a desonra.

Quem, depois de todo estrago feito, depois de jogar na lama o nome de pessoas honradas, quem, em nome da ética e da responsabilidade, terá a hombridade de admitir que o que se divulgou não representava a verdade.

Mas não. Não são tão probos a ponto de admitirem que erraram. Não admitirão nunca! Afinal, nada mais primoroso que atender aos interesses dos anunciantes.

Sem anúncio a máquina não sobrevive. Sem anúncio não tem espetáculo. Quer maior espetáculo que acabar com reputações? Que seja mais uma desgraça, que seja mais outra pessoa desonrada. E daí!

E daí que morram seiscentas, setecentas mil pessoas; não importa. O que importa, que tem relevância, são os anúncios. A vida, a vida das pessoas; detalhes. Só detalhes.

Todavia, não foi estranho, de novo, tudo por puro e nenhum mais, interesse, que essa imprensa porca e antidemocrática, não fará sua, tão cobrada de outros, auto-crítica. . E essa imprensa porca e vilânica, não deve ser confundida ou identificada com a IMPRENSA, sim, com I maiúsculo. Enfim, não foi estranho que nada se noticiou sobre o número de óbitos (um escândalo em qualquer circunstâncias) e se deu elevado destaque às bisbilhotices sobre o pobre homem e uma suposta filha.

Apenas um passo

O Mais difícil

Porém, e talvez, o mais decisivo

Passou a vida inteira se preparando. Ao menos 30 anos aguardava por esse dia.

E agora que esse dia chegou

Sem saber porquê, não consegue deixar de pensar que não sabe o que quer realmente.

A dúvida, a dúvida primeva, a dúvida que inaugura a busca pelo conhecimento. É da dúvida, e não por outro meio, que surge a primeira faísca, a inaugural faísca. A faísca que explodirá assim que cheguemos ao conhecimento. É disso que se trata, é disso que, ao fim a e ao cabo, que se trata; não há outra possibilidade, somente essa, essa, tão primorosa nova possibilidade quanto o primeiro, o inaugural, instante em que nos vemos defronte o espelho.

Era preciso

Era preciso, mais que um sim, apenas a certeza que não dava mais tempo.

As coisas, e tudo que se relacionava com ela, como se nada de novo houvesse, assumia feições realmente inusitadas. O tempo não para. O tempo não espera o próximo segundo, afinal, o próximo segundo é a manifestação do próprio tempo em perpétuo movimento.

Pensou nos amigos que se foram. Chorou por cada um a dor sofrida.

Lembrou, em particular, a quem se referia como Meu guia, de um, totalmente crítico e desconfiado da bondade burguesa, quando se tentava incutir o tal espírito empreendedor. Lorotas! Lembra-se da veemência com o amigo atacava esse "canto da sereia" . Não existe espírito empreendedor, arrematava!

Não existe bondade quando se lança em "espírito empreendedor". São maneiras veladas de se esconder as diferenças. Tem-se por detrás desse canto da sereia, maldosa e sociologicamente nefasta, a falsa ideia de as oportunidades são e estão disponíveis igualmente pra todos. Com isso se joga nas costas do nigligenciado toda responsabilidade do descaso que o sacrifica.

No entanto, não neguemos, as ideias estão por aí. Estão no ar, soltas e a disposição de quem as quer. Todavia, continuava o amigo, as ideias não são ingênuas. São dotadas de interesses e trazem, mesmo que despercebidas, certas orientações. As ideias não são peixinhos no aquário. São tubarões em alto mar. Quando menos se percebe, mais elas te consomem. E quando, sem se der conta, as ideias, como uma segunda pele, já terão se transformado naquele a quem ela grudou, não há a possibilidade do diálogo. Ou...terão as ideias se transformado naquele a quem grudou, ou, terá, aquele alguém se transformado nas ideias, propriamente dito? Enfim, um dilema, um paradoxo? Nunca se saberá.

É estranho, ou talvez, nem tanto estranho que da derradeira e fatídica ocorrência, sabe-se pouco. Ouve-se e fala-se de tudo. De circunstâncias quase sempre, e sem nenhuma consideração para com o bom senso, oriundas das mais aberrantes e nefastas opiniões. Opiniões que não tem nenhum nexo de casualidade, e não poderiam, pois que estão no campo das conjecturas, portanto, sem comprovação. Portanto no campo minado das aparências, das vulneráveis aparências.

Fato é que a despeito do que se diz, o coitado, de maneira inesperada, suicidou-se, segundo conclusão do inquérito.

E segundo esse mesmo inquérito, soube-se depois, se tratava de uma terceira versão.

Não é de praxe, e muito menos, padrão, que de um inquérito se tenha ao menos duas versões anteriores ao que se divulgou. Revisões de escrita, pontuação, são revisões esperadas e desejadas, mas, versões!

Penso numa possibilidade única. Se o homem, como a um Deus, lançasse sua própria Lei e a disponibilizasse em sua própria Bíblia, o quanto, pergunto, caro leitor, despertaria seu interesse?

Talvez, não afirmo, apenas suponho, que de sua parte, porque me conheces, teria certa consideração. Com consideração vislumbro a possibilidade de ser um dos meus divulgadores. Mas, e as demais pessoas, as que não me conhecem, nem eu a elas, nem por simples formalidades, me diz, será que teriam o mesmo interesse?

A que se pensar no amanhã. É preciso pensar no amanhã, não como apenas uma sucessão de acontecimentos seguidos de um tempo pretérito. É preciso pensar como desejo real, sem modéstia e sem vaidade. Pois que àquele que não se coloca no próprio ato que anuncia, noutras palavras, não se responsabiliza pelo que defende, esse, em oposição ao coerente, sério, é um falastrão. E todo falastrão, pelas própria característica que o define, é um ser sem escrúpulos e inclinado ao melhor preço.

"Chegou o grande momento de cada um se apresentar com a cara que tem". Não foi que o Dr. Delegado disse quando o chamaram para ver o corpo? Por que, por que, antes de começar o inquérito, o delegado, sem chegar ao corpo, quer dizer, sem mesmo antes de ver em que estado estava o pobre coitado, o delegado, como que antecipando algo, pronúncia essas palavras? Não soa, ao menos, num primeiro momento, que o que se viu não sugeria um suicídio. Mas o contrário. Que o fato se dera por mãos alheias. É bem particular isso. Todavia, mais surpresa foi a substituição do delegado. Tudo se falou. De tudo se conjecturou. Mas o fato, que salta aos olhos, é que o sujeito morreu. Morreu bem perto, segundo disseram, bem perto de receber um prêmio (que ninguém sabia) ganho num jogo de números.

Enfim, coisas... particulares aconteceram.

Coisas tão inexplicáveis, pelo menos a olho nu, como que um vírus, insignificante em sua particularidade, porém, devastador, a ponto de fazer o mundo parar. Fato é que coisas inexplicáveis se deram e levantaram mais conjecturas. E a plebe, essa massa disforme e sem qualquer, mínimo que seja, critério e senso ético.

A plebe, que a tudo repete, se dispôs lançar, aos quatro cantos, observações, para não dizer, sentenças, em nada comprováveis. E, era de se esperar, a cada dia, mais e mais "dados" enriqueciam os fatos ainda com o inquérito não concluído.

É tudo um absurdo, não acha? Não é um absurdo, sem qualquer noção do real, do que aconteceu, enfim, não acha desumano, tecer comentários sobre fatos ainda sob inquérito? Não lhe chama a atenção que o delegado tenha sido trocado mesmo antes de o inquérito começar?

Meu amigo, dessa vida não se leva nada, mas, quando se morre, fica a memória do que se fez, como uma espécie de legado, de marca. O corpo, pobre acúmulo de matéria, o corpo, assim como a um papel jogado ao vento, o corpo, em contato com a terra o que é, ou, o que será. Do pó vieste, ao pó retornarás. O corpo em contato com a terra, terra será. O corpo incorporado à terra, nada mais é senão matéria orgânica, daí, o que fica de nós, não é a matéria, mas as memórias, os ditos, os passos, o legado.

Entende porque penso a importância da memória, da nostalgia? Entende porque o apego cego às novidades me levam a lamentar a possibilidade do fim da memória como elemento constituinte de compreensão do que foi para entender o que significa o que é? Ao contrário da defesa inconteste do Novo em prejuízo do que foi, não neguemos, houve movimentos, não tão distantes de nós, que vieram imbuídos dessa mesma postura. Negar o passado é negar a história.

Sabe de uma coisa?

Não há nobreza. Não um mínimo de nobreza quando se se depara com a vilania, com o infausto desejo, mórbido, eu diria, e não se fazem nada! Lembra do ocorrido, o ocorrido se aproxima de uns vinte anos, quando se achou um corpo no cais? Ah, quanta indiscrição. Houve verdadeira romaria ao local. Gente de toda a região, como quem aguardava a vinda do Salvador, acorreram ao local como o fiel ao padre na hora da óstia. O fato, lamentável, acrescenta-se , o lamentável foi se deparar com a indiscrição. Foi horrível ver como cada qual, na sua indiscrição e mediocridade, fosse capaz de protagonizar nefasto acontecimento. Houve quem, como se não houve medidas mínimas de civilidade, se prontificou a dar novas formas ao acontecido. Verdadeiros embusteiros. Gente horrenda que não pesa o estrago que a palavra mal empregada possa ter. A palavra corta tanto quanto uma espada. Mal empregada pode deflagrar guerras. Mas àquela gente, miúda em princípios, não se deixou abater. Não! Fez do fato um ato espetáculo. Um acontecimento digno dos anais da história.

O fato, o fato, mesmo, que merece destaque, com as considerações de praxe e com a devida ética, é que no esfalecido corpo, um corpo relativamente jovem, não havia sinais, ao menos à mostra, de violência. De modo que, no início, já se falavam, bem ali, perto do corpo, em suicídio. Confesso que, ao saber disso, algo de repugnante se apoderou de minha pessoa. Achava , e ainda acho, que à plebe não se deva dar ouvidos. A plebe é ascefala. A plebe não anda com as próprias pernas. Quer ter a plebe? Trate-a a pão e água. De vez em quando, jogue um pouco de azeite. Junte a isso, verá, sucesso na certa, o espetáculo, não importa de que tipo,. A plebe ama e espera o espetáculo. Pão e circo, eis o alucinógeno da plebe.

Um alfinete de um broche no peito. Não foi afogamento, como se disse e tresdisse. No início de tudo se falou. Falou-se em suicídio - engraçado, tudo começa como se fosse suicídio -, depois, em acidente, assim, como que a moça tivesse caído da ponte, e depois, que nem ali ela tivesse morrido. Agora, com essa descoberta, do alfinete no peito...

O Êxtase, é a possibilidade do inesperado, do oculto que possa revelar, é essa infinita espera pelo ignorado, pelo amiúde escondido que provoca o êxtase. O inevitável frenesi. É no frenesi, esse instante de ebulição no coração, esse órgão depositário dos sofrimentos humanos, é no coração que a explosão acontece. Tudo se extrapola como se uma bomba de hidrogênio ou mesmo nuclear, explodisse e tudo se resume a pó. Porém, quando se constata o engano, o engano de avaliação que só nos afoitos, ou mal intencionados, só nesses o engano se transforma em desfaçatez.

E não foi diferente. O acontecido, como um evangelho, atravessou a cidade. Atravessou e sentou lugar no imaginário coletivo a ponto de ninguém mais lembrar do nome da falecida. Era um detalhe saber o nome. A plebe não se importa com nomes. A plebe idolatra fatos, fatos que se pode manusear de acordo com o gosto, o público e a adequada ocasião. Pão, circo e público!

O pobre homem, o da vizinhança, do inquérito que concluiu ter sido suicídio. A alegada filha, acredite, sobre ela tudo que se soube é que nada se soube. O anúncio, como tudo que vêm da boca pequena, não teve nada de concreto. Anedota. Nada mais que anedota. A anedota é parte do espetáculo. A anedota é a cama que a plebe deita. Pão e circo e anedota, o enredo perfeito para o distúrbio. O distúrbio do real como elemento necessário para o olhar transverso. O olhar julgador e nescessário para a distração.

É isso, o prato sobre a mesa. O alimento necessário à vida. A vida que suspira quando se vê sob ameaça. A vida, quando encurralada, sob ataque por uma doença, um vírus ou bactéria, a vida, como um gladiador, luta com todas suas forças. Ela, como um exército cercado por todos os flancos, sem uma artilharia eficiente e forte o bastante para infringir resistência, a vida, não se sabe como, mobiliza suas forças e se põe em campo de batalha. Impressiona a capacidade, como num átimo de segundo, todo o corpo, representação concreta da vida, o corpo se reaviva. O corpo se expande e avança em batalha para deter o invasor. É indubitável que no liminar de uma batalha considerada perdida, o soldado, abandonado no campo de batalha, sem seus companheiros e sem ordenança dos comandantes, ou seja, somente ele e o inimigo, um defronte para o outro, porém, este, mais bem equipado e guarnecido por uma retaguarda potente, não há dúvida que esse soldado lutará com sua máxima força. Assim, também se comporta a vida. A vida, com o soldado, ao se deparar com forças que a põe em desvantagem, a vida se avoluma, se infla. Se avoluma como Davi defronte Golias, o inesperado acontece e esmigalha todas as possibilidades. Davi vence Golias, eis, a máxima diretriz do que significa saber o que se quer. Nada mais. Nada mais importa quando se sabe onde chegar. Saber o caminho, saber caminhar.

E hoje o que faremos, querida, mentiremos juras de amor em nome da felicidade geral? Sairemos às compras sem qualquer necessidade, só para exibir as sacolas (e talvez chamar a atenção da vizinha exibida) com o nome das lojas. Ou, como se diz no jargão economêz, alavanquemos as vendas para que a roda da economia não cesse.

Ora, ora, pobre criança, não vê que tudo é mentira, que tudo não passa de ensaios, de interpretações. Mente-se a todo tempo. A todo onstante se mente sobre a felicidade, sobre o amor, sobre o jardim florido. Se mente como se a mentira fosse uma reza, uma reza para que tudo tudo funcione. Mentimos, logo somos humanos! Já pensou nisso, querida? Pensou como a mentira, no fim, é a nossa marca indelével? Os animais não mentem, por isso, são animais. A mentira, creia-me, doce criança, a mentira nos conduz à verdade. Um passo, apenas um passo, e descobrirá a mentira como o coroamento da verdade. Da verdade incessante. Da verdade como as palavras ditas no Monte Sinai. Entende, doce criança. Entende o que significa acessar a mentira para ir em encontro da verdade? Consegue entender isso?

O pobre homem, como era mesmo o nome? Isso! Mário. Poderia ser qualquer um, pouco importa. O nome não importa, o nome, o nome descolado, solto, não acrescenta nada e não interessa. O que que interessa, que atrai, que fixa, que fideliza a atenção, é o fato, a descrição do ocorrido e a indiscrição do narrado. Tudo pela audiência, pelo espetáculo, afinal, para o show da vida, luzes, brilhos e excessos. Esturricar a atenção com imagens e mais imagens. É grotesco, pergunta o apresentador. Sim, responde, o diretor, coloque no ar, ordena. Não há e não haverá pudor. Tudo pelo espetáculo.!

O pobre homem, o que se suicidou, conclusão do inquérito, terceira versão, depois da substituição do primeiro delegado, o pobre homem, querido e respeitado, afirmam alguns, sem provas, é claro, deixou sobre a mesa dois pratos. Dois pratos, estranho, não acha, para quem mora sozinho?

O sujeito morava sozinho, todos sabiam, então, e nisso não vai nenhuma insinuação, por que dois pratos? É apenas uma pergunta, entende, entende como certas coisas suscitam questionamentos. Consegue, nisso te questiono, por que uma pessoa que mora sozinha, por quê, coloca dois pratos?

Ora, ora, pobre criança, é dispensável que responda, não vai adiantar de nada. Tentar responder é tão desnecessário quanto tentar desvendar a alma e as razões humanas. Nada mais sem importância, sem significado, que tentar desvendar o que se quer, e fazem de tudo, para se manter oculto. A alma humana, o que é?

O divórcio. O divórcio, ouviu falar? Apareceu assim, do nada. O divórcio. O divórcio, disseram, sem provas, claro, o divórcio, apareceu sem que ninguém soubesse como. O fato. O fato mesmo, sem cerimônia e sem mequetrefes, o fato, o fato genuíno, isto é, o fato primordial, é que alguém falou do divórcio. Assim, do nada. Alguém, ninguém sabe quem, como e por quê, alguém falou do divórcio. Sem cerimônia e sem mequetrefes, falou. Todos ouviram, mas ninguém sabe onde começou. Começou assim, sem autoria conhecida, pelo menos assim disseram. É por demais horrendo que exista gente disposta a fazer insinuações. O assunto do divórcio apareceu como um novo fato, só que com o propósito único de atribuir ao falecido bom homen, amado e respeitado por toda vizinhança, algo que, de certa maneira, manchasse sua reputação. É notório. É notório que o tema do divórcio aparece com essa intenção, porém, e nisso reside algo de abominável, mesmo com todos os indícios contrários, deu-se destaque ao assunto. Deu-se destaque ao fato sem, contudo, considerar as intenções nefastas de manchar a imagem do pobre homem. Horrenda. Horrenda como se comporta a imprensa. Associada à plebe, ambas, sem considerações, sem escrúpulos, movidas por sabe-se qual interesses, ambas não pesam suas ações, o que vale, o que interessa, sem escrúpulos, e sem pudor, são os fatos, sem provas, claro, mas é pelo espetáculo, pelo delírio que o espetáculo provoca, é que se investe na anedota. A anedota como medida do imponderável, do inesperado como combustível e risco de explosão. Mas, e daí, não é mesmo, disse certa feita um mentecapto. Coroar o imponderável, eis, para gosto e gozo da plebe sedenta de excessos, de inconsequencias, que se aposta no imponderável. O imponderável, em si, e só por si, o descontrole, o mal calculado, o imponderável, para deleite e satisfação geral, o imponderável, mais que qualquer outra coisa, o imponderável é a máxima efetivação da perda de controle. O imponderável é o rompimento do dique. Do rompimento aparece o imponderável, o desconhecido, o inesperado e tudo, como se nada mais interessasse, assim, sem pudor, sem magnificência, nada mais, nada mais, sob o azul do céu, céu de brigadeiro, como se diz, ou, o céu plúmbeo, como se teme, não importa, tudo e nada, unidos como um casal no altar, unidos, o imponderável e o rompimento, tudo pode acontecer. E daí, diga, pobre linda criança, o que pode acontecer senão, e só isso, senão aguardar o desfecho. O desfecho, sem roteiro prévio, como um improviso, o desfecho pura e simples, sem cerimônia e sem mequetrefes, o fim, nada mais pra socorrer. Sem socorro e entregue ao acaso, ao desconhecido, como quem se atira de para-quedas, na confiança, na certeza, de que ele abrirá, porém, tem-se, mesmo sem pronunciar, a fagulha, o percalço tangenciando, à espreita, como numa emboscada, o ato inconcluso, porque ainda em andamento, tudo ainda sem solução, diante da possibilidade dele não abrir. E aí, o quê resta senão, e apenas, o abismo. O abismo como meta. O abismo como a última possibilidade, talvez até, o último suspiro, o último acontecimento. E depois? Silêncio. Silêncio quase solene, quase sagrado.

O beijo no asfalto. O beijo colado no negrume quente do asfalto, do asfalto que sustenta a febre doentia de todos terem que chegar. Mas ...chegar aonde? Em qualquer lugar, desde que chegue. Que se acomode como o recém chegado hospede. Novo e sedento de novas descobertas. O novo hospede, quer dizer, o novo delegado, o neófito, o noviço, eis que chegado, hospedou-se no hotel. No hotel mais mequetrefe que a mais mequetrefe das pocilgas. O noviço, o recém chegado delegado, sujeito estranho, se pôs, como quem procura o diário perdido de alguma ou algum adolescente espinhento, se pôs, todo serelepe, a vasculhar tudo, como quem busca um tesouro. O delegado, como a um fedelho, noviço, porém, sedento de prestígio, sem escrúpulos, como a imprensa e a plebe, esse delegado, que substitui o primeiro delegado, sério e responsável, e foi substituído, o noviço, o fedelho, busca prestígio, adora a nova metodologia de dominar mentes e corações. Não trabalha com subordinados, trabalha com colaboradores. Pro ativo, eis sua máxima favorita. O fedelho, o delegado, sempre com seu caderninho de anotações, como um diário, o caderninho, símbolo de sua índole de perspicácia, ou, como se diz, em marketing empresarial, sempre com seu portifólio, o caderninho, sempre à mão, suscitava a busca por detalhes, detalhes fundamentais para elucidação de crimes. Todavia, descobriu-se depois, que

era apenas um apetrecho, um opúsculo inofensivo, sem qualquer valor, pois que apenas um apetrecho, um insignificante apetrecho que, aos olhos do fedelho, do delegado, do noviço, suscitava, segundo seus pensamentos, algo de magnificante, algo que, como uma jóia, impressionasse. Mas não. Não, ninguém, sóbrio o bastante e vacinado contra as imposturas da plebe e da imprensa, ninguém, com um mínimo de razoabilidade, se deixou iludir. Então, o noviço, não impressionou. Um caso perdido, disse alguém, um colaborador que, logo após o dito, como quem discorda dos métodos empreendidos, acrescentou, sem meias palavras, e com um quê de reprovação, que os métodos mais que ilegais, eram a desconstrução de todo o sistema judicial. Era a corrupção do, para quem preserva o estado onde o Direito predomina, não como uma instituição monolítica, inabalável, perfeita, mas, como uma instituição, em constante construção, em aperfeiçoamento, mas que, não se perca em

aventuras de jovens mancebos e juízes ineptos, era a corrupção do sistema de justiça. E nisso residia toda a desfaçatez. Para essa turma, sedenta de prestígio e poder, não há outra conclusão possível, é que, mesmo sem nenhum indício concreto, é que a turba, como um exército de piratas, estava disposta a surrupiar, em nome de um genérico combate à corrupção, a turba, não média esforços. Subvertia todo o sistema de garantias e preceitos da ordem jurídica. Era claro, a conquista do paraíso, outrora relembrado por Rene Dreifuss, estava no horizonte. O Estado, ente abstrato, sem face, o Estado, o último prêmio, e por isso mais valioso, a donzela desejada, o Estado, o poder, o sistema judiciário, tudo, tudo, estava na mesa, no horizonte. O fedelho, o noviço, era dessa turma. Desvendar se foi suicídio, se o pobre homem tinha filha, se o inesperado parente existia? A essas perguntas, o fedelho, o noviço o midiático, não tinha respostas; não precisava. Desvendar se foi suicídio, em si, não era o primordial. O fundamental mesmo, era seguir o que o noticiário entendia para manter o interesse do público e a audiência.

Um gesto nobre. Há tanta ausência de gestos nobres que o próprio termo, hoje, não reflete o que quer dizer e significar. Outrora, talvez porque não havíamos experimentado o limiar da desfaçatez, da falta de respeito pela condição humana, talvez, no presente, presente distópico, não esqueçamos, talvez, nessa bifurcação, nesse cruzamento, nesse divisor de águas, talvez, ainda que representado por um fio de vaga lembrança, talvez, ainda exista algo do que significava Um Gesto Nobre. Porém, é preciso ressaltar, que o pobre homem, o do suicídio, segundo conclusão do inquérito, terceira versão, depois da substituição do primeiro delegado, substituído por um noviço, um fedelho vaidoso e em busca de prestígio, o fato, que ninguém, nem a imprensa movida à vilania, sem escrúpulos, junto da plebe, cega e esperançosa pelo espetáculo, pela anedota, o fato, que ninguém queria lembrar, era que o pobre homem era um ser movido à gestos nobres. Dotado de farta discrição, o homem, viúvo, ainda muito cedo, não era de aparições em público. Era um homem condicionado ao mais completo isolamento. Não era melancólico. Era, por assim dizer, dedicado à contemplação, ao convívio calmo, sereno e dedicado ao pensamento. Pouco se sabia de sua vida pregressa. Chegou à cidade já casado e sem filhos. Passados quinze anos, soube-se, por boca solta, que a esposa estava à espera do primeiro bebê. Todavia, por razões desconhecidas, tanto a genitora, quanto a filha, ambas, não residiram. Falou-se de tudo, desde que a mãe era acometida de moléstia incurável, até, imagina até onde vai a torpe e nefasta maldade humana, falou-se que filha era portadora de uma deformação craniana e que, para não causar vergonha à família, a pedido da mãe, deu-se seguimento a um procedimento para que a filha não sobrevivesse. O procedimento deu errado, vitimando mãe e filha . Nada disso provado, claro. Não há necessidade de provas quando se tem convicção, disse, em rede nacional, certa feita, alguém deslumbrado com o próprio reflexo no espelho, alguém tomado de uma certa síndrome de narciso. Alguém que, sem escrúpulos, sem qualquer apreço e noção do que prenuncia o conceito Justiça. Mas não. O fedelho, o delegado, o noviço, tal como todos que fazem de seu mister um aparato de promoção pessoal, o fedelho pouco, ou nada, se importava com os males que causava. Tudo, e nada mais, era feito para o noticiário. Todavia, em sentido contrário, o bom e querido homem que suicidou-se, segundo conclusão do inquérito, o bom homem, era a personificação do caráter nobre. O contraste, em certo sentido, dá a alma humana, sem modéstia, um quê de crença de que há sentido acreditar na vida.

Um novo dia. Um dia que chega como quem espera o que nem sabe o quê. Um dia, assim, descompromissado, um dia moleque, que chega e fica, assim, solto, largado, como quem se joga no rio e não se preocupa com a qualidade da água; só quer estar ali, nas águas e só. Assim se parecia aquele dia. Calmo e belo. O sol invadindo cada canto, cada fresca, como o amante, que chega, sorrateiro e fica. Fica sem pedir licença, porque, assim como o sol que se espera, também o amante é esperado. Ambos, sol e amante, são esperados. Aquele dia, mais que outros, como

um júbilo, foi esperado e comemorado. Comemorava-se, ao que se soube depois, sem provas, claro, porque nunca se necessita de provas, quando se monta o espetáculo, a anedota, comemorava-se, o aniversário do pobre homem. Esse acontecimento, sim, foi um acontecimento, sem provas, claro, saber que naquele dia se comemorava o aniversário do pobre homem. Era estranho, afinal, não se sabia muito do homem. Sabia-se que chegara à cidade já casado, sem filhos e que perdera mulher e filha, no parto. Que tinha um parente e uma filha, sem provas, claro. Que era um homem recluso, dedicado à contemplação e de poucos hábitos. Pois então, comemorar aniversário de um homem de quem nada se sabe!? Um despautério! Um despautério, essa é a palavra, a palavra mais pertinente e adequada. Não há outra, mais pertinente e adequada. Como se anuncia bodas de alguém de quem não se sabe nada! Um despautério, isso, um despautério. Alguém, registra-se, de hábitos tão discretos, tão contidos, que soa estranho que alguém quisesse comemorar o aniversário de uma pessoa com essas características. Mas assim foi aquele dia. Um dia marcado por um acontecimento incompatível com alguém dedicado a uma vida reclusa e discreta. Um acontecimento, registra-se, um acontecimento, pois, alguém disse, sem provas, claro, que o pobre homem, suicidara -se no dia do seu aniversário. Um duplo acontecimento, noticiou a oficiosa emissora que, não há muito tempo, e sempre contrária às questões coletivas, a oficiosa emissora, como um porta voz, e sempre à serviço da classe nefasta e opressora, a oficiosa emissora, sem critérios e sem escrúpulos, noticiou que o homem se suicidou no dia do seu aniversário, sem provas claro. Pois foi, reproduziu a plebe amorfa. Reproduziu cada frase como se fosse as dez escrituras. No monte sinai da audiência, o deus mercado anuncia as boas novas, anuncia o próximo crucificado. A anedota, a possibilidade do espetáculo, da audiência, tudo, sem intermediário, isto é, sem consciência crítica, é a âncora que se joga. A âncora que sustentará o espetáculo, a distração. Nada mais, doce pequena criança, nada mais, além, e só além, da paz e do conforto em saber que a audiência bateu o recorde anterior. Tudo bem. Tudo bom. Doce criança.

O pobre homem, confinado nos noticiários, tratado sem escrúpulos e sem consideração, ainda insepulto, dele se falou todos os dias, sem pausa, sem trégua, sem ética. Sem levar em conta que tudo que se falou, até aquele momento, nada mais era que boatos, coisa de beiço solto, de gente sem tempo pra coisa melhor. O fato, o fato primordial, que conta, porque denota, indica, sugere, uma linha de raciocínio, era que do pobre homem sabia-se pouco. Nada mais que vagas informações. O resto, o resto mesmo, o que abastecia a plebe e suas aberrações, eram apenas aleivosias. Coisas sem nenhuma razoabilidade, sem nenhuma credibilidade.

No vinho está a verdade, a verdade se revela no vinho. O bilhete com com essa frase, segundo se disse depois, sem provas, claro, é que esse bilhete estava junto ao corpo, não ao corpo do pobre homem , mas ao da falecida encontrada junto à ponte, a do broche. Na verdade, o bilhete estava espetado com o alfinete do broche. O bilhete espetado com alfinete, trazia, mesmo àqueles que se debruçavam sobre anedotas, algo de misterioso. Sim, porque aquele bilhete pregado daquela maneira? Todavia, sem que alguém soubesse como e por quê, correu à solta que o bilhete fosse uma senha. Uma senha, pois, também se falou à boca pequena, à solta, o beiço mole, que a mulher, sem provas claro, pertencia a uma seita. Uma seita que ninguém sabia dizer onde ficava, quem lá coordenava, quem pertencia, enfim, palavras soltas ao vento, sem um quê, um mínimo de plausibilidade, nada, absolutamente nada. Só conjecturas. Conjecturas, o combustível ideal e necessário para a anedota, para o espetáculo.

Enfim, o sonho. O sonho de uma noite de verão. De uma noite, sem luz, sem lua. De uma noite onde os amantes se prometem na certeza de que nada se cumprirá. Promessas de alcova. Promessas, assim como a bailarina que dança porque por isso é bailarina, promessas de alcova, tal qual a bailarina, são feitas para a alcova, disse, certa vez, o pobre homem, o do suicídio em resposta porquê não se casara novamente, sem provas , claro.

É certo, diga pequena doce criança, é certo que de uma noite de verão, sem qualquer evidência, sem qualquer conexão, se possa processar fatos , de cujas consequências, sem critério, sem lógica, se possam difundir versões e mais versões. Diga, diga, doce criança, tú, que, acredite, penso que habita a mais pura das puras intenções. Tú, que, sem que alguém deseje, pois que eu não suportaria, não suportaria pensar nessa possibilidade, de alguém, considerar que a verdade não merece nosso mais ferrenho empenho e sua defesa. Pois que, penso, a verdade, no seu nascedouro advém da mentira, sim, a mentira é o caminho para a verdade. Antes a verdade é um campo a ser trabalhado, um campo sem rosto, sem expressão, um descampado. Diga, doce criança, diga com toda sua mais pura e sincera palavra, pode, diga, não titubeie, pois que, se titubear, acredite, toda minha esperança se vai, como a água do mar entre os dedos. Não, não me faça perder as esperanças. Minha fé depositada em ti representa a fé na humanidade. Talvez, e só talvez, aquele homem que cometeu suicídio, talvez, o ato, conclusão do inquérito, terceira versão, depois de substituído o primeiro delegado, talvez, reforço o talvez, pequena doce criança, porque na vida a única, incontestável certeza, inabalável certeza, é que todos morrerão. Então, doce criança, talvez o homem tenha perdido suas esperanças. Talvez o ato heróico, sim, quando se perde as esperanças na humanidade, dar cabo a própria existência, possa significar um ato heróico. Um ato extremo, sim, mas que indica, que simboliza, e por isso, um ato heróico, que a humanidade está se tornando verdadeiro robô. Sem sentimentos, sem preocupação com o que acontece ao lado. O automatismo, o fazer mecanicamente, tudo isso, tem tornado o ser humano desumanizado. Alguém fez esse mesmo gesto. Alguém que indicou, com seu sacrifício, que a humanidade estava se perdendo. Não faz muito tempo. Sacrificar-se para que seu ato represente redenção. Para que seu ato, como o combustível que alimenta o fogo, possa acender nos homens, renovadas esperanças. Então, doce criança, é em ti, e não em outra possibilidade, que repousa a esperança. Talvez, o ato extremo do homem que deu cabo à própria existência, segundo conclusão do inquérito, terceira versão, depois de substituição do primeiro delegado, talvez, em certa medida, e com o mesmo propósito, seja um chamado, um novo chamado à esperança. Está em você, doce criança, a possibilidade de redenção. A possibilidade, única, de não se deixar perder a esperança. Uma flor num jardim condenado, você, criança, é essa flor.

Ao vencedor, as batatas! Essa máxima, com a qual, sem modéstia e sem conciliação, fez com que não mais se glorifiquem as guerras. Pois que, ao fim de tudo, o que se tem, e que ficam para a história, são apenas fragmentos; leves toques de parcas lembranças. Os grandes feitos, os atos que imortalizam, esses, quando dos interesses, são congelados nos quadros ou nos monumentos. Todavia, só se imortalizam os comandantes, os generais. Rogar à posteridade os feitos de soldados ou gente do povo, não glorifica. Gente do povo fede, talvez, os da classe dominante ache isso e, por isso, só generais estão nos monumentos. Os monumentos glorificam nações. Ao vencedor, as batatas! No fim é esse o real pagamento; batatas. Batatas como a medida do heroísmo. Batatas como a medida de todos os excessos. Os excessos de heroísmo, de vontade superior. Excessos doentios. Excessos que, quando explodem, como um deslocar do ar repentino, causam um verdadeiro cataclisma. Heroísmo não qualifica a saúde de uma nação. Heróis servem para propagandear uma suposta virtude que moldará espíritos frágeis. Isso, os gregos já sabiam.

Ok..ok. fiquemos com o que a conclusão apontou. Foi suicido. Mas em que medida, sem constrangimento, sem juízo de qualquer medida, ou critério de valor, se possa preconizar que o ato do sujeito, em si, e só por si, chancelam o que afirmou o inquérito. É verdade que, tão logo se anunciou o ocorrido, acorreram, como verdadeiros urubus sobre a carcaça, a plebe havida de sangue, digo, de fuxico, o que, no fim, são correlatos, a se considerar o que se busca quando se envolve a plebe. Considerar suicídio, apontá-lo como única causa, e rápida, como se sucedeu, a bom termo e término, não se ajusta quando se busca uma investigação séria e desinteressada. Sabe-se, sem florear, que quando se procede com critério claro, com paciência e respeitando o tempo , nada, absolutamente nada, sairá de outra maneira senão àquela que a investigação, por seu próprio caráter buscam . Todavia, quando o levantamento se começa e prossegue sem a atenção adequada, se tem, para prejuízo da razão e da busca de esclarecimentos, serão versões e mais versões e, pior, cada qual com premissas e conclusões conflitantes. Uma lástima, uma lástima e nada mais

Toda conclusão, fruto do açodamento, da pressa como resposta às perguntas que não se fizeram, não pode, nunca poderá, se concluir com destreza e responsabilidade. Quando o que se tem é a satisfação da vaidade, perde a razão. Uma lástima. Uma lástima que se estende e contamina toda e qualquer possibilidade de compreensão. Uma lástima. Nada mais. Nada mais que uma lástima.

O pobre homem, o que se suicidou, segundo conclusão do inquérito, terceira versão, depois da substituição do primeiro delegado, o pobre, sem sepultura ainda, teve sua vida devastada por boatos e mexericos dos mais torpes, dos mais vis e ultrajantes comentários. Macular sua imagem, mais que boatos alheios e estranhos interesses, destacou-se, quase como uma verdadeira cruzada, as tentativas, igualmente vis e torpes, de se fazer crer que o pobre homem tinha lá suas fraquezas e contradições.

Verdade seja dita, como qualquer ser humano, o pobre homem, tinha suas contradições. Aliás, nunca se tentou fazê-lo divino. O que difere da vil tentativa de fazê-lo isento destituído de valores nobres. Daí que a plebe, unida, porque hipócrita e deficitária de princípios, a plebe, como aí gabo que caminha para o matadouro, num cadente e mecânico passo, a plebe rumina seus vitupérios. Gado e plebe, diferença não há, quando essa se comporta cega e acriticamente. Quando, sem que queira saber, sem, quando, desinteressada em saber a razão e o motivo, passa a reproduzir, como um ser autômato, age por mecanismos sem qualquer conexão com a realidade, é nesse instante que surge o despota. O despota é a antítese do homem coletivo, do homem sociedade. O despota, como toda e qualquer manifestação da pessoa em sua máxima individualidade, o despota é a negação da vida, da vida porque ao nega-la como expressão da coletividade, o despota nega a coletividade. Daí ao despota poder e ele lhe encarcera.

Talvez, e só talvez, a premissa imediata tenha sido adequada. Todavia, e sem constrangimento, após apurados os fatos e as circunstâncias, a conclusão indicasse outra razão. O que, entretanto, e para surpresa de todos, foi substituir o delegado responsável, e com vasta experiência (lembremos do caso do rapaz que degolou mãe, a tia e o irmão). Tudo, circunstâncias, horário, dia e fatos ocorridos um dia antes, indicavam um caminho. Não fosse a experiência e a perspicácia do delegado, certamente ( e lamentavelmente) a justiça, justo ela, tão amada e perseguida por poetas e tribunos, estaria no banco dos réus. Um inocente, um pobre moço sem qualquer noção da vida, estaria, nesse instante (,e há muitos) atrás das grades como se fosse um degenerado incurável. É certo que de imediato se teria feito Justiça. Mas a que custo, a que custo, quando se condena um inocente somente porque assim o querem a plebe ávida e sequiciosa de sangue. A que custo, alto, diga-se de passagem, vale condenar um inocente, um pobre coitado que, além das perdas irreparáveis e, sabe-se - lá como, terão efeito sobre a pobre existência desse pobre moço. A que custo!? É Justiça ou vingança, quando, num esforço quase sobre-humano, isto é, sem medir as consequências e os prejuízos que tal conduta causa, se busca condenar alguém somente porque a plebe, assim se coloca, como nos tempos do Coliseu, clamava pelo sangue do vencido. Um horror, nada mais que um horror.. Deus dê paz aos mortos, porque aos vivos ainda resta viver.

Ora, ora, se não foi uma surpresa saber, por acaso, e de modo engraçado, que ao falecido se quis atribuir de tudo e mais cinquenta por cento. Sim! Acrescentar pontos, vírgulas e mais umas exclamaçãozinhas, é coisa que a imprensa sabe e ensina com prazer. Deter-se aos fatos, sem acréscimos e interpretações, trabalho que qualifica a boa imprensa, não está nos manuais dessa imprensa sedenta de sangue e futricos. O futrico, o mexerico, o mal dizer, tudo, sem modéstia e sem assombro, à imprensa, como um saco sem fundo, tudo serve e de tudo se serve sem considerar as consequências. Não há desculpas. Não há arrependimentos. No máximo, e tardiamente, e sem assumir corresponsabilidades, ver-se-á, quase escondido, como nota de rodapé, um lamento, mudo, seco, formal. Não há nobreza. O ato redentor, que sela a vilania e ressignifica a ação, esse ato, para àquele sem meios e medidas de atos nobres, para esses, assumir o erro, tal qual o larápio, não consta na lista dos atos nobres. O homem ignóbil, irascível, sem escrúpulos, como se fosse um bestializado, age sem considerar qualquer possibilidade de reconquista, ou melhor, apego aos atos que edificam e qualificam homens, simples homens, homens do povo, sem posses, sem títulos, em homens nobres. Apenas um gesto, um olhar, um sorriso, bastam para que o ato nobre se faz notar. Não tem nada ver com posses e títulos. Tem a ver com solidariedade, companheirismo. O ato nobre, assim como o fruto que nasce de a flor, a flor do broto, o broto resultado da semente, ou seja, numa sucessão de eventos que de conectam, o ato nobre é o resultado das ações, de início imperceptíveis, o ato nobre é o fruto dessas ações.

Está claro que nada mais importa, nada mais tem sentido se todos, a todo tempo e o tempo todo, pensam e agem sem considerar o resultado, e o alcance, de suas ações? E mais que certo, pelo menos até agora, que a humanidade, como uma manada, tem caminhado sem rumo. É eloquente, e triste ao mesmo tempo, ver o quanto se tem perdido em possibilidades de novas caminhadas. Errante, o Homem, já não sabe para que suas ações e descobertas, servem. Transita por estradas que, tão logo se mostram arriscadas, ele, como um menino sem rumo, se agarra ao primeiro falastrão que aparecer. Nada mais. Nada mais além do susto inesperado. O inesperado acontecimento como prenuncio da algo que virá como atabalhoado de acontecimentos a qualquer conexão com o real. Uma tênue lembrança de um tempo registrado no diário da menina de tranças longas e lenço vermelho.

E já dominado por ideias e ideais não seus, mas de outro, com interesses e objetivos claros, já se sabe o resultado. Mais tristeza e assombro. Mais dor e sofrimento.

E haverá quem dirá, sem qualquer consideração pelo nefasto resultado, que se trata de exageros. Tão logo confrontado com os fatos, tristes fatos, o desumano defensor do nefasto, sem qualquer veio de humanidade, e em nome de uma amalucada escolha, abandona o recinto. Quadro mais que corriqueiro. Mais que se tornado normal numa época de extremos e sem possibilidades de contra-sensos. Tudo tem se tornado revestido de uma mesma roupagem, de uma mesma matiz de tom e de acabamento. Fim da História; vaticinou alguém. Todavia, a história não termina. Ela segue seu rumo, mesmo sem remo e sem direção conhecidas, mas segue. Igualzinho ao rio que não cessa seu curso porque o Mar é seu destino final. O encontro com o Oceâno.

E, então, sem pausa, nem trégua, como um soldado que se dirige ao campo de batalhas, guiado e movido por sentimentos confusos e sem aparente conexão entre si, não se pode pode ignorar, sob risco de se cometer o infausto perecimento da vontade de se poder lutar por algum ideal, por mais absurdo que possa parecer, fato é, que, ainda que movido por ideais questionáveis, o importante a destacar, sem sombra de dúvidas e sem complacência, é que aquele sujeito, em tudo, e, talvez, por tudo, nunca, em toda sua vida, tenha usufruído da vaga ideia que lutava por alguma coisa. Era, para ele, como para a criança que sobe pela primeira vez sobe numa roda gigante e pode, como jamais sonhara, ver tudo do alto. Descobre, para espanto e deleite, que para mais além do seu mundo, há outras possibilidades. Igual acontece com todo aquele que nunca experimentara outra sensação a não ser a de apenas existir como se não existisse, isto é, como se fosse invisível.

O corpo, já sem vida do homem que se suicidara, conclusão do inquérito, do terceiro, depois da substituição do primeiro delegado, e assumido pelo escroque do narcísico novato interessado apenas, e não em nada mais, em fazer daquele caso, complicado por suas próprias circunstâncias, apenas um trampolim para saltos mais altos e sem conexão com a Ética e o profissionalismo.

É preciso mais que arte para não sucumbir. É preciso saber o que será o dia seguinte. Descobrir, como um Oráculo, mesmo que não de Delfos, como o momento que virá, sem trégua e sem medida, interferirá em nossas vidas. Da impossibilidade disso acontecer, somente a Arte, majestosa em toda sua grandeza, somente ela, nesses tempos sombrios e cheios de incertezas, poderá amenizar o impacto dos acontecimentos.

Como resultado de um terremoto que caosifica a vida e coloca tudo noutro lugar, a Arte, quando impregna o espírito, como uma nova possibilidade de existência e resistência, a Arte passa da mera contemplação para a revolução. Assim acontece quando se abre os braços para o amanhã. O amanhã como prenuncio de novos tempos.

E então, se pode falar de tudo. Se pode, sem medo e sem pudor, sem receio da admoestação, da reprimenda, sem conjecturas e meias e falsas demonstrações de incredulidade, se pode apreciar o Belo como quem observa o nascer do sol e espera a chegada da lua como o coroamento do sublime.

O Homem, o que se suicidou, segundo o inquérito, produzido pelo fedelho que substituiu o primeiro delegado que não corroborava o suicídio e foi substituído, pelo fedelho, o homem, querido por todos, que disseram ter tido uma filha e que perdera filha e esposa no parto, o homem se suicidou. A notícia correu mundo e vilarejos. Todos queriam saber porquê o coitado tirara a própria vida. Era um contrasenso pensar nessa possibilidade. O homem, diferente da maioria dos homens do vilarejo, não dispunha de tempo, e nem gostava, de ficar às línguas soltas. Era recluso. E somente quando alguém, pôr respeito e deferência, lhe dirigia a palavra, a esse, com esmero e natural gentileza, retribuía e seguia seu caminho.

Não esquecendo que Falar de tudo, exige cuidado e responsabilidade. É preciso saber, e sem meias palavras, sob risco de ser admoestado em público, que a fala solta, sem critério, sem qualquer preocupação com ou a quem atingirá, que a palavra, como a espada empregada pelo combatente, a palavra, tal qual a arma, também mata.

Por princípio, somente por princípio, nada mais.

Foi por princípio que o primeiro delegado não corroborou a tese, lançada, sabe -se-lá com qual intenção ou interesse, do suicídio. O suicídio como elemento investigatório, é mais célere que qualquer outra ocorrência. Ouvidas algumas testemunhas, circunstâncias e pormenores, conclui-se rapidamente. Bater o martelo em suicídio, por esse por menor, já se pode pensar em cerelidade. Porém, deve - se, sob risco de camuflar um assassino, anunciar o suicídio quando já não resta dúvidas. Não foi o que se deu. A negativa do primeiro delegado culminou em suas substituição. Mas deixemos pra outra ocasião.

A vida me é dada uma vez. Depois disso o que acontece? Nada mais que apostas. Lembremos, Deus não joga dados, os homem, sim. Então no cassino da vida, a roleta russa não cessa nunca. Saber em qual disparo o inevitável virá, sem que tomemos conta, faz do processo Vida uma aposta no imponderável. A imponderabilidade, o estampido, tanto quanto a impossibilidade de se fazer o cálculo, o preciso cálculo, pressupõe reconhecer, e aceitar, que sobre a vida não temos como prever cada possibilidade. É por entender que a vida se processa nessa ponte do imponderável, é exatamente por essa razão, que a vida adquire mais importância e necessidade de sua proteção. A vida não cessa seu curso. Como o rio que segue seu leito, a vida segue sua trilha. A vida e o rio não param. Não podem parar.

O nefasto, é, o nefasto, como nefasto que era, o nefasto não sabia, porque nefasto, o significado da palavra empatia. Ao contrário! Era tão nefasto que na concretude de sua nefasta existência, o miasmático, pútrido e asqueroso, ele, insignificante em toda sua horrenda figura, não sabia o quanto as pessoas sofriam.

E então, como direis, ouvir estrelas, certo, vós direi, no entanto, que do riso se fez o pranto. Porque de lágrimas e saudades, mais que a dor da espera que não finda, a saudade é a flor no Jardim do Éden de cada um. É a possibilidade da chegada de alguém que partiu e retornou, como a ave que migra e retorna para o abrigo que protege. Assim é, como quem sabe, mesmo que distante, que a casa da partida, também é a da chegada. É a espera no porto, do navio que partiu e viajou e conheceu pessoas e lugares, mas sabe que nada se iguala ao porto seguro da casa amiga e protetora.

E o homem. O homem do suicídio, quer dizer, o que se disse do suicídio, conclusão do inquérito, da terceira versão. Oras, pois, quem saberá, como disse outrora o poeta, quem saberá que do outro lado do arco-íris, como uma surpresa, tal qual a inesperada visita que o falecido recebera poucos dias antes do suicídio, quer dizer, de acordo com o inquérito, terceira versão, pois que, da primeira, substituíram o delegado, o delegado que não aceitava a versão do suicídio, por isso, foi substituído, um fedelho, sim, colocaram um fedelho, um fedelho mais preocupado em sair nos jornais e revistas, um fedelho, incapaz, porque fedelho, de olhar às minúcias, sim, nas minúcias se escondem, como a chave do baú, do baú da infinitas possibilidades de se concluir um caso, um inquérito, fato é, que o fedelho não tinha escrúpulos; era um imbecil de toga.

Consumada a balbúrdia, sim, tanto quanto a anedota, a plebe, a urbe, a massa, a plebe sem rosto, amam a balbúrdia. A balbúrdia, essa indescritível amante dos dilacerados, a balbúrdia, como uma bailarina no salão da vida na cidade, a balbúrdia, por toda sua impenetrável indiscrição, consegue, como ao arlequim, encantar porque indiscreta. Tal qual a princesa no alpendre da varanda, a balbúrdia atrai a atenção da massa horrenda dos amantes da vida alheia. São como vespas ao redor da luz. Orbitam a vida alheia como o ladrão à joia na vitrine. Sem pudores, vivem de rumores, todavia, semelhante a toda gente que outrora gritava aos borbotões, com braços erguidos e vozes roucas de tanto berrar que queriam o fim da corrupção, aquela gente, como estas, não cansava de orbitar a vida alheia; urubus à espreitada carniça. Era o quadro horrendo do imponderável, pois, que, movida como que por um canto da sereia, aos milhares andavam, como zumbis, por ruas, avenidas e estradas, clamando por alguém, que supunham messias. Um bando de dilacerados perambulando às soltas. Um verdadeiro hospício coletivo. Triste quadro. Triste fim. Assim, porém, não sem espanto, àqueles dias transcorreram cheios de tensões e intenções dissonantes como se no futebol da vida, cada membro daquela opaca massa fosse, ela própria, individualmente, o desejo a ser realizado. Assim, tudo mudava ao fim e ao cabo e ao gosto de cada membro, perdido, diga-se, porque movido por vontade própria e sem qualquer possibilidade de conexão uns com os outros, fato é, ninguém sabia de quem partiam as mais absurdas orientações/ordens para a promoção do caos que se viu por toda parte.

E tudo em meio ao suicídio do homem, quer dizer, do que se disse, se concluiu do inquérito, terceira versão, por um fedelho, um fedelho mais preocupado em aparecer, um ser, como todo fedelho, abjeto, porque fedelho e sem escrúpulos, em conluio, em conluio, como numa gangue, onde todos se juntam para um fim comum, como uma matilha, sim uma matilha sedenta de sangue, o fedelho, em conluio como outro tão abjeto quanto o fedelho, ambos, como numa gangue, unidos por um mesmo propósito e resultado, sem escrúpulos, unidos, concluíram que fora suicídio, em contraste com o primeiro delegado, que não aceito essa versão e foi substituído, mas o fedelho, unido a outro, igualmente abjeto, como uma gangue, unidos para um mesmo resultado, um resultado pré-estabelecido, fosse qual fosse o resultado, quer dizer, a conclusão do inquérito, terceira versão, elaborado, em conluio, como uma gangue, uma matilha unida e sedenta de sangue, eles todos, unidos, como uma gangue.

Adeus aos amanhãs que cantam. Enigmático bilhete encontrado junto ao corpo. O que queria dizer, a quem ou a quê fazia referência? Era um desabafo, uma decepção? Enfim, a enigmática frase suscitava tantas conjecturas que qualquer possibilidade de interpretação colocava em xeque o que se apurava. Fato é, desde que se soube que junto ao corpo fora encontrado um artefato, um bilhete, surgiram as mais tresloucadas interpretações. Nada mais. Nada mais que sonhos. Sonhos impossíveis de realizar. A independência tão buscada e tão arredia, tão próxima, e tão longe, como a utopia.

Em defesa das causas perdidas, disse certa vez, com certo embargo na voz, que a utopia, arisca como a criança assustada, disse que a utopia era algo que nos fazia caminhar. Que se avançamos dez passos para tocá-la, ela avança outros dez para que caminhemos ao seu encontro e assim seguimos, nesse caminhar, porém, nunca a alcançaremos porque ir ao seu encontro é a razão da caminhada.

E já despida de toda vergonha, sim, àquela altura, a massa, cega e irracional, como o gado ao matadouro, a plebe seguia seu guia como se seguisse ao messias. De tudo que já se sabia sobre o charlatão, ninguém, sob risco de ser admoestado em público, ninguém era capaz de contradizer o que saia da boca do beócio. Ao contrário, às ordem do famigerado, sem contestação, sem qualquer possibilidade de rebeldia (mesmo porquê concordavam), todos respondiam com uma obediência bovina; e seguiam, silentes e firmes num propósito, em tudo, parecido a uma cega missão. Zumbis. Verdadeiros zumbis marchando a macabra marcha de quem traz a morte. Eles, famigerados e paquidérmicos, como a besta fera, sem nenhum sinal, tênue que fosse, de que agiam movidos por alguma Razão, ainda que ignorada, eles, robotizados, como autâmatos, seguiam ao beócio como quem seguisse ao messias.

O pobre homem. O homem que se suicidou, segundo o inquérito, terceira versão, elaborado por um fedelho embasbacado pelos holofotes, o pobre homem, sem que ninguém considerasse suas motivações (certamente havia alguma motivação), fato é, que o pobre homem, ainda insepulto, teve suas entranhas mexidas e remexidas por bisbilhoteiros e inescrupulosos e verdadeiros abutres. Nada se poupou. Tudo se disse. Tudo se noticiou em nome de uma imprensa, ela, igualmente abutre, que não respeitava o fato. O ato espetáculo! O ato da divulgação sem medida, da divulgação sem escrúpulo. O espetáculo. O horrendo espetáculo que exibe sem medida as fofocas, as mais vis fofocas, de que o homem tivera uma filha, porém, ocultaram que a menina e a mãe faleceram no parto.

Um dia como outro qualquer. Assim, sem preâmbulo, começava um romance encontrado junto ao pobre homem. Que ele era um leitor contumaz, era do conhecimento da vizinhança. Era comum vê-lo sentado à varanda da casa. Também era comum vê-lo receber o carteiro com entregas de livros e, às vezes, normalmente aos finais de semana, vê-lo sair rumo à cidade para ir a alguma livraria. Um dia como outro qualquer. Nada mais simples que um dia como outro qualquer, porém, àquela circunstância, aquele dia não se poderia chamar um dia como outro qualquer. A notícia do suicídio atingiu, como um hecatombe, como um meteoro, a pacata cidade. Era esperado que a tal notícia, em si, e por nada mais, um ato extremo, atingiria a todos e de maneiras variadas. Todavia, o ato noticiado, em si, e por nada mais, mexeu, e denunciou, até onde cada qual vai segundo seus princípios e métodos. O fato dominou por muito tempo, e sem modéstia, o dia a dia da população. Também serviu para enunciar o íntimo de cada qual. O modo com o qual, cada cidadão, cada autoridade, cada membro da imprensa, enfim, o suicídio, mais de que anunciar e enunciar uma fato, triste fato, serviu para escancarar o caráter do ser humano. É nessas horas que as máscaras caem. É nessas horas, como quem quebra o espelho, se mostra como realmente é.

O pobre homem suicidou-se, assim concluiu o inquérito, terceira versão, terceira versão conduzida por um fedelho e espinhento paquidérmico, assessorado por outro, igualmente paquidérmico, e torpe de beca. O pobre homem suicidou-se. Sua casa hoje é frequentada por pessoas das mais variadas origens e idades, pois sua morada, transformada em livraria, ficou como símbolo de resistência a um tempo que livros eram queimados, leitores encarcerados. O pobre homem, de certa forma, ainda vive. O fedelho e o torpe de beca, ambos, como chorume que sai do esgoto, foram esquecidos.