De cada conto, se aumenta um ponto
Eis que não lhe ocorreu saber do ocorrido. Preferiu esperar as notícias em casa e sem alarde. Era um homem sereno, fala mansa e andar de passos calculados. Não era afeito às extravagâncias. Bem o contrário. Era em tudo sereno. Por seu modo de ser e viver, havia na redondeza certa expectativa de como reagiria. Alguns, sempre há alguns, apostavam, sim, apostavam, literalmente, quantias que superavam a casa da centena, de que o homem, tão logo soubesse do ocorrido, entraria em pânico ou, apostavam outros, entraria num surto psicótico incontrolável e de consequências trágicas. Havia outros, mais afoitos em prognosticar, sem modos e meios, que o homem não suportaria, que sucumbiria no primeiro instante. De toda sorte, ou para deleite dos bisbilhoteiros, de tudo se falou. De tudo se cogitou e conjecturou. Impressiona a capacidade humana em elaborar histórias, cujos enredos ignoram mínimo de plausibilidade e verossimilhança. Tudo flui como água por entre os dedos. Nada se solidifica, ao contrário, tudo se desfaz como um castelo de areia.
Todavia, até aquele instante, sem alarde e sem exageros, o que se sabia era que o homem resolveu esperar, calmo e sereno, sem alarde, resolveu esperar.
Era noite, tarde da noite, a lua se firmara havia algumas horas. As corujas atentas a qualquer movimento, não desprendiam seus olhos das tocas dos coelhos ali perto. Noite intensa. Luz alta despontando atrás da colina, névoa fina, ruelas desertas, casas fechadas. Nas alcovas, apenas suspiros e promessas quase infantis, nada além de promessas corriqueiras feitas nesses momentos, promessas vãs, só promessas. Dois corpos, duas vontades que se encerram num frenesi descontrolado. Noite intensa. Saberes compartilhados com estranhos nos botecos e becos da vida. Filósofos de ocasião - personagens necessários quando a vida se dilui, tanto quanto, como num passes de mágicas, as convivências se intoxicam de tantas certezas e nada mais tem sentido. Tudo se perde, se dilui. A casca de banana jogada com desleixo, apenas uma casca de banana, tal qual um meteoro, podem transformar uma vida. E tudo, tudo, como um facho de luz que se apaga, ou de uma vela que o guia deixa cair na poça d'água, tudo se esgota tão logo se consuma o acontecido. E o que era presente, vivo, torna-se memória e saudade.
Homens de um tempo passado, eis, eles, nos botecos e becos da vida, que buscam desvendar segredos no entroncamento de ideias e ideais, cujas possibilidades, - como um rio que avança sem se preocupar com as águas que molham jardins alheios - perscrutam o íntimo para dali saber o qão pequeno é o universo. Para saber, e descobrir, logo em seguida, que numa casca de nozes, tanto quanto num grão de areia, há mais do universo do que as estrelas podem indicar.
Filósofos eventuais, filósofos que desconhecem as razões supremas do devir, mas que, por serem eventuais, detém certo Saber que só a vivência pode oferecer. Andarilhos, bêbados, boêmios ou, apenas, gatunos, cada qual, a seu modo e tempo e oportunidade, sem os modos ensaiados dos acadêmicos, esses, ao contrário, nús das mais singelas encenações, esses, como quem sabe o valor do tempo, não se esmeram nos discursos, são práticos e diretos; não habitam a gaiola de ouro.
Em descompasso com o que se tem como o mais certo com que há por vir, aquela noite, em tudo, a começar pela intensidade com que as corujas olhavam as tocas dos coelhos, aquela noite era uma noite para não mais esquecer.
Julia, filha mais velha, de uma prole de cinco, desde pequena, ao contrário dos irmãos, e sem saber exatamente por quê, desde pequena tinha por hábito fazer perguntas. Nada, absolutamente nada, passa em branco. Assim a menina cresceu. Em meios aos livros e mapas, Júlia costumava dizer que assim que pudesse iria para a faculdade. Estar naquele ambiente de saberes, de conhecimento, dizia, era a coisa mais importante que uma pessoa poderia querer.
-A professora não veio hoje, mãe, disse Paulinho, assim que sua mãe abriu as portas e o menino entrou no carro, que estava com o motor ligado. Estranho, continuou, assim que a mãe deu a partida e o carro começou a andar. Estranho, muito estranho.
- Estranho, o quê, Paulinho?
- Ah, sei lá. Ontem a professora não estava com uma cara muita boa. Parecia preocupada
- Ah, meu filho, todo mundo tem suas preocupações...
- Eu sei, mãe. Mas, ontem, tinha algo de estranho...
O dia era outro. Assim começa a história com a qual, a, ainda pequena Julia, está de posse. A primeira frase, simples e apenas sinal de que era outro dia, despertou em Julia certa inquietação. Claro que ela não saberia explicar, porém, como era seu costume, em silêncio e só, Júlia avança em encontro á entrada da caverna. É ali que Júlia gosta de ficar. Numa caverna, só ela e seus pensamentos, somente ela absorta em suas conjecturas, em suas questões, nada mais. Júlia era assim: Quieta e inclinada ao mergulho em si, como o Pensador, que Rodam, magistralmente, somente ele, Rodam foi capaz de colocar na escultura a introspecção como elemento essencial de se mergulhar em si. Também Michelangelo e seu Moisés. Ah, quanta sabedoria existe nua escultura. E Júlia, tal qual O Pensador, naquela caverna, somente ela, em mergulho consigo mesma, sem interferência, sem interlocutor, somente ela, em si, seria capaz, tal qual O Pensador, poderia, naquela caverna, introjetar-se para si. Assim, sem medida, naquele dia, novo dia, um outro dia, fizeram com que Júlia, na caverna, fizeram Júlia, em silêncio, e só, lançar-se para si como o alpinista se lança ao desconhecido quando se aventura a desbravar a montanha. E Júlia, assim fez. Na caverna, escura e úmida, Júlia relê a frase O dia era outro, e tudo segue, sem pausa.
Alguém sabe do homem? Todos naquele bar, boêmios, bêbados e filósofos eventuais, e um ou outro cidadão sem muita familiaridade com o ambiente, todos se viram defronte ao grandalhão. O grandalhão era o delegado. Homem de muita massa e pouco cérebro. Chegou ao posto de delegado por uma fatalidade. Sem concurso e sem aptidão alguma para o cargo, o que se sabe é que o grandalhão estava no posto pela infeliz fatalidade de que o delegado titular havia falecido. Ninguém quis assumir o cargo. É ai que aparece o grandalhão. Estava na cidade havia uns três anos. Nunca havia feito nada que o desabonasse, ao contrário, era querido e respeitado, afinal, um homem de 1,90 e muita, muita massa muscular, nem precisa de muito esforço para ser temido. Assim, o grandalhão se tornou delegado.
Alguém sabe do homem? Tornou a perguntar. Silêncio. Ninguém sabia do homem. O homem, calmo e sereno, de passos calculados, sem pressa em querer saber do ocorrido, o homem, como uma névoa, fina névoa, desapareceu. Nunca mais viraram o homem.
Júlia casou. Teve uma menina, tanto quanto ela, curiosa e perguntadeira. A caverna. A caverna outrora refúgio e testemunha de Júlia, a caverna tornou uma atração turística. Tão logo a imprensa local noticiou que nas paredes da caverna luzes projetam imagens de homens presos por correntes, tão logo, isso saiu, a caverna se tornou polo turístico. A quem diga, sem provas, claro, que os homens projetados na caverna, nada mais são que nossas construções mentais. Outros, mais efusivos, dize, sem provas claro, que as imagens dos homens, não são imagens, são manifestações do demo e que o local, casa do demo, deveria ser implodido. Tanto uns, quantos outros, constroem suas explicações. A cidade vai bem, Júlia, vai bem. O turismo vai tão bem que fala-se em construir uma universidade para impulsionar mais a região. O Homem, calmo e sereno? Ninguém nem lembra.