O RALPH ESTÁ DIFERENTE…”

 

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Lembra de quando você era jovem? Você brilhava como o sol…”

 

Antes do acidente, que aconteceu há três anos… Ralph e eu andávamos longe de desejar qualquer compromisso que fosse sério demais. Nos encontrávamos após o trabalho, mas ainda morávamos com nossos pais. Quase sempre dávamos um “jeito” de dormir juntos, várias noites seguidas; alguma desculpa, aquela coisa meio “vigiada” (principalmente por parte de meus pais) no final das contas aquela brincadeira deixava tudo mais leve e gostoso, sem preocupações… Não tínhamos pressa alguma. Portas de quartos quase sempre abertas… coisa de namoradinhos. Estávamos nos divertindo demais com isso, por mais forçado que parecesse. Mas, logo acabou. O acidente aconteceu e… O carro, aconteceu. A viagem aconteceu. Rapidamente senti que precisávamos ficar sempre juntos, de verdade. Senti que ele precisava de mim e todos concordaram comigo, até mesmo o Ralph. Pensavam… E realmente parecia, que Ralph… meio que “quebraria” sem mim. Estávamos no carro, Ralph, eu, e meus sogros. Conversávamos pouco apesar de muito animados. Eu estava desconfortável, mas sem poder disfarçar a alegria. O tempo inteiro Ralph dava um jeito de me olhar… segurava minha mão, me fazia carinhos sutis. Era nosso primeiro passeio em família e “EU SEI DE UM ATALHO!!!”. Essa frase… me persegue até hoje… talvez ela tenha sido a segunda ou terceira frase dita pelo meu sogro, que era diretamente e exclusivamente pra MIM desde o início do namoro, e também foi a última. “EU SEI DE UM ATALHO!!!” ele disse me olhando pelo retrovisor com um riso satisfeito no rosto. Eu era “a grande novidade” pra todos. A garota da cidade grande deslumbrada com a paisagem… E pra mim também tudo era novo, e incrível. Aquela viagem à fazenda parecia abrir as portas para um relacionamento que – aparentemente – só me traria coisas boas. “EU SEI DE UM ATALHO!!!”, “É só a gente virar aqu…” houve um clarão. O que veio depois só recordo por flashes confusos que considero que foram meticulosamente “fragmentados” por minha memória, através de mecanismos de defesa. Não me lembro dos corpos deles… Sei que obviamente havia MUITO SANGUE por todos os lados, mas… simplesmente sou incapaz de me lembrar. Eu estava caída no asfalto, braço quebrado, perna quebrada e muitos cortes por todos os cantos do corpo… qualquer movimento que tentava fazer, resultava numa dor excruciante… Senti um zumbido forte no ar, que cobria qualquer barulho; como uma televisão quebrada em meus ouvidos. “soc… socorro…!!”. Tentei gritar, mas sussurrei. Estava trêmula de fraqueza e rouca… nem eu mesma podia escutar minha voz. “EU SEI DE UM ATALHO!!!” a frase se repetia em minha cabeça… “EU SEI DE UM ATALHO!!!”… “Socorro… socorro… soc…orro…”,“EU SEI DE UM ATALHO!!! HAHAHA”, agora a voz parecia borrada, maléfica, um gutural que me perseguia gargalhando enquanto eu tentava me arrastar e sair da estrada. Houve então, mais um outro clarão… Apertei os olhos com força… Acredito que desmaiei por um tempo. Uma voz tentava me encontrar. De início, parecia vir de muito longe, quase como um sonho, e eu mal conseguia compreendê-la. Depois foi ficando perto… “EU SEI DE UM ATALHO!!!”, “Cecília ME OUÇA, veja!!! EU SEI DE UM ATALHO!!! Ceciliaaa! VOCÊ PRECISA ME OUVIR!! UM ATALHO QUERIDO PARA TODOS NÓS, UM ATALHOOO!!!”. NÃO!!!! Não era isso! Eu precisava focar… “Cêce…Cêce…não durma…”. A voz de Ralph ficava cada vez mais próxima… abri os olhos… Ele vinha andando até mim… e estava intacto. Se agachou ao meu lado, e sorria. Não com graça mas com serenidade… Algo revirava meu estômago dizendo que aquele sorriso, aquela calma… era absurda. Achei seus olhos estranhos… diferentes… Perdidos. Nunca mais deixei de achá-los distantes e perdidos. Diferentes do que foram. Uma face vaga… aérea. “EU SEI DE UM ATALHO!!!”… semblante calmo demais… “Cêce… Cecilia…”… calmos demais (pra ser verdade). Sorriu outra vez. “Por favor, pare… pare… pare de sorrir…”. Sussurrei outra vez. “Fique calma Cêce… vai ficar tudo bem…”.

 

Houve então um novo clarão…

 

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Agora há um olhar em seus olhos / como buracos negros no céu…”

 

(7 dias depois)

 

Ao fim da Missa do 7o Dia de meus sogros…Marcelo, um grande amigo de infância de Ralph se aproximou de mim. Estava sem jeito e nitidamente preocupado.

 

– Cêce! – Me abraçou com força e choramos juntos um pouco…

– como está o nosso campeão de xadrez?

– Er… Parece mais forte do que imaginei… Ele está… Sei lá… Está sereno.

– APÁTICO, você quer dizer… – Ele completou.

– Você também notou, né…?

– Sim, sim. Tem muita gente notando… Ele nem chorou. No enterro ele não chorou… e… hoje também não. Mas… não é exatamente uma OBRIGAÇÃO né.

– O QUE EU FAÇO??! – Comecei a chorar outra vez.

– Vamos ter paciência com ele… cada um enfrenta de seu jeito. Me mantenha informado; se precisarem de mim é só me chamar.

 

Marcelo me deu um longo abraço e foi embora.

 

Mais tarde entramos em casa… Ralph pegou um copo d’água e se sentou na varanda. Tinha um olhar infantil… como criança sendo apresentada ao refrigerante pela primeira vez. Mas era só água e nem estava gelada. Ele já vinha recusando bebidas alcoólicas desde o acidente. Comia pouco também. Encarava as estrelas e a vista pro mar e depois encarava a água outra vez e então a bebia em goles curtíssimos e nitidamente prazerosos, mais um e mais copo d’água. Me sentei ao seu lado.

 

– Oi “Marido”… hehe…

– Oi “Esposa”…hahaha.

– Como você tá segurando?

 

Ele continuou encarando as estrelas sem me responder… Depois me olhou nos olhos.

 

– Cêce…Posso te perguntar uma coisa?

– Sim, amor… sempre… o que quiser.

– Se eu precisasse embarcar numa viagem até a lua… Você… me consideraria “morto”?

– Não. De jeito nenhum…!

– Então… É assim. O que chamamos de “morte” é assim. Corpos que mudam de espaço e frequência. Ate mesmo o ar… fica diferente. Perdemos o “fácil acesso” a eles, mas… Estão lá. A possibilidade de nos encontrarmos é real, é quase certeira…

 

Fiquei parada olhando pra ele. Pasma… Não sabia o que dizer a partir daquilo. Ele não parecia exatamente em negação ou com raiva do que aconteceu… Havia sim, alguma tristeza em seu jeito. Mas… principalmente… o que pude ver em seus olhos era pura… “curiosidade científica”. Ralph tinha acabado de perder os pais numa tragédia terrível e o que ele mais demonstrava – desde o enterro – era intriga. De fato não parecia compreender a forma com que todos estavam encarando a situação. Senti vontade de confrontá-lo. Me senti frustrada e com raiva (meio inútil, na verdade). “O que está acontecendo?!”, “O que ele tá fazendo?! Simplesmente NÃO LIGA pros pais que morreram? Não se importa??? Ele… não os amava?”… “E se EU que tivesse morrido? Ele ficaria parado numa varanda encarando o nada e estudando a situação?!”.

 

– Você… você não está triste, Ralph? – Ralph pode sentir algum julgamento e frustração em minha voz…

– Er… sim, SIM! Estou… Muito, na verdade! Não foi o que quis dizer, amor… me desculpa.

– Marcelo ficou preocupado com você, e eu também… sabe? Se quiser a gente pode procurar uma ajuda. Se você achar que precisa…

– Ah, Marcelo sim, sim, Marcelo… Vi ele lá… sim… Parece ser um bom amigo.

– “PARECE??!” O Marcelo “PARECE SER” um bom amigo, RALPH??! – Questionei enfurecida e me levantantei. Como se tivesse sido tirado dum transe, Ralph me olhou sem jeito. Pegou minha mão e me encarou nos olhos.

– Desculpa Cêce… só estou cansado. Exausto pra falar a verdade… É como se tivesse feito uma viagem, entende? Uma viagem distante até demais. E tudo de repente ficou estranho. É isso… Perdoe minha maneira de falar “Esposa”. Então, me abraçou e pôs-se a me encarar quase sem piscar… Logo pareceu estranho outra vez.

– Sua beleza é realmente impressionante. A forma com que você lida com tudo. Seu jeito de falar, de sentir, sua voz e a forma com que ela se cria… Ela brotando de você… Você é muito, muito bonita, muito especial…Er… Pra mim. – Sorri e nos beijamos. Ralph me olhava como se tivesse me conhecido há poucos dias e estivesse apaixonado e deslumbrado por mim. Mais do que isso, me olhava com fascínio. Fomos pro quarto, fizemos amor e foi incrível. As três da manhã acordei e fui beber água. Lá estava Ralph outra vez… sentado na varanda fazendo exatamente o mesmo que fazia mais cedo. Encarando o mundão lá fora… Completamente absorto… Enquanto segurava um copo d’água, quase transbordando, como se fosse o vinho mais caro do mundo… a bebida mais deliciosa do planeta.

 

******

 

Você tentou descobrir o segredo cedo demais / Você suplicou para a lua…”

 

Dias depois estávamos entrando no elevador e um homem apareceu com um Pastor Alemão. O cachorro estava amordaçado, mas mesmo assim, ficou enlouquecido quando viu Ralph. O homem ficou nos encarando com raiva, mas sorrindo com desdem. Era daqueles Playboys de academia… muito forte e nada na cabeça. Já deveria ter uns 28 anos, mas se vestia e agia como se tivesse dezesseis. Ralph parecia não compreender o jeito provocativo do homem.

 

– Vou tirar essa mordaça, que aqui só tem homem brabo!! Hahaha…!! Hehehe ele só pega gente ruim, viu? – Era quase meio dia, mas o homem fedia a bebida.

– Amigo, por favor… meu marido acabou de perder os pais, DÁ PRA VOCÊ PARAR?!

– XIIIII… Então a mulher fala pelo casal, hãn…? Coisa de homem FROUXO!!! – O falava tão perto que quase podia cuspir no rosto de Ralph. E dito isto Ralph saiu daquele seu estado “natural” de contemplação. Se abaixou em frente ao enorme cachorro e encarou o animal nos olhos, dizendo: – Eu devo ter um cheiro diferente… né meu amigo? Não lhe farei mal nenhum. – E sorriu. O cachorro parou de latir imediatamente e ficou deitado. O elevador já estava chegando no hall de saída.

– O que você fez com ele? – O homem perguntou indignado, pois o cachorro mal se mexia.

– EI, PARE DE ME IGNORAR! O QUE VOCÊ FEZ COM MEU CACHORRO???!! – Ralph continuava olhando pra frente. Ele não parecia querer provocar… o que parecia é que “processava” apenas, conversas que fossem BOAS para ele. Íamos saindo do elevador e o homem começou a gritar: “EI, SEU RETARDADO O QUE VOCÊ FEZ COM MEU CACHORRO, ELE AGORA TÁ QUERENDO DORMIR!!!

 

– Ele me contou que estava muito cansado… – Disse Ralph.

– TE CONTOU O QUÊ?!! TÁ ME CHAMANDO DE IDIOTA, CARA???

– Ele não gosta que você use ele pra amedrontar pessoas. Mas. Ele te ama muito… Diz que em casa você muito bom com ele.

 

Ralph mal tinha terminado essa frase quando tomou o primeiro soco do homem… Os outros todos vieram imediatamente, em seguida e antes que qualquer pessoa pudesse chegar perto para apartar. Ralph não reagiu… tomou todos os murros sem ao menos tentar proteger o rosto. Tinha um olhar sereno, direcionado constantemente pro homem. Quando finalmente o seguraram… Ralph se levantou do chão, olhou pro cachorro e sorriu. Peguei-o pelo braço e fui conduzindo-o até a entrada do prédio.

 

– Mas que DROGA, RALPH!!!?? O QUE FOI AQUILO?!

– Você queria que eu reagisse… Entendo. É um comportamento humano.

– “UM COMPORTAMENTO HUMANO?!” Eu não acho que você tinha que BRIGAR com ele!! Mas acho que você deveria ter ao menos se defendido!!

– Entendi… Preciso pensar um pouco…

– Pensar no quê?!

– Se aquele homem será ou não… um motivo de “defesa”. De minha parte.

 

Bem, você esgotou suas boas-vindas com pressão aleatória / viajou na brisa do aço… / vamos, seu sonhador, seu visionário… / vamos, seu pintor, seu flautista, seu prisioneiro, e brilhe!”

 

(Continua no próximo capitulo)

 

 

 

 

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 13/12/2022
Código do texto: T7670670
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