Enraivecendo
Carminha chegou em casa fula da vida. Já era quase uma hora da madrugada. O marido só aparentava calma. Carminha sentira-se mal, era mais que as cólicas que a atormentavam todo mês. Parecia estômago, intestino e mais a sua natureza de mulher. Chegou ao hospital, pago a custo com o plano de saúde que lhe levava um bom pedaço de seu modesto orçamento. Mas ainda era jovem e dava pra pagar o plano. Aguentaria no futuro? Os planos dos velhos são mais caros. Pensava nisso e na triagem no hospital. A enfermeira quase nem olhou pra ela, mediu a pressão e indicou a fila. O médico chamaria... Chamaria? Que raiva. Passou uma hora e nada... E olha que um jovem, um cavalão, aparentando muita saúde, chegou depois e foi atendido. Infarto? Impossível. Que raiva, haveria de reclamar, procurar a ouvidoria, alguém tinha que pagar... Curioso que em casa, agora, parecia sentir só raiva, a doença parecia ter sumido. Comera algo errado? Mas a raiva. O destrato. Isso teria um custo. O marido, na fleuma de sempre, já tinha ligado a televisão, só pra dormir. Reclamaria agora? Iria para o site e diria poucas e boas para aquela gente desaforada... E olha que não foi só uma hora. Passou a segunda hora. Nada de chamarem. Um outro paciente, não muito mais velho que o primeiro, também parecia vender saúde, e foi atendido, e saiu com a receita. Carminha gritou do seu canto que era uma vergonha esperar tanto. Talvez por isso a levaram para a terceira hora de espera, o que não se completou, pois ela gritou que não voltaria mais lá e saiu uma fera, já não se lembrando por que estava no hospital. Desaforo! Ah! Não ficaria assim não... E o marido que dormia e não se solidarizava com sua raiva de mulher trabalhadora, que estava doente. Estaria? Pagariam por tudo. A reclamação estava pronta na sua cabeça. Iria aos órgãos do consumidor, iria à imprensa, aquele hospital tinha de morrer de ócio. Pouca vergonha. Amanhã veriam. Dormiu doente de raiva. De manhã cedo foi acordada por Carmem Maria, a linda filha de cinco anos, que lhe deu um sorriso inocente e um bom-dia, mamãe. Carminha abraçou e beijou a filha. Um presente dos céus. Se esqueceu que esteve doente. Lembrou-se da véspera, pensou que talvez tivessem uma razão. Desenraiveceu e seguiu a vida.