“Ele faz uso de medicina. E a medicina lhe trará… Muito mais outros médicos… E muito mais medicinas. Médicos caem dos compartimentos no teto dos hospitais, saídas de incêndios de edifícios. Constantemente eles caem em filas de atendimento… eles brotam do chão. Robôs prontinhos segurando diplomas nas mãos (às vezes caixas de maquiagem também). Ainda em sonho, ele encontra dois grandes amigos (de dois polos diferentes na linha da vida) Contam pra ele o quanto ele era importante pra eles. E que ele continuasse escrevendo e não pensasse em parar… ‘Mal sabem que penso em parar com frequência demais… Não acredito quando curam o homem… deve ser por isso que não sinto medo de nada também, enfim… Sonhar com histórias prontas…Talvez seja como quando um carpinteiro desperta feliz se lembrando perfeitamente de uma peça que acabou de sonhar e de como ela ficará linda’.”

 

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Ela tinha mechas brancas chamadas “precoces” por alguns que tiveram coragem demais pra dizer em voz alta. Ana Paula dizia que cada uma delas pertenceu a um morto… Pertenceu a algum susto. E que agora os sustos tinham passado. Na adolescência já os chamava de “Demônios nos concretos”. Hoje ela Ana Paula pensa que são apenas espíritos e prefere ignorá-los. Ana Paula não gosta deles e não tenta interagir. Se dependesse de sua própria vontade, não os via nunca mais… Ana Paula era jovem e já levava consigo uma fama de “bruxa velha”; era comunicativa demais para viver isolada num lugar alto na floresta, amava o prateamento da cidade grande… Tinha uma personalidade tão forte que jamais permitira que os espíritos tirassem sua vida social.

Era um sábado de noite quando subia a ladeira, em cima dela caía muita chuva naquele momento, mas durante a manhã fizera um sol castigador. Trabalhava como secretária executiva e distraidamente foi abrir uma gaveta, procurando grampos, e viu dois olhos se mexendo lá dentro. Junto com eles, dedos tentaram arranhá-la nas mãos. Puxou os dois braços pra trás num susto indisfarçável. No próximo segundo, se recompôs e olhou calmamente a gaveta por dentro, viu que se tratava de mais uma “daquelas coisas que ninguém vê” eram como baratas. Mas sem cabeça. Tentou disfarçar mas todos os colegas de setor, já estavam atentos, olhando com imensa apreensão. “O QUE VOCÊ VIU?!”, suplicou uma colega que se chamava “amiga”. Ana Paula interpretava aquilo como pura curiosidade maliciosa. Respondeu com sarcasmo: “Era o meu PRIMEIRO NAMORADO, acredita? Queria dar uma olhadinha em minhas meninas aqui…”, concluiu apontando os dedos pros próprios seios enquanto se levantava…

Todas as mulheres e um cara… o famoso “cara do TI” caíram em gargalhadas. Ela ganhou o corredor e deu um longo suspiro. “Pff… Jesus Cristo, bando de idiotas!”, pensou. Aproveitou que não tinha ninguém por perto e deu outros suspiros bem longos a mais. “O que eu vou precisar pra dormir hoje, depois dessa…? Ansiolítico? Tenho. Remédio pra dor? Humm… talvez.”… “Ah, se houvesse uma pilula, pra… não ver… Ainda não sei, não existem. Não sei, eu não sei…”. Queria muito fazer xixi, mas aquelas visões pareciam afetá-las durante esse tipo específico de sufoco. Numa rua lotada, shopping ou boteco? Tudo bem. Sozinha num cubículo aquilo se tornava complicado. A falta do sentido de segurança se ampliava em dezenas de aspectos. De qualquer forma não podia mais segurar, então era melhor se manter num lugar seguro. Escolheu o primeiro andar de seu próprio cafofo. Abriu a privada e imediatamente deu de cara com uma cabeça humana, que parecia sorrir para ela. Ana Paula lidava com isso há tempo suficiente pra nunca gritar ou sair correndo. Segurou a bolsa contra o peito e se jogou para trás esbarrando na porta trancada. Seus olhos arregalados encaravam a cabeça, que a olhava de volta com olhos piscando, assustados. Era exatamente o resultado de uma cabeça humana, um homem na faixa dos quarenta… caso fosse colocada dentro d´água sem produto algum. Totalmente pode. Talvez a causa da morte fosse o que o deixasse naquele ‘sorriso constante’. Um corte profundo (seguido por outros cortes menores, mas com a mesma profundeza) que atravessava toda cabeça. Isso fazia com que seus lábios fossem “puxados” pra cima e daí então o sorriso sem fim. Ana Paula apertou os olhos. Ela nunca rezava… Jamais pedia ajuda…Tentava focar em mecanismos mais científicos (e muito na “força” de sua própria negação) apenas contava de 1 a 50 e abria os olhos. Várias vezes… o quanto fosse necessário. Se os abrisse e a cabeça ainda estivesse lá, contava outra vez. Noutras situações conseguia até mesmo dar as costas e ir embora, mas realmente PRECISAVA DEMAIS pra conseguir urinar. Abriu os olhos e não havia mais nada. Tudo estava até bem decente prum banheiro público. Ana Paula sorriu, a testa inteira suada enquanto se sentava apressada e o barulho do jato podia ser escutado até por quem passasse no corredor. Muito mais alto do que os soluços assustados de antes…

 

“Ele faz uso da medicina. E de todas as práticas possíveis… Presentes. De repente ele faz parte de um grupo. Dentro do grupo você é ‘grande coisa’. As portas das ONG’S e seitas e clubes se fecham… e quando ele vira a esquina: É o mesmo Zé ou Maria Ninguém da outra vez. Olha em volta… Sim. Ele faz uso da medicina e enfermeiros e médicos brotam de buracos no chão, do teto e da parede. É melhor se deitar, Grande Herói das causas gerais. Farmacologia, psicologia, livros holísticos, massagens, aspirina. Você e sua medicina. Diretor de assembleias vazias… Uma parede inteirinha onde existem vários azulejos lustrados, mas somente UM canto… atrás do portão… está tão sujo…! Coberto de insetos e teias…!”

 

Ana Paula saiu apressada do edifício empresarial onde trabalhava, e de repente a luz do sol parecia ser bem mais incômoda do que todas as outras coisas nojentas que só ela via. Eram pedaços de pés misturados a cabelos que brotavam dos adereços das pessoas que pediam passagem na rua; muitas vezes aqueles “pedaços de espírito” jorravam como vomito em cascata das escadas dos ônibus… ou simplesmente sentavam-se ao seu lado, parecendo tentar conversar.

A única tática de Ana Paula era exatamente a tática de NÃO CONVERSAR sob qualquer circunstância… Não responder, nunca. Não agir como se estivessem mesmo, presentes. Pois não estavam, estavam mortos… Ela sabia disso desde os quatorze anos de idade, quando um grande amigo da escola disse pra ela: “Eu sei que são verdadeiros e sei que VOCÊ pode ver… Mas, ninguém mais pode! E você não quer ser diferente…Quer?!” ele dizia isso com a propriedade dos seres que desde cedo já se sentiam diferentes. E quando você é diferente: Você não deseja simplesmente se tornar como os outros. Pois – muitas vezes – o diferente se sente MELHOR do que os outros. Então o diferente deseja que o mundo fique do jeito dele… ou que mundo pare de existir. Ana Paula foi desacelerando os passos que estavam ligeiros, quase fugitivos e desnecessários para pensar em seu amigo…Seu amigo que não sobreviveu aos próprios conselhos, não viu o mundo… Não era o momento ideal pra se olhar em volta e refletir sobre como Ana Paula achava grande parte do mundo… Linda demais. Então ela nem tentou. Mas no fundo sabia que tinha algo de bom naquilo tudo; sua tática experiente (e acumulada) de NEGAÇÃO CONSTANTE lhe propiciou um sinal verde diante dos hospícios da cidade, mas lhe dava também a força necessária para manter uma fachada de quem quer demais curtir a vida e o mundo. Com o máximo que pudesse pagar. Mas… Agora ela via pedaços de gente morta brotando das coisas e das pessoas. “Nossa, se eu tivesse com um HOMEM agora?! Imagina só…”. Talvez esse fosse o seu maior medo. Os dois num quarto luxuoso (ou num quarto fodido) e pedaços de avôs e avós caindo de cima dele como coberturas de bolo… Parentes tentando agarrá-la com as mãos debaixo da cama. Pés gangrenados nos interruptores. Figados e rins nas maçanetas do frigobar. Ter que disfarçar o medo… Sempre. Aquilo não era exatamente medo… Era? Ana Paula não sabia mais. Seu dom já fazia parte de sua vida há muito tempo.

 

Seis dias depois…

 

Uma manhã depois de dias horríveis continua sendo uma manhã péssima, só que com algum nível maior de perspectiva sobre o mundo inteiro. Ana Paula nunca estava feliz, perseguida por monstros que não a amedrontavam a ponto de perder completamente a lucidez e sua vida parar, mas estavam sempre com ela. Faziam sua barriga doer um pouco. Faziam ela comer besteiras e adquirir um humor de um clown que no fundo só queria morrer e ser esquecido pelo público. Mas se arrumava, limpava a casa, passava maquiagem, tomava banho, lavava pratos e dava conta de todas as fofocas do escritório de um modo não “exemplar”, mas neutro e adequado. Os minutos que levava sentada na cama, assim que acordava, mesmo sem pedaços de gente morta passando em sua frente, eram sempre os piores. Pois se tratavam muito mais “do que esperar de um dia inteiro”. “Talvez eu devesse comprar um cachorrinho… Para vê-lo brincando com uma aranha com perninhas de dedos indicadores, qualquer hora do dia…”. Esse era o seu humor, isso a fazia sorrir, quase rir… Seus mortos eram como uma família disfuncional e tóxica deixando mensagens de “bom dia” ou simplesmente existindo e sendo “inevitáveis”. Se levantou…

Ligou o chuveiro e a ducha de sangue desceu. Não parecia um sangue “limpo”, se é que isso existe… Era um sangue doente e fedorento. Eram raras as visões olfativas… “a coisa tá feia”, pensou. O sangue jorrava, ela nua segurando o sabonete, suspirou. A falta de reação de Ana Paula diante dos demônios nos concretos não indicava melhora ou resignação. Aquilo era o fundo do poço… Não ligar. Não esboçar reações. Mal se mexer. Apenas soltar um muxoxo e aguardar o sangue se tornar água outra vez… e virou. Entrou e a água desceu transparente e bem quente e ela deixou que aquilo massageasse seu pescoço. “Ah… Isso é legal…”. Quando ouviu uma voz.

– Er… Oi? Desculpa. – Ana Paula deu um pulo e afastou as cortinas do box.

– O QUE É ISSO AGORA??

– Er… Desculpa, eu também não queria estar aqui, acho que tinha de estar… Sei lá, no cemitério talvez?

Ana Paula ficou encarando aquela cabeça que saía de dentro da privada. Não era como antes, principalmente no sentido olfativo e nem no quesito “interação”. Era um homem… Meio suado no cabelo, mas sua face não tinha nenhum sinal de apodrecida e recém-enterrada. Era só… Um cara saindo da privada… e nem feio ele era.

 

– Você sabe que está morto não sabe?

– Sei… Eu morri nesse prédio, ontem…! Olha, desculpa, eu realmente GOSTARIA de sair daqui.

– Eu não posso ajudar! – Ana Paula passou a mão que o atravessou como se nada existisse, querendo fazê-lo entender que ele era um espírito e ela, uma pessoa não muito normal. Mas, normal.

– EU SEI que morri. Eu me suicidei ontem… em casa. Eu estava sozinho.

– Olha… eu não posso lidar com ISSO agora, eu tenho que trabalhar!

 

Ana Paula saiu pingando pela casa se enxugando as pressas ao som de sonoros “Ei!”, “Volta aqui, por favor!!”, “Não me deixa aqui sozinho!!”, “Moçaaa!!” e se vestiu na velocidade da luz. Algumas horas depois já estava no trabalho tentando disfarçar a noite ruim e o despertar ainda pior. Parecia de ressaca e era segunda, então… quase todos estavam.

 

– Noite longa? – Perguntou a amiga…

– Vida longa… – Ana Paula respondeu, distraída.

 

A mulher fez um olhar meio impressionado e se virou para a outra colega, em outra mesa. Quase sorriam. As fofoqueiras gostaram daquela nova Ana Paula, quase dizendo o que sentia de verdade. Mas achavam que a conversa, em breve se seguiria com namorados, parentes insanos e contas sem pagar. Ou no máximo que ela falaria um puco sobre mediunidade, mas daquele jeitinho especial de escritores de autoajuda. Se ela abrisse a boca e contasse sua vida, como realmente era… Soaria como um deboche incrivelmente maldoso ou como uma pessoa que realmente precisava de um psiquiatra ou um exorcista. Ninguém estava preparado pra ela.

 

“Ele faz uso de arquivos em PDF… Terapias de vidas passadas e útero. Coisas que justificassem o sentimento de se sentir sempre mal. Filmes da Sandra Bullock, ondas sonoras de dez horas de duração com baixa frequência de Hertz para parar de pensar demais… Ele faz uso de notícias de gente que teve muita má sorte e desgraças na vida e seus discursos de superação. Folha de Louro, Espadas de Ogum, erva-cidreira, incensos diversos… coisas que são de... acender...”.

 

De qualquer forma o conto de Ana Paula se encerra – sem encerrar – aqui… Onde espíritos que são demônios, que são membros de partes indefinidas e que afinal sempre serão CABEÇAS DE GENTE conversando com a nossa cabeça, nunca deixarão de aparecer em encruzilhadas, ruas cheias e dias bons e ruins. Aparecerão no trabalho, na diversão, nas conversas que temos sozinhos e dias frios e quentes. Eles brotam de ralos no banheiro, brechas nas telhas e barrigas de bichos mortos. São os demônios nos concretos, dias amargos e até copos de chá. De qualquer forma o conte de Ana Paula se encerra aqui onde talvez ela zanzasse em pracinhas e padarias com a cabeça do novo amigo no colo… sorrindo com seu sarcasmo de sempre.

 

"Ele faz uso de infernos... purgatórios... céus... Ele faz uso de mortes... limbos... vidas..."

 

(H.B)

 

*Músicas: 

 

1)Easy Stars All-stars - Paranoid Android (Radiohead cover)

2) Black Sabbath  - Am I Going Insane?

3) Michael Jackson - Thriller 

4) Bjork - All is Full of Love.

 

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 29/11/2022
Reeditado em 29/11/2022
Código do texto: T7660955
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