Tonhão

 

 

Zé Antônio não conheceu o pai. Nem mesmo o nome do progenitor lhe era sabido, pois não estava registrado nos seus documentos e sua mãe nunca tocou no assunto.

 

Zé Antônio era filho de Aparecida. Só.

 

Aparecida um dia lhe contou que ela havia recebido esse nome por causa da Santa que a todos protegia. Bastava olhar ao redor para saber que a tal da “senhora” podia ser protetora dos outros, porém não era a “nossa senhora”, pois nem sabia da existência daquela miséria que definia a sua família. Zé preferia não render o assunto, porque via na devoção de Aparecida uma rara centelha de vida e esperança que fazia seus olhos brilharem e a motivava a seguir.

Seguir... Para onde seguiam? Não fazia a mínima ideia.

 

O seu próprio nome, José Antônio, também fazia referência a dois santos: São José, o operário que era pai do menino Jesus, e Santo Antônio, que era o santo encarregado de arranjar um marido para as moças. Mais uma vez Zé Antônio entendeu que sua mãe estava enganada, pois nem o operário fazia um milagre para abrir portas melhores e mudar a situação das suas vidas e nem o casamenteiro trouxera um marido para aquela mulher sozinha com um filho nos braços.

 

Zé Antônio crescia com raiva dos santos, com raiva de Deus e sem acreditar no diabo. Tinha certeza de que morava no inferno e pensava que, talvez, o céu fosse o bairro onde sua mãe fazia as faxinas diárias.

 

Apesar de tudo, Toninho, como era chamado pela mãe, recebeu carinho. Aparecida fazia questão de acolher o seu pequeno junto ao seu corpo magro na hora de dormir. Adormecer dentro do abraço da mãe era a sua porção noturna de felicidade. Na sua mente de criança, aquela era a verdadeira Santa Aparecida.

 

Até os nove anos Toninho frequentou a escola. Não era brilhante, no entanto, aprendeu a ler e a fazer as quatro operações valendo-se do auxílio dos dedos, de pedras e palitos. Também aprendeu a usar os punhos para se defender e atacar.

 

Então, veio o grande golpe.

 

Numa tarde chuvosa de novembro, Aparecida não voltou para casa depois de mais um dia da sua pesada rotina de diarista. Seu corpo foi encontrado esmagado pelas rodas de um caminhão num cruzamento do bairro nobre. O céu realmente não existia.

 

Toninho chorou muito naquela noite.

 

Sentindo-se impotente e sozinho, no outro dia não foi à escola. Nos seguintes também não. Sentiu que precisava engolir o choro, ir à luta e seguir. Aos nove anos...

 

Enquanto perambulava pelas ruas, pensando em alguma forma de sobreviver sem a Santa, foi encontrado por Leandro.

 

Leandro demonstrou amizade e preocupação para com o menino. Bastaram três cafés da manhã, dois almoços, um jantar e alguns trocados para ganhar a sua confiança.

 

Em poucos dias, Toninho foi ficando conhecido. O moleque já estava no corre. Levava pequenos envelopes e retornava com o dinheiro, que entregava para Leandro. Apenas algumas semanas foram suficientes para não mais precisar de pedras, nem de palitos e nem dos dedos, pois já resolvia as contas através de combinações numéricas que fazia apenas com o seu raciocínio rápido.

 

Como recompensa pelo seu bom desempenho, Toninho recebia algum dinheiro, uma boa alimentação e um quartinho para dormir nos fundos da casa de Leandro. Aos domingos, sendo dia livre, costumava ir à igreja, não porque acreditasse nas bobagens que o padre dizia e que ele nem tentava entender, mas era uma forma de lembrar-se da sua mãe. Não raro, lágrimas molhavam o seu rosto.

 

Aos quinze anos o rapaz já estava esperto. Havia conseguido aumentar a clientela e havia trabalhado muito para expandir os negócios para outros bairros. Depois de conseguir alguns clientes em cidades vizinhas, tornara-se o braço direito de Leandro. Por essa época já recebia, semanalmente, uma porcentagem do lucro que conseguia. E não era pouca coisa.

 

Toninho se dedicava ao trabalho com muito esmero e organização, visando aumentar o próprio faturamento, que gastava em roupas, perfumes, bebidas, baseados e corpos que lhe davam prazer sem compromisso.

 

Quando alcançou a maioridade, era um cara temido na região. Ganhou fama depois de algumas brigas, muito sangue e dois ou três que não mais foram vistos e, suspeitava-se, haviam embarcado no Expresso 38 do Tonhão. Toninho não existia mais e ai de quem tentasse atrapalhar os seus negócios.

 

Os excessos pareciam não ter fim: ostentação, bebedeiras, noitadas, brigas e alguns amanheceres vendo o sol nascer quadrado. Tonhão, um desvirtuado total, não perdoava nada: mulheres da vida, senhoras casadas ou moças de família, não importava. Era insaciável e tinha um prazer imenso em correr riscos. Por fim, de exagero em exagero, acabou com a sua reputação e colocou em risco a organização, uma vez que Leandro prezava pela discrição nos negócios. Em poucos meses, não era mais possível mantê-lo como parceiro.

 

Fora dos negócios e sem pessoas que lhe confiassem uma nova parceria, rapidamente os recursos de Tonhão minguaram. Aos 22 anos Tonhão conheceu a dura realidade das ruas.

 

Agora as brigas eram motivadas pelo lugar na fila do albergue ou pelo espaço menos pior debaixo do viaduto. Ansiava pelas noites de sexta-feira, quando um pessoal que tentava ganhar uma moral com o Divino, aparecia na praça central para distribuir marmitas de sopa no início da noite. Aquela marmita era banquete para quem passava a semana se alimentando de sobras ou, em raras ocasiões, da caridade de algum funcionário das lanchonetes do centro da cidade.

 

O pouco dinheiro que conseguia das esmolas, Tonhão gastava com pinga vagabunda, que lhe proporcionava algumas horas alheio à realidade, mas não era o suficiente para levá-lo de vez desta vida. Sempre acordava passando mal e reiniciava o ciclo.

 

Cheirando mal, com barba e cabelo grisalhos e desgrenhados, com roupas rasgadas e todo sujo, Tonhão chegou aos 30 anos aparentando ter quase o dobro da idade. Sabia que era o seu aniversário porque apresentou a carteira de identidade para a moça de um posto de saúde. Conseguiu o atendimento, porém o médico não lhe fez caso. Apenas passou-lhe um comprimido qualquer para as dores estomacais e o dispensou em menos de cinco minutos. Sentindo-se um lixo, passou a noite numa esquina qualquer. Por ali dormiu e não soube por onde deixou o documento, se no posto de saúde ou se caiu em algum bueiro.

 

Acordou todo molhado de água da chuva. Percebeu que não estava jogado na esquina, mas era levado para algum lugar, deitado no banco de trás de algum veículo. Não conseguiu esboçar reação, tal era o frio e o mal-estar que sentia. Desmaiou.

 

Despertou com a sensação boa da água morna sobre o seu corpo. Havia dois homens lhe dando um banho de chuveiro. O ajudaram com as roupas, lhe serviram uma sopa de legumes e um pedaço de pão, depois o levaram para a cama, lhe deram uma coberta e lhe desejaram boa noite.

 

Parecia um sonho.

 

No dia seguinte, ao acordar, Tonhão soube que havia sido acolhido num projeto que buscava ajudar moradores de rua a ressignificarem suas vidas. O projeto era sustentado por doações voluntárias e pelos ganhos de um lava-jato, que funcionava no local e servia de trabalho para uma parte dos quase dez hóspedes da casa, como eram chamados, pois a intenção do local era que a estadia fosse provisória, buscando reintegrá-los à sociedade e, sempre que possível, à família.

 

Havia ainda a horta, onde cultivavam hortaliças e legumes que eram usados na própria alimentação. Assim, as tarefas eram divididas entre os que atendiam no lava-jato, os que cuidavam da horta, os que ficavam responsáveis pelo preparo das refeições e, ainda, aqueles que limpavam e organizavam a casa. Ninguém ficava parado e o local era mantido limpo e impecável, considerando que era uma casa habitada por tantos homens sem muita noção de higiene e limpeza.

 

Alguns dos hóspedes ainda se dedicavam a produzir pequenas peças de artesanato que, ao mesmo tempo em que ajudavam a decorar o ambiente, geravam alguma renda extra.

 

Por causa do lava-jato e por exigir que o local fosse mantido limpo, o dono da casa era conhecido como Lavadão.

Ao explicar as regras da casa, Lavadão deixou claro para o Tonhão que, caso não quisesse continuar, ele era livre para ir embora a qualquer hora. Tonhão aceitou o acolhimento e em dois dias já estava aprendendo e contribuindo nas tarefas do lugar. Afinal de contas, ele iria embora pra onde?

 

Logo de cara, Tonhão fez dois pedidos: o primeiro, era que o indicassem onde e como fazer um novo documento de identidade. O segundo, é que o tratassem por Zé Antônio, como forma de batizar a sua nova vida e retomar a sua dignidade, longe das maldições do seu apelido.

 

Passadas algumas semanas, Zé Antônio revelou que era seu desejo morar para sempre na casa. Ele não tinha uma família para a qual voltar, por isso queria, com o tempo, tornar-se, junto ao Lavadão, um homem que resgata outros homens.

 

Pela primeira vez, José Antônio conhecia o paraíso.

 

Talvez, aprendendo a ser anjo, ele passasse a acreditar no Deus que o padre dizia nas missas da sua adolescência, na Nossa Senhora Aparecida, que sua mãe tanto amava, no São José, que acreditava no valor do trabalho e no Santo Antônio, que se fosse com a sua cara, talvez até lhe arranjasse uma companheira para aquecer as suas noites frias.

 

 

Ilustração: Gisely Poetry

Jefferson Lima
Enviado por Jefferson Lima em 20/11/2022
Código do texto: T7654396
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