RETRATISSIMO

Conta-se que o rapaz era surdo, conseguinte a surdo era mudo.Apenas fazia leves grunhidos com a boca quando queria falar alguma coisa.Era branquinho, de olhos claros quase de um castanho mel, olhinhos sonolentos; seu cabelinho encaracoladinho ele cobria com um boné

Parecia sempre alegre, ou quando parecia triste era mais bonitinho, porque seus olhinhos ficavam assim como que caidinhos.Dava uma satisfação apaixonada olha-lo assim quando parecia triste, mas eis que quando o tínhamos como triste ele sorria, sorria tanto que era quase como se falasse.

Mas este rapaz é muito feliz, muito feliz.Ele não ouve maus tratos, mas embora sinta os olhares.Não entende porque sentem misericórdia dele, se ele é tão feliz, muito bonitinho, meigo às vezes.Era bom bebe-lo assim nesta paixão.

Mas se havia uma menina que o amava.Primeiro ela não queria, acreditava que iriam rir dela: ah, então se enamorou de um rapaz deficiente auditivo.Ou julgariam: você tem pena dele, é por isto que quer namorar ele.Ou ainda julgariam mais esquisito: você quer aparecer, com um rapaz surdo e mudo, você aparece...

Mas era só ela ter necessidade – que tinha todo dia – de atravessar uma cidade para a outra, e pronto já estava próximo do rapaz.É que ela entrava na van, e ele recebia as passagens.Era uma alegria sem necessidade de alegria.Não havia cumprimentos formais, embora trocassem olhares compreendidos; doces às vezes.Porque ele gesticulava alguma coisa para ela – como assim era para os outros passageiros –e dava estes grunhidos – que era a sua voz – e havia um longo sorriso que compartilhavam até que ela então dizia entende-lo – tendo que já o entendera – pois era todo dia quase o mesmo fato.E o resto da viagem ela ficava assim, suspensa na cadeira, fingindo olhar a paisagem costumeira, recebendo o vento que vinha da orla, mas era inevitável olha-lo.E já o olhava conforme – sem saber por quê – criava intimidade com mais segurança, mesmo querendo deixar a ele notar que ela o olhava.E nestes instantes – que mesmo com outros passageiros – ela era sozinha, seu pensamento era só no embebedar-se de admira-lo, até no menor gesto tolo dele, segurando cédulas bem arrumadas entre os dedos.

Tinha momentos que a van parava, ele abria porta pra um passageiro entrar ou sair, e se olhavam de novo do mesmo modo contente, e ela fugia o olhar, o olhar que sorria.Gastavam certo tempo da viagem assim...

Mas havia ainda uma preocupação maior para ela: que ele talvez não compreendesse...

Mas ela costumava pensar nisto dentro do colégio, mesmo atenta a aula de química – que era um saco! – ou na cama, deitada de bruços, com as pernas para cima.Ela era de um moreno tão intenso, quase mulata, mas seus cabelos tinham um liso quase que pedindo um claro.E os cotovelos estavam bem confortados no colchão mole, e no quarto que era claro pela tinta bege.

Se ele pudesse acreditar, se ele pudesse acreditar...

Logo tomou a primeira iniciativa consigo mesma.Falou para a mãe sobre...

-Mas, Eloísa, é um rapaz surdo.

Procurando alguma coisa, para distrair a conversa difícil, dentro da geladeira ela diria:

-assim melhor, pelo menos sendo surdo não fala, e não falando não fala bobagens.

A mãe, mulher negra quase, achava difícil suportar, embora não soubesse por quê, e nem se realmente seria assim se fosse o caso de acontecer, já crendo que isto nunca seria realidade.

Eloísa pensava, e quando não acontecia de ser a van que ele estava...o dia passava a ter um significado branco.Pegava-se perturbada, incomodada com qualquer coisa.As amigas a empurravam – dentro de bailes e danceterias – rapazes que ficavam surdos de tanto ouvirem, e ela pensava enquanto isto ao meio do que atentava: ele, ele que nem piscaria os olhos, apenas sorriria; e se sorrisse triste ainda seria melhor, que ela levaria aquela surpresa, pelos olhinhos caídos, e mais sonolentos ficariam se nem estivesse triste nem feliz.

E assim ela o via na van, com a mesma alegria desnecessária de toda vez.

Será que ele compreenderia.

E sua mãe, seu pai, suas amigas teriam compreensão diferentes, como: misericórdia, loucura, coisas de infantilidade juvenil.

-minha filha, não. Eu sei que é um rapaz bonitinho, mas como...como?...

Eloísa riria, porque ela mesma não saberia como explicar, e o rapaz, que ela já sabia o nome – ele escrevera num papel, porque ela não entendia a linguagem de sinais – Matheus jamais saberia explicar.Aceitara com uma alegria serena, sem pedir maiores explicações, talvez enfim porque se achava normal.Era normal, mas o viam assim como uma pessoa que mora no silêncio.

Eloísa e Matheus assim namorariam debaixo dos coqueirais, sentindo a brisa das ondas, num crepúsculo irado de vento e azul.As mãos dele procurariam as dela que estavam ao regaço do vestido; os olhos dele, sob a aba do bonezinho, com seu ar sonolento a olharia assim daquele modo que deixava ela acesa, apaixonada.Mas ele a compreendia? Não digo de som, porque nem precisavam de palavras, mas sim de que ela tinha uma felicidade desnecessária como todo mundo?Se ele não compreendia, ela estava satisfeita em que ele apenas aceitasse.Por que assim neste silêncio os dois se olhavam tanto e as faces se aproximavam numa emanação de calor e os lábios se encontravam num beijo molhado, se lambuzavam um da boca do outro.

Eloísa sentia-se ardidamente apaixonada, mas compreendia – nem sabia por quê – que sua mãe a achasse imunda.É que a mãe passara a olha-la de traves – evitando – mas não conseguia disfarçar, que não conseguia olha-la com a naturalidade que bem nunca mesmo existira.

-Então quando traz o Matheus aqui – falava quase com nenhuma naturalidade, sempre procurando fazer alguma coisa enquanto lhe dirigia a palavra, como espanar os moveis, passar os dedos sobre a vidraça da janela, ajeitar as cortinas, mudar um vaso de planta de lugar.

O pai – que nunca mesmo a olhara direito – era de olha-la como se ela fosse um ser todo especial, iluminado de repente.Sorria muito para ela, como se ela tivesse agradado não apenas ele, mas toda humanidade.

A irmã tinha o luxo de dizer, por que mesmo pequena dizia tudo que pensava, que achava muito nobre a irmã, e vangloriava-se sem a lógica certa do que era vangloria, porque assim descobrira que nunca teve um gloria antes na sua vida, mas por dentro podia dizer que ainda era novinha...

Matheus era este rapaz.Ele sabia muito bem do silêncio, apenas os olhares podiam machuca-lo, porque das palavras ele conhecia bem dos livros que lia.E era nos livros que ele entendia um mundo turbulento de palavras sem que som precisasse se emitir, e sem perceber, arremessava aquele grunhido de quem quer dizer alguma coisa, mas ele mesmo não ouvia o seu grunhido, e nem sabia que era apenas um grunhido.Às vezes o admitiam como louco.Quem assim por acaso não o conhecesse e tentasse falar com ele esperando resposta em som.Ele percebia um riso, e sem maldade, respondia com um riso tolo como o que recebera.

Matheus tem a meiguice de olhinhos sonolentos que nos surpreende o achando triste e pronto lá estar ele a sorrir...E assim Eloísa o ama, assim o ama sem que ouça dele a voz, que é para ela o maior de todos ouros que recebera pelo menos admira-lo nestes instantes que ele parece sonolento e triste e de repente sorrir numa felicidade de não se caber num ser humano tão pequeno, é para ela ainda maior quando ele a beija tão molhado na sua saliva quente: ele é tão quase louquinho mesmo como o seu mundo tão quietinho...

E quem o olha, ama-o, porque ele inspira amor confundido com misericórdia que ele não precisa, mas como ninguém explica, nem ele vai procurar entender se alguém – porventura – tentar explica-lo.

E assim ficamos, e ele fica...

Eloísa tão feliz, quase feliz como ninguém precise.Matheus – talvez – sempre tão feliz, sem que saiba que nos embebeda com seus olhinhos sonolentos que ao caírem tristes levantam-se alegres num sorriso tão ingênuo, quase tolo num queixo...

E um ar de menino perdido...

E perdemos o melhor sem conseguir compreender o que há mais dentro de cada ser humano, sem conseguir me rasgar por completo eu falho...

Aconteceu o possível aqui, previsto a muitos anos atrás, no imprenscidivel do agora que conheci.

Sempre, sempre vai haver este vento em nosso rosto quando pensarmos em chorar para nosso pranto secar.

Mas é a alegria desnecessária tão procurada...

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AUTOR: RODNEY ARAGÃO.

15/03/2005.