Esconde-esconde - O Diário Mágico de Luca
Após uma maçante viagem de trem, chego em Porto de Vera Cruz e aguardo no parque onde combinei de encontrar uma “ex-amiga”. Cansado de ficar sentado a viagem inteira, decido espichar as pernas com uma caminhada até que se aproxime o horário.
Em meio à caminhada, sou interrompido por um bando de crianças brincando, correndo à minha frente e dando risada. Brincavam de... sei lá o que, só sei que estavam correndo de um lado para o outro, desenfreadas. Uma das garotinhas veio se esconder atrás de mim. Não sou tão grande assim, não foi uma boa escolha, garota.
— ACHEEEI! – Grita um garoto da mesma idade, uns oito anos, ao vê-la atrás de mim.
Quando a garota se prepara para sair em disparada, escuto um estalo.
Nos próximos quinze segundos, tudo que escuto são berros de dor e choro de criança. Uma pedra solta fez com que ela escorregasse e torcesse o pé.
Como qualquer adulto responsável, eu ignoro e tento ir em frente. Os pais dessa criança que resolvam esse perrengue. . .
No próximo minuto, ninguém viria ajudar. Algumas crianças estavam em volta, sem saber o que fazer. O barulho do choro ressoava em meus tímpanos. Os olhares confusos das crianças ao redor se firmavam em minhas pálpebras a cada piscar de olhos.
Encaro meu relógio, encaro a roda de crianças, encaro o céu um tanto nublado e decido ajudar.
— Altruísmo... que saco. – Murmuro, após um longo suspiro.
Chego próximo às crianças, peço a licença e abro a mala de mão que carregava.
— Calma, garota! Vou cuidar do seu pé. Seus pais não estão aqui? – Pergunto à menina.
— N-não... minha mãe saiu para dar uma volta. – Disse a garota, ainda com voz de choro. - Tá doendo muito!
Olho em volta e não vejo nenhum pai acompanhando suas crianças nesse local... quanta confiança na segurança desse parque, não é mesmo?
— Vou esperar sua mãe com você aqui, então. Qual o seu nome? – Pergunto enquanto começo a passar uma pomada em volta de seu tornozelo torcido
— Rúbia... – Ela fixa o olhar em minha mão enquanto eu fazia um círculo com os dedos na área inchada. Instantaneamente sua dor passou.
— Tudo bem, Rúbia, estou fazendo um truquezinho aqui que vai passar a dor, ok?
— Como você fez isso? Você é médico? Minha mãe falou que é médico que faz a dor passar. – Seus olhos brilham.
— É... mais ou menos. Vamos dizer que sim. Eu fiz a dor passar, mas o pé continua fraco e você não vai conseguir andar. – Digo, com preguiça de explicar.
— Uau!! Que legal!! Mamãe conhece um médico também. – Diz Rúbia, sem sentido algum.
— Legal! – Respondo, com uma falsa empolgação.
Olho para meu relógio, a hora está chegando.
— Você tem que ir pra algum lugar? – Pergunta Rúbia, inocentemente.
Infelizmente não posso largar a criança aqui. Precisarei entretê-la até que os pais cheguem.
— Não está na hora ainda. Vamos, vou te levar até aquele banco para você se sentar. – Levanto e carrego Rúbia, surpreendentemente leve, até um banco de madeira próximo ao lago do parque.
Olho as crianças correndo de volta, como se nada tivesse acontecido. Rúbia também nota, com o olhar um pouco triste por não poder brincar. Decido compartilhar uma das minhas histórias do tempo de criança.
— Qual sua idade, Rúbia?
— Nove anos!
— Sabia que quando eu tinha a sua idade eu me mudei de casa? Quer saber a história da primeira vez que brinquei de esconde-esconde nessa casa nova?
Tiro meu diário do bolso da jaqueta e ele se abre sozinho, como mágica, caindo em uma página específica.
— Querooo! – Diz ela com empolgação quando vê a magia com seus olhos.
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Era o início da primavera. Donna Albertoni me trazia de carroça até um casarão nos campos ao sul da capital. Não muito distante de onde era um pedaço da praia. Seria minha nova casa até os quinze anos.
Moravam mais de vinte crianças e adolescentes. Boa parte delas eu conheci logo em minha chegada, pois esperavam a refeição da tarde na sala de estar, em volta de uma grande mesa com massas e carnes. Era costume que se reunissem nesses horários, desde sempre. Duas outras mulheres ajudavam a Donna a organizar a casa e as refeições, enquanto um velho homem cuidava da horta e do trabalho braçal.
De início, não me socializei tão rápido com as outras crianças. Apenas observei suas brincadeiras, sentado ao pé de uma laranjeira. No segundo dia, me chamaram para brincar. Relutei a aceitar. O motivo?
Eu pouco brincava com as crianças da pequena Poverone, sempre me ative a observar. Elas brincavam e se comportavam de um jeito... “normal”. Mas, no orfanato da Donna, as brincadeiras... a forma como as crianças brincavam, era muito diferente do que poderia ser considerado “normal”.
— Do que vocês vão brincar? – Pergunto, inocentemente.
— Queimada! – Diz o garoto alto e de cabelo ruivo.
Eu descobriria depois o seu nome. António, de pele queimada do sol e cabelo curto, espetado. Nem precisei perguntar, acabei sabendo o nome de cada um que participou da Queimada após um sermão de uma hora de Donna Albertoni devido a bola ter quebrado os dedos de minha mão quando tentei agarrar um lançamento.
— Eu já falei para não usarem essa força nas brincadeiras, nem todos aqui dominam o fortalecimento!
Eu descobriria também que esse tal “fortalecimento” já tinha sido ensinado para a maioria das crianças daqui. Era como um feitiço para aumentar a força, resistência, velocidade, seja lá o que pudesse ser amplificado. Nos dias seguintes, fiquei de escanteio nas brincadeiras. Nem pudera, com a mão quebrada e todo machucado de algumas boladas.
— Por que Donna não ensinou nada a ele ainda? – Disse uma das moças que trabalhavam no casarão para a outra.
— Ele não despertou ainda... Muito estranho.
Escutei nos corredores da casa alguns burburinhos sobre mim. Não sabia o que significava. De fato, Donna Albertoni só tinha vindo falar comigo uma vez após me trazer, quando me deu a chave da biblioteca.
— Você gosta de ler? Sua mãe me disse que você adorava ler. – Disse a Velha da Cara Emburrada, como eu gentilmente a apelidei, com tudo o que já recebi de simpatia dela contida nesta frase.
Após o jogo de queimada que me “queimou as mãos”, a velha Albertoni apenas tratou meus machucados desenhando um sinal com os dedos, num movimento semelhante ao que te fiz há pouco, Rúbia. Ela nunca me chamou para as “Atividades da Manhã” que dava às outras crianças.
— O que eram essas atividades, Tio? – Fui promovido a “tio” por Rúbia.
— Nem eu sabia, não tinha feito amigos para perguntar.
Minha primeira semana foi em silêncio. Não incomodei ninguém e nem fui incomodado. Apenas me reunia durante as refeições e pelas conversas paralelas, já tinha descoberto o nome de quase todos ali. Nos outros momentos, lia algum livro na biblioteca. Muito busquei sobre os tais “feitiços” que eram comentados nas brincadeiras e jantares. Um deles falava sobre o tal “Feitiço de Fortalecimento”, mas eu não conseguia fazer acontecer.
Em uma segunda-feira pós almoço, vejo uma das meninas mais velhas do orfanato conversando com um dos garotos da minha idade, direcionando a conversa para mim, aparentemente. Aquele garoto dois anos mais velho, José, de longos cabelos castanhos, viria me chamar para uma brincadeira após a conversa. Nada que fosse me machucar, apenas um inocente esconde-esconde.
— Igual o que a gente tava brincando aqui, Tio? – Pergunta, Rúbia.
— Parecido, mas um pouco diferente.
Começando pela contagem até 50. Mila, a brincalhona garota de pele negra, seria a primeira a procurar e era como se eu escutasse sua contagem dentro de minha mente. Ela não estava gritando, nem nada do tipo, apenas falava em minha cabeça. Quando terminou a contagem, eu estava escondido dentro de um galpão, embaixo de uma mesa. Tinha achado estranho que combinaram que poderia se usar qualquer lugar desta vasta propriedade como esconderijo, mas entendi nos segundos seguintes.
— ACHEI!! – Gritou Mila.
— Não vale! O Zeca falou que não valia fazer isso!! – Exclamou António, que estava escondido atrás de um monte de feno perto do galpão.
Após um zunido, escuto um estrondo ao lado do galpão onde eu estava, seguido de risadas e um grito.
Saíram correndo na mesma velocidade para o ponto de partida da brincadeira, o “pique”. Eu já tinha entendido, eles tinham usado algum feitiço. Naquele momento, saí correndo para mais longe, com o medo de uma criança teria de se quebrar ainda mais. Continuei correndo por alguns minutos, já não tinha o objetivo de brincar, mas de não me machucar dessa vez.
Cheguei até uma pequena entrada em meio às rochas nas adjacências da fazenda. Na inocência de uma criança, apenas pensei: “Não vão me encontrar aqui”. Já estava longe o suficiente. Esgueirei-me pela entrada e descobri uma queda d’água vinda de uma fonte natural que brilhava ao refletir as esparsas luzes que entravam na cavidade. Algumas rochas fosforesciam e davam uma beleza única ao local. A caverna certamente era maior do que o salão do casarão que nos abrigava. A natureza se mostrava aos meus olhos, bela e surpreendente, pela primeira vez. A segunda vez não demoraria muito. Foi após ver uma garota descansando às margens da água corrente.
Podia apenas ver o contorno esguio de seu corpo deitado de lado, com as pernas encolhidas e apoiando a cabeça sobre um de seus braços. Vestia roupas de primavera e parecia sentir frio. Ressabiado, não tentei acordá-la num primeiro momento, apenas me sentei às margens do córrego que seguia a queda d’água e fiquei em silêncio por alguns minutos. Ainda pensava no que havia se passado comigo nas últimas semanas. Tanto barulho em minha mente que nem mesmo o silêncio da biblioteca do casarão vinha sendo o bastante para aplacar essa turbulência.
À medida que o tempo se passava, notei que não vinha apenas da minha mente a turbulência daquela inesperada caverna. A garota se debatia enquanto dormia, parecia passar por um pesadelo. O curso de água que cortava a caverna em duas era bem estreito, ao ponto que com um “pulinho” eu pude atravessar. Ainda preocupado e sem saber o que fazer, o “eu criança” decidiu fazer o que a mãe fazia quando demorava a dormir: Toquei minhas mãos às da garota e entoei uma canção de ninar tradicional da região.
Tive uma sensação diferente... sua pele era gélida, como se não circulasse sangue. Estava escuro demais para ver os contornos de sua face, mas podia sentir que tinha traços delicados. Senti o frio envolvendo meu pescoço logo em seguida. Talvez o Luquinha da época não estivesse com muita sensibilidade ao toque tendo a mão enfaixada, ocasionando com que a garota acordasse de supetão. Certamente foi uma cena que a assustou, visto que se levantou, agarrou meu pescoço e o sacudiu... Por apenas três segundos, até perceber que eu não representava perigo ou por me reconhecer sei lá de onde.
Após o susto, ela se acalma e pergunta, enquanto buscava uma vela que estava apagada ao seu lado:
— Quem é você?
— Eu? – O susto dela tinha passado, o meu não.
— Sim, você.
Não vi como, mas a vela se acendeu. Com a luz iluminando parte de seu rosto, pude ver seu cabelo e sobrancelhas, ambos brancos, como se fossem descoloridos, mas ainda não reconhecia ela do casarão.
— Eu sou o Luca. – Digo, ainda temeroso.
— O menino novo no orfanato?
— Sim...
— Eu sou Paola. Acho que você não me conhece, eu não saio muito pra fora do quarto, sabe?
Tímido como sempre, não respondi na hora, nem continuei a conversa.
— Por que você veio aqui? – Pergunta Paola, para quebrar o silêncio.
— Eu tô fugindo... não quero mais brincar com os outros. Eles me dão medo. – Digo enquanto me encolho sentado, abraçando meus joelhos e olhando para baixo.
Após pensar por alguns segundos e ver minhas mãos enfaixadas, Paola volta a falar.
— Eu vi vocês brincando de queimada aquele dia. António pega pesado às vezes. Mas eles vão entender, não precisa ficar com medo, sabe?... – Disse a garota, tentando me animar.
Apenas acenei com a cabeça e permaneci em silêncio. Ela ignorou, deitou-se às margens do estreito córrego e abriu um livro para ler. Não tinha ideia de como ela conseguia ler com a fraca luz de uma vela em meio à escuridão. Eu fiquei batendo os pés no chão, ainda nervoso com tudo que me ocorrera. Deve ter incomodado a garota, que após alguns minutos, voltaria a falar.
— Donna não te ensinou nada de magia, né? – Pergunta Paola, já sabendo a resposta. Era uma garota observadora.
— Não... – Respondo, arisco. – Não me falou nada...
— Eu acho que ela não te falou nada porque você tá com medo. Ela sempre diz que o medo afasta a magia, sabe?
— Mas... eu li um monte sobre esses feitiços que eles fizeram e não consegui fazer. Eu acho que não tava com medo naquela hora e mesmo assim não consegui. – Digo enquanto me encolho novamente e uma lágrima começa a escorrer.
Em um só movimento, a menina se levanta, ficando apenas de joelhos e me alcança com seus braços esticados. Estende a mão e enxuga com seu indicador a primeira das lágrimas que descia em minha face.
— Você tá com medo, eu sei. Deve ser tudo diferente da sua casa, né? Mas você tem que enfrentar seus medos. – Diz enquanto se vira para o curso d’água e estende a palma de sua mão, tocando a superfície. — Então vou te mostrar um feitiço muito bonito... Nunca mostrei pra ninguém, sabe? – Consegui ver um sorriso de canto de boca em Paola.
De sua mão, uma linha de brilho azul intenso percorre o fluxo de água, estende-se, ramifica-se e emana para suas redondezas, dando brilho para toda a caverna. Pedras brilhantes aparecem por onde a linha se ramificou. Pela primeira vez, eu via a magia como algo belo e não aterrorizante.
— Tá com medo ainda? – Pergunta Paola, sorrindo.
— Um pouco..., mas menos... – Não sabia o que responder.
Não conseguia ver antes, mas sua tenra face trazia paz. A pele branca e os olhos cinzas brilhavam ressonantes. Hipnotizado, apenas fiquei admirando a cena. Para uma criança que pouco tinha visto em sua vida além do mundo dos livros, a vida real se mostrava estonteante naquele momento.
Após a estupefação, a queda...
Em meu ombro, caminhava uma aranha de porte médio. Paola notou antes que eu, por sorte, e a retirou sem me alarmar. Assustei-me, porém, com o que Paola disse depois.
— Mila está vindo e vai te encontrar. – Troca seu sorriso por uma expressão mais séria.
Travei por instantes... e ela notou.
— Você vai ter que enfrentar esse medo se quiser fazer igual eu, sabe?
— Não consigo...
— Consegue! – Ela dá um suspiro e resolve. – Vou te ajudar ganhar no esconde-esconde.
Como se fosse a disputa mais importante de minha vida, enchi o peito de esperança e aceitei a ajuda. Mas como?
Novamente, ela estende a mão e faz outro feitiço. Desta vez, faz diferente, escreve no chão com uma pedra. Faz um desenho de um círculo, não identifiquei o que estava escrito dentro. Após estender a mão para esse círculo, da mesma forma que anteriormente, um brilho azul gélido percorre o córrego, mas as marcas que ele deixa são mais visíveis. Todo o percurso se torna congelado e tubular, com a superfície lisa.
— Escorrega aqui. Depois te encontro. – Paola para e olha para minha cara de bolacha sem reação para a informação. – Anda! Rápido!
Vou para cima do “tobogã improvisado” e ela me empurra. Ao fim do caminho, um buraco que levava a um nível inferior da caverna. Foi tudo tão rápido que em um piscar de olhos, eu já estava me esborrachando no chão.
No andar de cima, escutei uma discussão após um minuto. O som vinha de onde eu vim, mesmo que abafado pela distância.
— Ele tava aqui, você viu? – Disse uma voz distante.
— Nem ideia. – Respondeu Paola.
— Você tem certeza?
— S-sim. Sai daqui, é meu canto.
— Tá bom, então... Esquisita.
Falaram mais coisas, mas o resto me era inaudível.
Em questão de segundos após a discussão se encerrar, escutei a água congelando novamente. Paola desceria por ali, muito mais suave, sabendo onde iria cair.
— Vamos, temos que ganhar esse jogo. – Diz Paola, levando a sério demais. Deve ter discutido feio com Mila.
— Como?
Sem responder em palavras, Paola abre uma parede de gelo no canto da caverna com uma das mãos.
— Vamos? – Diz ela, abrindo um guarda-sol cinza e caminhando rumo à saída.
Eu apenas a segui. Sentia que a diversão estaria ali, com ela.
A saída era uma pequena queda d’água, nada que um pulinho não resolvesse. Molhamos os pés calçados de sandálias e saímos andando com pressa. Paola segurava firme seu guarda-sol, que balançava a cada vento mais forte que nos atingia.
Não durou muito. Paola, apesar de sua postura altiva, tinha um corpo frágil. Torceu o pé na metade do caminho. Eu tive que tomar uma decisão: ir só até o pique e ganhar na brincadeira ou cuidar da minha nova amiguinha machucada. Como uma boa criança que era, escolhi o primeiro, apenas disse que chamaria ajuda.
— Sério, Tio? – Interrompe Rúbia.
— Óbvio que não, eu era uma criança medrosa e não queria ir sozinho. Além do mais, Mila encontrou a gente pouco depois e saiu correndo a toda velocidade, eu já ia perder mesmo.
Vi a dor no olhar de Paola. Essa dor não era apenas pela torção no tornozelo, era de tristeza. Seu corpo débil de certo que já havia trazido decepções. Ela se sentou embaixo da sombra de uma laranjeira, o sol de meio da tarde estava escaldando. Não havia muito o que eu fizesse naquele momento, não teria forças para carregá-la até o casarão, até que tive uma ideia.
— Me espera aqui. – Disse a ela e fui correndo rumo à horta. Voltaria alguns minutos depois, com algumas ervas e uma pomada na mão.
Com ela ainda sentada, pedi para que esticasse a perna. Fiz o mesmo que Donna havia feito comigo, amassei as ervas na mão e misturei à pomada, então espalhei em volta da lesão. Repeti também o sinal que ela fez.
— Você não disse que não sabia nenhum feitiço? Esse daí é de cura. – Questionou Paola.
— Eu sei, eu só não consigo fazer, mas sei todos que tem nos livros...
Ela fica em silêncio. Posso ver que sua expressão de dor se ameniza.
— Me conta... por que você tava naquela caverna? Você vai sempre lá?
— É tipo... meu abrigo fora do casarão, sabe? A Donna disse que por causa do meu corpo eu não ia poder sair muito pra fora de casa, brincar com os outros, ficar no sol. Então sempre fiquei sozinha no Casarão. Por isso encontrei um lugar pra ficar fora de lá, mas ninguém quer brincar dentro de uma caverna escura. Então eu fico sozinha lá pra me distrair um pouco, leio uns livros e durmo, sabe?
Após pensar um pouco, decido por mim.
— Posso ficar lá também às vezes? Só às vezes... Não tenho muito pra onde ir sem ser a biblioteca. – Peço, olhando ressabiado para sua cara, temendo que ela não quisesse ser incomodada sempre.
— Pode! Eu deixo! – Responde Paola, com o sorriso falho de uns dentes que vinham por nascer.
Após mais uns segundos de silêncio, vez de Paola quebrar o silêncio com sua curiosidade.
— Me deixa tentar uma coisa? Repete o sinal que você fez, mas me dá a mão. Tenta sentir o que eu sinto.
Dou a mão esquerda para ela. Paola fecha os olhos, se concentra e pede que eu faça o mesmo. Faço o círculo com os dedos da mão direita, a letra circunscrita e aponto a palma de minha mão para seu tornozelo.
Meu corpo todo começa a formigar, meu coração acelera, começo a suar frio e fico paralisado. Era o mesmo medo que senti quando minha mãe morreu.
— Agora entendi o seu medo... me deixa tentar um negócio. – Vejo aquele brilho azul a percorrer meu corpo, semelhante ao do feitiço na caverna. – Você consegue ver a minha linha, né? Então vai dar certo.
Meu corpo relaxa, como se um véu se repousasse em meu corpo e me cobrisse. A sensação era única.
— Pronto, agora deu certo. Você não é o único que lê bastante, sabe? – Nem tinha notado, mas consegui completar o feitiço de cura, a pomada e as ervas tinham sido absorvidas pela sua pele.
— Como você fez isso? – Questionei, incrédulo.
— Outro dia te conto... se você voltar na caverna um dia. – Diz Paola, sorrindo. – Agora me ajuda a voltar pro Casarão.
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— Como que ela fez isso, Tio? – Pergunta Rúbia.
— Longa história, criança. Quer que eu conte?
Via em seus olhos o interesse por uma nova aventura. O interesse pelo meu diário mágico também era evidente. Mas antes que sua boca expressasse o que seus olhos diziam, ouvi uma voz ao longe.
— Rúbia! Cadê você? – Uma mulher grita. Rúbia se levanta e olha para trás.
— Aqui, Madre! – Grita Rúbia, pulando e espichando os braços. Já está com o tornozelo curado.
A mulher caminha em nossa direção me encarando. Não a reconheci de primeira.
— Rúbia... já te falei pra evitar más companhias e estranhos... É perigoso, sabe? – Disse ela, complacente.
— Desculpe, moça, não era minha intenção... – Penso por um breve momento e presto atenção à mulher à minha frente. Cabelos loiros com detalhes azuis nas mechas. Vestido branco curto e um chapéu de aba larga, óculos de sol, roupas diferentes do costume da região. Um guarda-sol, mesmo em um dia nublado como esse. – Você mudou bastante, Paola.
— Você também, cãozinho da Maggia. – Respondeu, seco. Ignorei.
— Prazer em te ver, também. Como vão as coisas?
— Vamos logo ao assunto principal. Não quero mais perder tempo com você.
— Tudo bem... – Viro minha atenção para Rúbia. – Pelo jeito a próxima história fica para outra hora, pequena. Nós nos veremos de novo, certamente.