Longe do sol de fim de tarde
Os passos iam se afundando no asfalto e o gelo que ia à alma, chocava—se com o fogo-magma que meus pés pareciam tocar, me botando a perder. Mas enfim, os pensamentos surgiam como um amontoado insignificante de letras, pois nem mesmo todos os idiomas poderiam dissertar uma definição exaustiva daquele agora, de maneira tal que quando as palavras resolveram buscar ar, jorraram aos borbotões de asneiras, patéticas de tão emocionadas. Um cigarro entre os dedos como que me alertava perigos, feito um sinal vermelho. Lembrava-me de coisas um tanto surreais naquele instante.
Então a flor despetalara e bagunçara o coração que entregava as hemácias como bem-me-queres/mal-me-queres desenfreados. Eu bem tentara deter entre os meus rins uma pétala sequer, mas delas só me restaria a partir daquele instante um perfume que ora exalava notas plangentes, vez em quando um quê de frustração, ora um "cheiro de solidão entre os cabelos". Fragmentos de aromas ora perdidos.
Os ouvidos não criam no que os lábios pateticamente balbuciavam, e um resto de razão me sussurrava: São devaneios, desista. Na verdade nenhum dos astros planejara o que eu desenhara na areia, com traços imprecisos. Nada conspirava para um outro desfecho. A flor jazia despetalada sobre cores e suores que andavam represados, a fim de desaguar no leito das pétalas que cheiram a amor e repousam sobre um mapa que desenha de dor o que a geografia desconhece. As mãos parecem divorciadas do que o coração suplica: apertam-se retorcendo seus anseios entre os dedos...
E o que fazer, se todas as células do meu corpo ainda estavam ridícula, terrível, dolorosamente sob o efeito de um olhar? As ondas cantavam nas pedras e o fundo que eu enxergava me pedia que eu fosse mais adentro, onde meus olhos não enxergavam, mas o perigo mais uma vez aceso entre os dedos e mais um trago me asseguravam que eu precisaria andar mais pra adiante, descobrindo, experimentando cada passo profundo, enlameado pelo magma, pastoso como meu olhar sem sorrisos, cheio de senões e exaurido pela falta de um rumo. Eu preciso andar, mas me lembro da contracapa de um livro que estou lendo e decido que não preciso de nada, mas quero muita estrada ladeada de flores com pétalas.
O abismo não me contém, mas estou contida em suas incongruências, conflitos. Cantarolo mais um trechinho qualquer, enquanto tento me desvencilhar da sensação de estar chorando na estação, com o talo sem pétalas nas mãos, olhando de longe minhas malas partindo sozinhas, perdidas no meio de tantas malas estrangeiras, desconhecidas, nocivas, danosas.
Quisera eu extirpá-las do convívio dos tesouros que habitam minhas malas que levavam para longe as pétalas do meu sonho mais intenso há duas luas, ou pouco mais ou menos que isso. Na verdade a velocidade dos fatos me atropelou o tempo das coisas ditas normais e é como se um fenômeno devastador e antinatural fosse precipitado de dentro de mim, rasgando excertos da minha poesia calada, que se derrama, escorrendo pelos meus dedos e eu não consigo reter nada, como fui incapaz de reter uma pétala sequer e assisti inerte a minha flor a se despetalar, como se uma força qualquer me detivesse, me privasse de um ato capaz de derreter os Alpes.
Num átimo, um abraço parece cruzar meu corpo na velocidade da luz, que de repente apaga-se e reforça o quão são queridos e desnecessários os meus passos embebendo-se no magma e o peito a abrigar o frio dos Alpes. Mais um cigarro e agora não só a brasa, mas a fumaça envia sinais de perigo: o que fazer da velocidade com que o sangue percorre as veias, surrando as artérias, batendo ao ouvido um eco distante de um violino que se afasta cada vez mais e mais. Deixo então cair o arco flácido, desafinado pela intensidade de seu último vibrato. Na mente ressoam adágios de uma melancolia entorpecente.
Não tive lágrimas para doar a este momento, pois ele ainda me assalta, assola, rouba de mim a capacidade de coordenar os fatos em uma sequência, uma ordem que tenha ao menos uma vírgula de lógica. Percebo que é amargamente impossível pelo menos desta feita. Mais uma vez a brasa vermelha ordena que eu feche numa gaveta de inutilidades, o célebre livro da infância, com suas invenções de felicidade. Melhor relembrar escritos sobre a paixão e o amor, com conteúdos mais distantes do ilusório encantamento que acompanha minhas malas perdidas, minha flor despetalada.
Dia atípico de românticas fotografias de uma cidade longe da forma de realidade que me captura em seu cotidiano, onde não cabem assombros de junções místicas, acho que nem mesmo as carnais. O misticismo fica transcrito apenas nos quadros que pintei pra mim com cores que não eram minhas e agora seguem nas malas que partiram sós.
Mais um amontoado de letras violenta o desdobramento dos passos dentro do fogo-magma que me consome, mesmo sendo a encarnação do mais que nunca intangível e joga minhas pétalas queridas num pretérito-mais-que-perfeito qualquer do verbo viver. Do adjetivo encanto, sobra a ressaca dos olhos embotados de sorrisos calados e abraços perdidos...