UMA GRANDE MULHER- relato de um corpo divergente.
Imagino que o título desse relato passe uma ideia errada sobre mim. Sou uma grande mulher, mas aqui o termo “grande” não assume nenhuma presunção de auto estima ou de achar que sou melhor do que as outras pessoas. É triste reconhecer, mas é apenas a atribuição de uma característica. Sou realmente grande. Cerca de 1,80m e excessivos 142 quilos.
Embora não tenha notado usei intencionalmente o ‘sou uma grande mulher” e não o “sou uma mulher grande”. Minhas medidas são a primeira característica que percebem em mim, geralmente antes até de perceberem que sou mulher. Elas se sobressaem ao meu gênero, a minha raça, a meus gostos pessoais, como por exemplo se gosto de usar cabelo curto ou comprido ou se prefiro roupas claras ou escuras. Minhas medidas me desumanizam como se eu não fosse nada além de um corpo gordo. Apenas para ser contrária a isso e listar alguns dos meus gostos: gosto de cabelos curtos pra evitar que fiquem empapados com o suor que me invade na tentativa de qualquer esforço e roupas escuras pelo mesmo motivo e porque dizem que disfarça as medidas. Mas sim, eu sei que é impossível disfarçar totalmente um corpo como o meu. Isso pode ser possível para uma mulher gordinha. Gordinha é a mulher padrão que come duas fatias de pizza e acha que precisa correr na esteira porque exagerou. Não sou “gordinha”. Sou gorda. E isso não é e nunca deveria ser uma ofensa, apenas uma constatação. Sempre detestei o eufemismo mesmo sendo um modo educado de não me dizer o obvio.
Contrariando as expectativas estou indo à um encontro com um rapaz. O local escolhido foi, é claro, um restaurante. Será a primeira vez que saímos após dias de conversa online. Minhas interações iniciais são sempre online. Prefiro porque sei que minha foto nos aplicativos de mensagens incrivelmente escondem as dimensões de meu corpo. Sou o tipo de mulher que costuma ouvir os nem sempre inofensivos comentários: “Você tem um rosto tão bonito, só precisa emagrecer”. Certas pessoas acreditam mesmo que isso é um bom elogio, como se o fato de ser gorda fosse incompatível com a possibilidade de ser bonita. O rapaz sabe de minha gordura. Não faria a ele essa cruel surpresa. Em uma de nossas conversas revelei meu corpo, embora na foto enviada eu estivesse com uns 30 quilos a menos e no auge de minha enésima dieta. Talvez ele fosse compreensivo por estar também acima do peso. Talvez tivesse um fetiche com meu corpo. As pessoas não imaginam o quanto um corpo gordo pode ser objetificado como erótico. As fantasias sexuais assumem caminhos improváveis para o tabu coletivo.
Cheguei e logo vi que ele reparou por um tempo em minhas roupas. Não me preocupo em me vestir com a roupa ‘plus size’ que segundo dizem me deixaria linda. Não tenho boa autoestima, boa vontade ou vaidade. Aliás vaidade é uma das muitas coisas que não me permitem ter. É considerado abusivo eu tentar ficar bonita mesmo tendo muitos quilos a mais. Meu guarda roupa básico é uma camiseta masculina, bermudão ou qualquer peça confortável que não marque a cintura (que eu deveria ter). Costumo sair assim pra qualquer lugar. Nada de blusinhas mostrando o braço grande demais, os ombros grandes demais ou os seios enormes e proporcionais. Roupas masculinizadas são um reduto do universo dos homens a que me permito. Os homens são autorizados a estar acima do peso. A eles é permitido ter qualquer corpo. Há para eles a sorte de serem livres. Uma mulher jamais. Uma mulher e em especial uma mulher como eu tem um corpo que não lhe pertence, pois é predestinado a ojeriza social. As vezes comentários maledicente, noutras são olhares julgadores e condicionados que parecem repetir o coro da mídia e das revistas femininas (e não feministas) que ditam a moda e a dieta da moda: “Como se atreve a ser tão descuidada com o próprio corpo?”; “Como ousa não cumprir o papel social que lhe é imposto e não satisfazer os olhares dos homens?”; “Ela é um mal exemplo, pois nenhuma de nós quer acabar como ela”. Enfim, algo tão simples como comprar um vestido era opção quando ainda não sentia vergonha de entrar numa loja ou tinha disposição para ser destratada pelas vendedoras acostumadas a servir corpos mais magros que o meu.
O rapaz estava sentado numa daquelas cadeiras que mais se parecem com um sofá e se levantou para me cumprimentar. Eu já tinha visto aquelas cadeiras pela internet. São largas e acomodam bem as costas e as “silhuetas diversas”. Sempre que tenho que sair pra algum lugar eu faço uma rápida pesquisa na internet pra ver como serão as cadeiras do lugar. Quanto maior é o corpo, menor é o mundo. Há lugares que não foram feitos pra mim. Poltronas de ônibus ou avião, cinemas e alguns restaurantes, etc. São incapazes de acomodar meu corpo e a tentativa torna-se torturante. Ficar apertada numa cadeira com braços laterais que me causam hematomas, ficar me equilibrando na ponta de uma cadeira apoiando meu peso sobre o tornozelo ou ainda o constrangimento de ter que me apertar e forçar a passagem em mesas fixas de praça de alimentação da maioria dos shoppings são em geral vistos como um convite para que eu permaneça em casa. Lógico que não saio muito. Agradeci mentalmente a generosidade e empatia dele escolher aquele lugar.
Conversamos por alguns minutos, ele parecia menos bonito pessoalmente, mas era um “gordinho simpático”, brincalhão, autoindulgente e inteligente. Quando chegaram os pratos ele pareceu surpreso por eu comer tão pouco e ter preferido a maravilhosa salada e ter aproveitado tão pouco do prato principal. Ele comia sem culpas. Eu não me lembro qual foi a última vez que não estive em alguma dieta ou que comi algo sem pensar nas calorias do prato. Contrariando as expectativas da maioria das pessoas tenho uma alimentação saudável, reeducação alimentar, rotina de alguns exercícios, níveis de colesterol regulados, nada de diabetes ou hipertensão arterial. É quase impensável, mas sou sim saudável.
Nunca fui magra, mas chegar a esse peso todo foi um processo construído e retroalimentado por algumas mágoas. Já estive bem pior. Cheguei a pesar quase 170 quilos. Estive envolvida com os caras errados e um em especial era totalmente toxico e vivia menosprezando o meu corpo e me traia descaradamente com qualquer mulher que passasse pela frente dele. Eu achava que merecia isso. E numa forma inconsciente de puni-lo eu encontrei na comida um refúgio. Pensava inconsequentemente: já que ele me faz isso vou ficar ainda pior pra ele aprender. Punia a ele e punia a mim. Eu sei. É bizarro, mas foi como aconteceu. Um dia acabou o que sequer devia ter começado. Sai pro trabalho e quando voltei ele tinha trocado as fechaduras da casa e deixado parte de minhas roupas em sacolas de supermercado na calçada, talvez pra um lixeiro pegar. Sofri, me reestruturei e nesse processo, como em todos, mais uma vez engordei.
Terminamos a noite num motel. Não tenho pudores de ir pra cama num primeiro encontro e por esse motivo tenho uma vida sexual relativamente regular. Não desperdiço oportunidades. Não sei quando terei outras. É isso. Nem sempre o sexo é de fato bom. Já fui pra cama com caras que não me despertavam nenhum desejo, mas eu me obrigava a ir pois não acho que tenho condições de escolher. Penso que deveria me sentir grata por qualquer homem olhar pra mim essa que é a verdade. Já disse que tenho problemas com autoestima, né? Também não sonho com um romance. O que tenho é o hoje e assim que vivo. Sem planejar, apenas existir. Só se morre uma vez, mas viver se vive todos os dias. Alguns dias bons, outros ruins.
Bom, esse é meu relato. Ao menos uma parte de minha história. Não é uma vida nem feia, nem bela, embora ache que você chegou até aqui e preferisse ler algo comovente, uma história de heroísmo e superação do quanto eu procurei terapia, emagreci , encontrei o verdadeiro amor por mim, etc. Lamento. A vida real nem sempre é assim. Na vida real há pessoas fracas, ingênuas, inseguras e que estão por aí, caminhando procurando algum propósito ou a felicidade Sou comum.
Nenhum exemplo a dar e essa é apenas a minha forma de ver o mundo. Não dito regras, não quero convence-lo de que todas as gordas sejam gordofóbicas como eu ou tenham experiências semelhantes as minhas. Talvez. Quem sabe? (FIM)
P.S: Não é intenção do autor formentar qualquer tipo de preconceito contra as pessoas gordas (gordofobia), mas trazer essa pauta para a reflexão e gerar empatia. O autor é homem e magro, atribui-se esse "lugar de fala" baseado em livros e pesquisas diversas sobre o tema.
Agradeço os comentários, críticas, elogios e eventuais compartilhamentos desse e de outros textos.