O trader
Cultivava um sonho sem fim a cada vez que entrava na cabine de sua nave espacial. Era assim que chamava aquele quarto. Uma nave porque em sendo um cubículo, todavia aconchegante, com uma cadeira gamer a mais confortável, uma mesa de madeira em L, três monitores, mouse e teclado com múltiplas fontes de luz em leds coloridos e dois PC's, dava-lhe a sensação de estar no controle da Mir espaço sideral adentro.
O espaço sideral adentro desfiladeiro abaixo! Eis o mercado financeiro destituído de elementos materiais de um cotidiano real. Um jogo. Carteado. Simulador. Drone controlado de uma cabine no sentido de bombardear crianças em um país do Oriente Médio.
O sonho que Ademir cultivava era aquele da estabilidade financeira sem realizar grandes esforços. "Sou inteligente! Tive uma educação tecnológica que meu pai não teve!" Bradava para si mesmo o jovem, enquanto comprava e vendia ações em uma tela, na medida que verificava as oscilações do mercado em outra.
Números. Gráficos. Comandos. Notícias. Um trabalho analítico mas de impulsos irracionais a cada compra e venda e a sensação de controle. Perspectivas de ganhos futuros tinha Ademir.
Contudo é um jogo. Pior: um imenso redemoinho que traz, lentamente, desavisados navios que estão distantes mas no raio de ação deste redemoinho. Os imensos navios nunca percebem que estão sendo tragados aos poucos.
Houve uma desvalorização que Ademir não esperava. Até ali, considerava-se um deus. Ou melhor, um trader. Um infalível e o mais esperto trader. Diante do assombro da perda substancial daquilo que chamava de patrimônio (ou seja, dígitos que estão por detrás de uma tela e que com as mãos não se pega) revisou tudo no sentido de verificar se não tinha sido um engano.
Não.
"Perde-se tudo. A vida é algo que se perde aos poucos, fugidia entre os dedos tal qual areia", leu certa vez seu professor de literatura ao qual Ademir não prestava atenção.
Ademir, o trader, em momento algum contemplou esta verdade.
Brusque, 27 de setembro de 2022.
CCM