CRIANÇAS VOADORAS
Já fui uma criança voadora e antes disso lembro-me de que as vezes o vento era bom. Ele me ajudava a brincar. Fazia o balão colorido ficar suspenso no ar, a pipa voar graciosamente no céu, as bolinhas de sabão flutuarem por alguns segundos antes de serem destruídas pela própria brisa e o cata-vento girar alegremente nas mãos. O vento sempre estava ali e como disse ele me ajudava, ao menos enquanto eu mantinha o controle.
Quem tinha o controle era eu. De mim vinha a decisão se queria ou não soltar pipa e o quanto de linha eu estava disposta a liberar. Eu quem decidia se queria soprar no canudo e formar novas bolhas de sabão ou mesmo se iria ou não segurar o cata-vento em minhas mãos. A brisa era leve Leve o suficiente para refrescar o calor de uma inocente manhã de brincadeiras. Leve ao ponto de eu não precisar me proteger. Leve e incapaz de me arrastar levando-me por caminhos que uma criança jamais deveria percorrer. Para mim, numa infância feliz, imaginava que só existia esse tipo de vento. Leve. Quando me tornei uma criança voadora descobri que havia outros: o redemoinho, o tornado e o furacão.
Com sutileza o vento pode mudar de intensidade e direção, sem, contudo, que uma criança perceba esses perigos. Surge assim uma rajada um pouco mais forte e inesperada, num local e momento específicos. De repente esse vento traiçoeiro abaixa os shorts do menino ou levanta a saia da menina; entrando por debaixo da blusa espalha seu ar gélido sobre a pele, tocando peitinhos e outras partes, fazendo calafrios e a ação congelar. A sensação do frio é sempre incomoda, pois acredito que por intuição sabemos intimamente que aquele caminho não deveria ser o do vento, mas também acreditamos que temos alguma culpa porque se ele entrou decerto não estávamos devidamente agasalhados, estávamos expostos, vulneráveis, distraídos e sem atinar que o vento é assim mesmo e é de sua natureza deixar de ser brisa e gradativamente passar a ser redemoinho. Assim, o que antes era brisa cresce em tamanho e intensidade numa escala destrutiva. Adquire formas podendo ser visto por uma criança como um furacão: grande e lento ou aos olhos de um adulto um tornado: menor e veloz. Por menor entenda-se discreto. Muitos adultos sequer percebem a mudança do vento.
Como furacão a força do vento já é capaz de fazer uma criança voar. Voo esse que assim como fez com a Dorothy em “O Magico de Oz” leva essa criança a viajar para um lugar que não lhe pertence. Terra estrangeira, ocupada por perigos. Infelizmente nem sempre esse voo é percebido. Se uma menina chega em casa e diz “mamãe o vento me levou e eu voei” pode ser desacreditada pelos pais. “Que vento, menina? Não vê que lá fora só tem sol? ” “Não há vento nenhum e não me invente mais essas histórias. Se um vento forte como esse passasse por aqui destruiria a nossa casa e ficaríamos sem lar”.
Há os pais que realmente acreditam no relato. “Sim, eu percebo que minha criança realmente voou. Ela voltou diferente, tem agora medo de qualquer ventinho e até não quer mais sair à rua. Essas mães podem sentir culpa por deixar suas crianças expostas ao tempo, temem que elas possam voltar a voar e em muitos casos prometem nunca mais deixa-las desprotegidas sem um agasalho bem pesado capaz de protege-las contra qualquer frio.
Já adulta sei que classificar as mães dessas crianças voadoras simplesmente como boas ou más é um caminho fácil, mas nada é tão simples. Há aquelas que procuram pelo furacão na intenção de fazer suas filhas voarem. São mães que talvez tenham sido levadas por suas próprias mães até o vento forte. Fazem do voo das suas crianças um ato mágico que garanta a elas algum sustento dá mesma forma que a mãe de uma acrobata pode preparar seus filhos para um espetáculo circense, passando para as gerações seguintes o seu legado.
Na vida das crianças voadoras existe o antes e o depois. E o depois não é motivo de orgulho para elas, como deve ser para uma criança acrobata. A violencia do voo deixa marcas e por isso as vezes contar pra alguém sobre o voo pode ser tão dificil quanto prender o vento. Outras vezes o silêncio sequer é uma opção, pois o vento marcando seu território e numa cruel ação do destino pode faze-las carregar "balões de ar" em seus ventres. numa irônica forma de preencher o vazio que elas carregam desde o voo. Eles a tornam mais pesadas. Há para as voadoras o peso de se carregar esse balão, mas também o da decisão de se livrar dele.
Enfim, o voo para uma criança voadora nunca é uma decisão dela. A culpa é sempre do vento. Só dele e de ninguém mais. O voo dessas crianças tem sempre consequências. São voos arriscados. Nunca é fácil. Nunca é divertido. Nunca deveria ser encorajado. E o vento deveria sempre ser reprimido, desviado e não negligenciado.
Infelizmente sei que o voo não é exclusividade das crianças. Muitas pessoas adultas ainda são levadas pelo vento. Essas podem tentar lutar contra a força do vento ou não. A passividade nesse caso é controle de danos, medo da queda durante o voo e
não a aceitação de que voar é bom. Nunca é. Como alguém que já foi uma criança voadora sei que o voo não é para as pessoas. Nosso lugar é no chão e o vento forte deve ser mantido sempre que possível longe de todas nós.
P.S: Esse texto é uma metáfora a exploração sexual infantil.