O DISCÍPULO

Ao J.P.M.P.

Um golpe de garra gigantesca atirou o rapaz para longe, fazendo-o deslizar sobre o gelo.Uma dor pungente no peito deixou-o sem respirar.Sabia que, a menos que se produzisse um milagre, ia morrer.Num salto, o urso estava em cima dele (…).

Com ligeira surpresa, viu um homem emergir por trás da frenética massa de pêlo branco e cinzento.O rapaz reconheceu-o; conhecia-o havia muito, muito tempo.Com um andar descompassado, o homem avançou pela neve em direcção ao rapaz.

- Vem, filho – disse-lhe – Dá-me a tua mão.

Estendeu a mão ao rapaz, contudo, por mais que tentassem alcançar-se,os dedos de ambos não se tocaram.

Kitty Sewell in Armadilha

Ele pensou com os seus botões: “Vou voltar atrás quarenta anos.Não posso perder esta oportunidade”.

Despediu-se do cônjuge.A mulher ainda lhe perguntou:

-Levas as chaves?Até logo.

Aspirou o bafo quente da rua.O magnífico fim de tarde daquele Verão quase tórrido.África na imaginação.Rodrigo chamou o táxi, percorreu a cidade a fenecer,mesmo no fim da hora de ponta.

- O restaurante fica na rua do Colégio Moderno.Talvez seja melhor darmos a volta pelo desvio da Cidade Universitária – alvitrou.

- Tem mesmo que ser - ripostou o chauffer.

Chegaram.

“É agora!”

O restaurante estava deserto ainda.Talvez tivesse acabado de abrir as portas para o jantar.Havia um homem, sentado de costas, curvado sobre uma mesa.Mais nenhum cliente.

“Não deve ser aquele”

- Estou à espera de uma pessoa.E resolveu não acrescentar “uma pessoa que não vejo há quarenta anos”.Posso ir bebendo um porto seco na esplanada?

Uma voz soou mesmo por trás de si, a do tal homem que estava sentado de costas:

- Professor, sou eu.Francisco.

Ele olhou aquele homem de cinquenta anos e procurou descobrir o adolescente de outrora mas não conseguiu divisar nada.

Sorriu, estendeu-lhe a mão.

- Isto é quase um blind date, Francisco.

- O professor está na mesma. Praticamente

-Eu?Impossível! – e soltou uma risada.

- Bem, vamos sentar-nos.

Os dois homens sentaram-se a uma mesa no fundo e estudaram contrafeitos os semblantes um do outro.

- Escolhi aqui por uma conjugação: a faculdade onde o senhor se formou e o Caleidoscópio.

- O cinema?Já não existe!

- Mas existe na minha memória. E no filme que viemos ver consigo.”A guerra do fogo”.Jean Jacques Annaud.Inesquecível.

- Confesso que já não me lembrava.

- Quando estávamos a dar a Pré-História.

- Para apimentar o retrato com a cena do canibalismo?

Francisco sorriu:

- Talvez.

Rodrigo avaliou por alto todo o processo.Seria possível ter plantado na cabeça daquele homem então um adolescente, uma estrela, um sonho, um traço de experiência agradável e gratificante?”Eu era tão inexperiente”

- Estava no início da minha carreira docente.

- Mas fez a diferença.

Ele não se reconheceu na personagem,Os anos tinham corrido.Encolhera os ombros quando finalmente ouviu nos meios de comunicação social que começava a haver uma falta dramática de professores.O Ministro da Educação confirmara.

Quem é que queria aturar aquilo?Ser desvalorizado pela sociedade e quase vilipendiado pelo sistema, insultado por alguns pais pouco educados e formados administrativamente, trinta por cento (dizia-se) do universo dos encarregados de educação, dizia-se, pensavam que pagar uma mensalidade no Privado, comprava automaticamente uma média elevada aos filhos e lhes garantia o famigerado acesso à Universidade dos mestrados de Bolonha.

- Saí há dois anos dessa confusão.

Saira também das invejas que ainda hoje se faziam sentir entre pares igualmente apostados em sobressair à custa de intrigas, traições, jogos e constituição de grupinhos inimigos.A mediocridade incentivada.Aliás,por todo o lado.

- E não guardo saudades.A não ser talvez de alguns momentos… como este, por exemplo.

- Trouxe o seu livro de contos para autografar.- e Francisco estendeu-lhe o livro. Mandei vir da Editora.Demorei duas horas a lê-lo.Achei a leitura super interessante.

- É um prazer.Sinto-me quase…quase importante.Bendito Facebook que permitiu o nosso reencontro – e tirou a caneta do saco que ultimamente trazia sempre a tiracolo.

- Mas Francisco, conte-me tudo.O que se passou consigo desde aquele tempo?

- Primeiro,vamos encomendar.A ementa, por favor, senhor.

Francisco tinha crescido, não tivera paciência para estudar.Dedicara-se ao desporto e à música.Tivera uma série de empregos.E finalmente, estabilizara.Casara-se.Tivera um filho, o seu orgulho, agora com dezoito anos.Um atleta promissor.

A História, a outra que saltava dos compêndios e se desabria, seguira o seu curso implacavelmente.Com retrocessos,avanços, novos crimes nos cardápios, catástrofres, desgraças, revoluções.Hegel talvez no meio de tudo isso.A tese, a antítese e a síntese.A vida.

E o velho Colégio decaíra, quase falira, reerguera-se e requalificara-se à custa do novo Capital investido e de uma Gestão eficiente e dura, obediente à sigla “o cliente primeiro”É afinal ele quem paga.

Mas Rodrigo não tinha dúvidas que tinha à sua frente um Homem decente.Capaz de um dos sentimentos mais nobres, o da gratidão.Gostaria até de ter um grande Amigo assim.Mas o outro não.Para o outro, ele era e devia manter-se no papel que toda a vida ele guardara dentro de si, o jovem professor de História com um certo ar inspirador.

Sairam para rua a conversar como se fizessem isso desde sempre.Fumaram um cigarro na noite escura.

Na hora da despedida, Rodrigo endireitou-se, vestiu a personagem e estendeu-lhe a mão:

- Foi uma noite muito agradável, Francisco.Muito Obrigado.

Francisco esboçou um sorriso,encolheu os ombros e disse:

-Gostei muito.

E abraçou o ex professor.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 23/09/2022
Código do texto: T7612886
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