Navegar
Entre pessoas desesperançosas, paro e penso em tudo aquilo que ainda pulsa em mim, e em todos os que me rodeiam nesse espaço isento de um jardim florido.
Não há visão de leveza, ainda que todas as paredes que me cercam sejam muito brancas.
As luzes que se me apresentam, não iluminam: cegam.Porque não são como a luz do sol ou de um poema muito íntimo, são lâmpadas fracas que foram produzidas por mãos humanas: luz falsa.Que se acendem por todo o corredor durante dias e noites, para nos dar a ilusão de que não estamos sós.
Passo dias a fio sentada nessa cama que causa desconforto, porque tenho sempre a mesma visão de cima dela: uma outra cama vazia, um criado mudo e a porta...Que me permite ver um pouco da rotina triste de pessoas também tristes.De pais segurando as mãos das crianças com seus possíveis óbitos.Com seus possíveis fins já previstos, com todo o sofrimento programado.Os velhos que se demoram a sair da vista da porta, com seus passos curtos, e olhares turvos, passando as mãos devagar pelas feridas mornas que ainda nem se permitiram cicatrizar.E pelas vitrines claras, flores que não puderam desabrochar...
Chego a gemer uma dor surda quando penso nas crianças brincando no parque lá embaixo, e eu não as posso ver.
Sinto falta do ar da rua, e da poesia que anda esculpida no rosto das pessoas.
Reclino meu corpo frágil para fora deste quarto, e através da janela estreita tento beber ainda uma brisa suave.E penso como teria sido a minha vida se eu não tivesse escolhido divagar: infeliz, eu diria.Vazia.
Todos os dias me seriam fardos, como agora.Porque tudo sobra e se perde.
Então suponho que fui valente, porque não tirei um único tijolo para espiar a paisagem lá fora, saí arrebentando os muros em volta de mim.E corri de peito aberto respirando aquele campo florido, pisando às poças e sujando o rosto com a tinta nobre que as borboletas deixavam pelo ar.
Nunca me arrependi por ter explorado os mil mundos dentro de mim, ter vivido com paixão, ter escolhido navegar...Ter interrompido essa vida experimental aqui de fora e me posto na profundidade densa que meus sonhos me lançavam.
Quem bom nunca ter desistido de mim.
Esse aparelho colado à minha pele, com fios espalhados pelo corpo, possui tantas luzes pequenas...E elas começam a piscar, sem interrupções.Pela primeira vez, começou a emitir esse som, que me dá uma sensação de surdez...Contínuos sons.
Sinto que preciso sair para ver o sol.
...
Já chegou o enfermeiro com piedade nos olhos.
Penso que não tenho mais tempo.
Penso que já não existo mais.
Mas tenho uma certeza pulsando ainda: de que estarei aqui novamente, porque a poesia e a luz são eternas nos meus olhos agora.
(TALITA FERNANDA SEREIA)