“A AMIGA DA HORAS MÁS”

I

Quando a “amiga” apareceu para Laura pela primeira vez, ela tinha seis anos…Andava na rua, de mãos dadas com seus “irmãos de creche” mais velhos…Que já tinham perdido as esperanças relacionadas à adoção. No orfanato onde morava, Laura possuía uma grande família de 40 crianças, mas os bebezinhos não duravam muito tempo, eram adotados rapidamente. Laura estava triste, pensando num desses “irmãos da creche” que fora adotado e parou também de telefonar.

 

– Você vai ficar assim o tempo todo?

– Quem é você?

– Uma amiga, ué.

– Seu rosto não me é estranho… VOCÊ É MINHA MÃE?

– Não seja idiota; se eu fosse sua mãe, te carregava agora e te levava pra longe daqui… Já falei, deixa de bobagem. Sou sua AMIGA.

– A mais bonita e bem-vestida que já tive. – A mulher vestia um sobretudo marrom e botas de cano longo. Tinha o cabelo preso num coque pra trás… um lápis no olho que faria dela uma japonesa ou egípcia se não tivesse enormes e quase redondos olhos castanho claros. Seu sorriso era enorme em dentes brancos e perfeitos. A bota de cano longo com um salto fino transformavam-na (para Laura) na mulher mais bonita do mundo inteiro.

 

– Tá falando sozinha Lauraaaaa?! – Gritou um menino enquanto passava correndo às gargalhadas, numa brincadeira de pega-pega que: aparentemente, ele brincava sozinho. Correndo sobre gritos de “NÃO CORRA PELA CASA!!”, “MENINO NÃO CORRA!!!!”; vindos de alguma cuidadora lá dentro. – Laura olhou pro lado, a mulher tinha desaparecido. Laura desceu o olhar para o chão, assustada e pôs-se a esfregar os olhos como quem tem areia nos olhos. – Novamente voltou o olhar… e sua amiga estava ali outra vez ao seu lado.

 

– Você é um fantasma?!

– Não.

 

II

Laura agora estava com dezesseis… subindo as escadas da Estação da Lapa. Era um daqueles dias em que tantas coisas acontecem num mesmo dia e nenhuma delas é boa. Uma nota em química, fazendo a ideia de terminar o ano sem fazer recuperação, um sonho distante… Ela queria começar um estágio do curo técnico que já fazia junto com a escola, desde o ano passado. O ex-namorado d’um namoro recém-terminado, que já desfilava nos corredores do colégio, morrendo de amores por sua namorada nova, entre beijos e beijos, e beijos e mais beijos… E sempre mais um “irmão de creche” que partia… Era um assunto que Laura pensou que quando chegasse aos dezesseis, já teria aprendido a suportar. Agora havia mais do que isso… Encontrou dois de seus queridíssimos ex-irmãos mais velhos, vendendo “certas coisinhas” na porta da escola. E também andando armados, tornando-se gradativamente… aquele tipo de humano ameaçador de que tanto se comentava na creche. A coordenação os bombardeava com programas e palestras e sempre diziam que “pessoas assim” deviam ser evitados. “Talvez eles tenham razão. Mas… eu cresci com eles!”.

 

– Você anda pensando em coisas demais, amiguinha…

– Você nunca mais apareceu… Pelo menos uma coisa boa de eu ter tantos problemas. Só assim pra você aparecer…

– Bah! Você não me escuta, mesmo, ué…! Não faz nada que eu mando você fazer.

– Você queria que eu tocasse fogo no orfanato!! Sua louca. E quando eu tinha dez anos e

conseguia dormir direito… Lembra do que você falou???

– …Pra tu SUFOCAR todos os bebês do orfanato com uma toalha molhada… Lembro sim, minha memória é ÓTIMA.

– Você é DOIDA.

– Sou… mas sou sua amiga, e no entanto… você sentiu minha falta.

– Das horas más…A amiga das horas MÁS…

– Não vou me sentir ofendida, considerando sua idade e todos os… “hormônios” que estão fermentando aí dentro. Ainda mais que: cê levou um BAITA DUM FORA, HEIN?! Não sei nem como consegue entrar na escola pelo portão principal…ou… sem um saco de pão na cabeça.

– Odeio você!!

– Com dois furinhos nos olhos, pra não cair…

– Eu MEREÇO, isso? Meu Deus…?!

– Ah, para de drama, Laurinha. Por quê não me escuta SÓ dessa vez?

– O que você quer que eu faça?

– Você podia dar uma baita surra…

– Tsc. cala a boca.

– Você podia comprar uma baseadinho com seus irmãos vendedor…

– CRISTOOO…!! VOCÊ É MESMO UMA INÚTIL. Fica calada, é melhor.

 

Laura não percebia o tanto de gente que passava por ela e viam uma menina de farda de escola e mochila, conversando, gritando sozinha, gesticulando com os braços e pedindo para “o que quer que ela estivesse vendo e escutando”, ao seu lado… que parasse de falar.

 

III

– Ele vem? – Laura perguntou a enfermeira

– Seu acompanhante ainda não chegou, teremos que fazer o parto já já, tá bom?

“Pelo menos eu tive dinheiro pra pagar essa maternidade”, pensou. Laura (sempre) fazia um esforço grande para não chorar. Pois sabia que tinha aquela “coisa” de começar e não parar mais. Além de tudo era uma mulher forte, que basicamente enfrentou todos os problemas da vida sozinha. E agora mais esse. (…)

Assim que o bebê nasceu, tiraram-lhe dos seus braços. Ela tinha vinte e cinco anos, tinha acabado de se formar, e pelo ar da carruagem… vendo que aquele ZÉ RUELA acabou nem vindo pro hospital com ela. Lhe pareceu ser uma ótima escolha dar seu filho prum casal de gays queriam aquele bebê com tamanha intensidade, que ela se perguntou se um dia teria outro filho, e se o amaria com tanta força.

– Quer ir olhar o bebê? – Perguntou a enfermeira.

– De jeito nenhum. Quero dar o fora daqui o mais rápido possível. – Não podia, tinha que passar a noite… “oh, Deus…”.

Quando as luzes se apagaram, Laura se levantou e foi em passos curtinhos e arrastados até o espelho do banheiro. Ficou ali se encarando por algum tempo… e choro acabou chegando também.

 

– E aí, quer tocar fogo no hospital? Quer sequestrar uns bebês? Quer acabar com a raça desse teu namoradinho… espero que você tenha tido a decência de transformá-lo em EX-namoradinho.

– Ah não brinca assim comigo hoje, só hoje… hoje não…

– Por quê?

– Porque hoje eu vou querer te escutar.

– Laura, você está virando uma mulher forte e maravilhosa. Sua hora há de chegar, tenha mais paciência ok?

 

Após um olhar de surpresa diante da frase realmente dita “apenas” lhe animar. Laura voltou a chorar. Sua amiga das horas más, ficou em pé ao seu lado, calada.

No outro dia Laura estava de volta ao seu apartamento… Vazio. Do jeito que ela sempre sonhara: No Rio Vermelho, pertinho do acarajé (Laura AMAVA acarajé), alugado com o dinheiro suado da técnica de Design gráfico e agora primeiro semestre em engenharia. Olhou em volta, fechou os olhos e imaginou CADA UMA de todas as crianças, todos os seus “irmão provisórios” do orfanato. Imaginou eles ainda pequenos, e somente ela de adulta, de forma que ela poderia amar e cuidar de todos, cada um.

 

– Onde estarão…?

 

IV

Laura saltou do carro, era seu aniversário de 30 nos… garoava um pouco, mas a noite estava agradável. Ia prum lugar pra lá de chique com o pessoal do trabalho. Era uma grande empresa de construção civil, então… Sempre tinham algum motivo pra comemorar o mundo de dinheiro que não parava de entrar. Laura estava exausta, no fundo ainda se sentia completamente sozinha… Mas sabia reconhecer os seus méritos. De uma quartinho de orfanato onde ela dividia um quarto cheio de beliches com mais umas oito crianças, para … isso…

– Ah quem você pensa que engana amiga, essa pompa toda… Não é bem a sua definição do que é “diversão”, não é mesmo?

– Você por aqui? Oxe! Nem triste eu estou!

– Abri uma exceção.

– Olha, gata… eu te amo, você foi pra mim um grande amigo, uma mãe, irmã, teria sido, mas… Não é sadio eu ficar tendo essas ilusões sabe? Procurarei um médico no início desta semana.

– Tudo bem mas… eu fico impressionada de você agora não perceber. Quando era pequeninha e mocinha eu até que entendia a falta de atenção…

– Como assim?! Entender o que?

– Saia do carro e entre no restaurante… Diga que precisa ir no banheiro rapidinho, e eu te mostro o que você nunca entendeu…

 

Laura fez o que ela pediu. Muito discretamente foi até o banheiro que estava vazio. Sua amiga das horas más já estava lá, vestindo aquela sua mesma roupa de sempre.

 

– Então, o que foi…?

– Nossa como você é desatenta… como é que anda sozinha na rua sem te enfiarem dentro duma vã?

– VAIII!!

– Calma… – Então a mulher começou a tirar a maquiagem bem rapidinho.

– EII!! Seu corpo está … está…

– Apagando eu sei…, minutinho, mais um pouco… segundinho… AGORA. Chega aqui junto de mim Laura, olha pra mim, no espelho… Quem sou eu?

– Você… meu Deus….

– Ué, valentona, fala…

 

– Você sou EU…!! – E então a amiga das horas más, que acompanhava Laura em seus momentos mais tristes, desde os seis anos de idade; Desta vez foi embora pra sempre…

 

Laura olhou em volta sozinha viu um sobretudo “deixado”, caído no cão. E ela estava de bota de cano longo? E aquela maquiagem toda que ela fazia? O cabelo pra cima? Era… Era eu??? Quer dizer… DÁ PRA FAZER AQUILO EM MIM??

 

Minutos depois Laura saiu do banheiro, sendo a mulher mais linda, maravilhosa e charmosa do restaurante. Com um maquiagem de gueixa, o cabelo num coque pro alto, um sobre tudo que Deus sabe e ONDE ela tirou! E veio linda, desfilando, todos e todas acompanhavam-na com os olhos e muitas vezes com comentários. Antes de sentar com os colegas, um pensamento veio em sua cabeça, falando sozinha…

 

– Muito obrigado por ter ficado comigo. Nossa… vou sentir muito a sua falta…

– quer dizer… eu vou?!

 

 

 

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 15/09/2022
Reeditado em 15/09/2022
Código do texto: T7606060
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