Viver é uma surpresa diária
Já nem mesmo sei se meu coração se partiu foi quando você não leu a faixa onde eu te pedi em casamento, num domingo de FlaXFlu em pleno Maracanã, porque foi assistir ao jogo do River Plate, ou se quando você veio me dizer faceira que na copa ia torcer pela Argentina e suada de dançar tango em outros braços, me pedindo tolerância. E eu ali perdida e dando vexame, vestida de rubro negro, com o coração menor que as unhas que eu voltei a roer...
Não adiantou nem mesmo mandar minha carta reclamando que você quis me dar de presente pra outras tantas, porque escrevi pra CBN e você agora que quer morar em outro país latino, só ouve radios paraguaias e venezuelanas. Enquanto isso, eu tomo prozac pensando que remédio é o que é bom pra tosse, olhando num retrato já amarelado o meu sorriso patético de felicidade, tirado num quintal doce, depois de passar a noite fazendo serenata com aquele concerto para uma só voz. Nem percebi o quanto isso era piegas ou até mesmo idiota da minha parte.
Depois de te ver saindo de dentro da Baía de Todos os Santos, com o corpo molhado de suor latinoamericano, eu segui os conselhos do diabo de olho verde e com a alma esfrangalhada, rasguei todas as páginas do meu livro de cabeceira e fui pra a Praça Castro Alves, pra ter certeza que o carnaval acabou. Cantei sozinha, bebi o vinho barato que tinha comprado pra comemorar com você aquele pedido que a torcida inteira do flamengo leu, menos você e atirei por trás da mão do poeta as alianças banhadas a choro. Voltei pela praça vazia antes mesmo do sol se por, já sabendo que assistiria tv sozinha às segundas.
Desisti ali de todos os vexames de amor que guardei pra grafitar em seu muro e bebi vinagre, como quem bebe vinho do porto. Nem sei quantos maços de cigarro eu afoguei em baldes de gouache. Não sei quantas mãos eu quis pegar pra dançar forró, porque não sei dançar tango e nem falo castellano, então também não pude saber se foi bonito o seu adeus, dizendo que não mais te convém pousar em minha casa, e prefere um frio seco, meias e casacos, e vai se aquecendo em outros braços.
E eu, tola, um dia achei que você queria ser minha namorada e mesmo acreditei que até me pediu pra andar contigo de mãos dadas pelo mundo, sendo seu refúgio, seu remanso, sua estrela, mas a verdade é que eu não consegui me apossar do deserto que se tornou seu peito. Mais idiota que isso, foi cantar "Ne me quitte pas", enquanto me guardava pra quando o carnaval chegar e então chegou a quarta, a quinta, a sexta e todo o resto do ano de cinzas e minha asa delta já não era tão atraente quanto os aviões de caça que passeavam lépidos pela tua pista. E você de mãos dadas com tantas outras na avenida Paulista, enquanto eu de pijama, penduro meu brevê e volto pro hangar pra um re-pouso solitário e sem ninguém que leia histórias pra que eu durma sonhando que o mundo não tem fronteiras.
...e secaram os mil buquês de gérberas, margaridas e angélicas que fiz pra ti, envergonhados diante de tantas orquídeas que ganhaste enquanto ignorava aquele mapa astral inteiro, se apegando às oposições e quadraturas pra ter certeza plena de que uma vida ao meu lado não seria um mar de rosas. Varri tudo pra debaixo do tapete e manchei aqueles lençóis brancos com minhas lamúrias e com todos os cafés da manhã que te fiz pra te acordar diariamente desejando que teu dia adentrasse sonhando, mesmo que tal café só estivesse quente na minha lembrança.
Ontem recebi resignada a ordem de despejo da casa que fiz, e que existia mais no sorriso que eu passava o dia tentando riscar com meu batom em seus lábios, que em qualquer outro cômodo daquele corpo, que pra mim mais parecia um palácio e por isso mesmo e por sua atitude tão hospitaleira - e já que a casa era sua - eu não achei que seria nada demais dividir com outras visitas, desde que essas tantas não ocupassem e residissem como eu tive a intenção de fazer, mesmo sem ter coragem o suficiente pra dizer isso assim com todas as letras, me lembrando que no contrato de aluguel que você me fez assinar tinha uma cláusula proibitiva que eu passei meses estudando pra derrubar sem sucesso, enquanto eu tentava eternizar uns dias a la woodstock.
A dor que eu sinto é na raiz dos meus cabelos, mas já invadiu toda a paisagem, se pendurou nas cortinas do meu quarto e está fincada em minha garganta, como um nó que eu não consigo desatar. E não me cai uma lágrima sequer, enquanto minha voz arde sob essa sombra que paira monstruosa sobre o meu dia, que vira noite enquanto eu nem sei mais por onde anda o calendário. Já não me resta uma esperança de que os ventos mudem e que o carnaval que eu passei dias esperando recomece e então sigo assoviando "meu coração, não sei porque..." em ritmo de reggae, pensando que talvez tudo isso seja castigo, porque eu não subi as escadas da Penha já que você não queria rezar e então enquanto eu ajoelhava, você sucumbia às outras tentações que enfim lhe pareceram mais atraentes.
Por fim, vou deixar de querer e apenas ser... tudo me parece involuntário e muito é quase inconfessável de tão ridículo... teria sido melhor sair de cena enquanto ainda havia motivos pra aplausos... das vontades que eu tenho agora, penso que posso alcançar e tento. Mas sempre encontro uma barreira que me impede de alcançar o que meus olhos queriam (vi)ver... Resta ao corpo cansado a areia da ampulheta, que não cessa de cair, como a lagrimar os últimos dias.
Não mande telegramas e nem precisa responder àquelas cartas que cheguei a te escrever. Não ligue pra mim, nem mande e-mail, ou mesmo um sinal de fumaça. Não tenho mais vontade de nada disso. Prefiro ficar aqui com a minha melhor cara de paisagem, enquanto penduro em meu quarto uma réplica do Nascimento da Vênus de Boticceli pra cada vez que eu olhar a parede, saber que findou o prazo de validade mas também pra que o que é belo disso tudo se eternize nas minhas retinas...
Viver é uma surpresa diária…