A mula de Dom Pedro
Oh, quão fogoso aquele alazão sobe a colina à margem do riacho e assim o seu tão majestoso cavaleiro de sabre na mão, que aos brados anuncia a novel nação. Absoluta permanece a imagem de memória poluta. Mas, por veracidade, murmurava o valente com as vísceras doentes quase ao cair da tarde entre seus pajens seguidores lambedores imprevidentes. Olhem bem, é dom Pedro, o libertador, com as calças arriadas aliviando as entranhas, que a coisa ia mal parada lá pelas nobres tripas. Há quem insista nesta versão sub-reptícia, nem alazão nem sabre, dom Pedro subia a serra nas ancas de uma mula baia, benzida para as agruras do rude caminho agreste. A buchada requentava, ardia em febre, tremia. O mal corroía. De quando em quando dom Pedro se esvaia, nem em pé mais se havia. No lombo da triste besta em pontadas pontiagudas se contraia retorcido.
Chegou então o chasque impingido de urgência premência exigências a exigir premir urgir uma postura pungente, eis que o império exigia do príncipe a volta para as terras de d. Maria, vovó que o bendizia. Vinha junto o recado de sua excelsa consorte, a quem sempre ouvia – resista, faça seu norte, aposta na sorte aqui nesta terra doentia –. Mas a cólica insistia, em meio ao grito de liberdade, o ventre dobrava e se contorcia. Independência ou... morte. Teve gente, por ali, que nem ouviu, de tão espremido que saiu, o grito que nos redimiu.
E a mula que a tudo assistia, no seu instinto muar, sem um relincho, sem mesmo o focinho levantar, com outras cores foi colorida, de espécie e pelo transmudados – oh que belo alazão dom Pedro com gáudio e realeza cavalgava, enquanto os bofes da história, serra acima espalhava, sedimentando o destino da nação. Vai mulinha sugando o ar da serra do mar, na história não há lugar para este triste e melancólico muar. Vai mulinha sobranceira pela serra do mar, alheia a quem vai a carregar, grassando sua nobre catinga pelo ar. Mulinha de carga, da anca larga, sobe o sopé mancando dum pé, mas sustenta o rumo, segura o prumo, na linha da via pisando buraco granito cavaco, na estrada medonha, e sempre a subir. Na garupa dom Pedro, o que virou imperador, e agora é régia, é real, a intestina dor.
A mula, ou o imperador, empacou em Cubatão. Foi a providência, quem sabe, ali numa perdida estalagem, dom Pedro bebeu chá de goiabeira, da folha novinha verdinha fresquinha, infusão que lhe deu sobrevida, bateu-se então a continuar. Dizem que foi a cavalgadura que conhecia o lugar, a mula era bem vista, benvinda, naquela alcova e quem no seu dorso acudia merecia todo conforto. A dona que fez a beberagem tranca-bosta, Maria do Couto, a de lábios carnudos e cútis trigueira, teria vínculos com a mulinha, que para ali conduzia viventes que convalesciam. Teria sido assim, enfim, que principiou a nossa pátria.