Meu melhor aluno!
Naquela tarde, saí de casa para mais um dia de trabalho na escola. Era uma tarde igual as outras, nada de especial na rotina de uma professora de ensino básico.
A sala de sexto ano era enlouquecedoramente barulhenta logo a seguir ao intervalo. Aprendemos a viver nesse caos e a gostar de seus causadores. Entrei na sala e lá estava uma grande confusão montada, um aluno tinha a boca machucada e os demais discutiam com o seu agressor, era mais uma cena nada fora do normal se não fosse por um dos protagonistas.
Eduardo era um menino bom, calmo, estudioso, escrevia muito bem. O tipo de aluno que não dá trabalho e, por isso, não nos preocupamos muito com ele. Foi esse o nosso grande erro! O Eduardo havia batido em um colega e estava ameaçando os outros com uma soqueira. Não era invulgar encontrar algum tipo de arma naquela escola, devido à sua localização, uma comunidade esquecida pelo governo e governada pela criminalidade. Estranho foi ver o Eduardo na posição de agressor. Tentei entender o que se passava, mas não consegui uma resposta do menino, somente percebi um olhar frio, a mudez de quem não se importa mais com as palavras nem com que as diz e aquele riso medonho no rosto dele, o riso de satisfação ao ver o que fez ao colega. Não reconhecia mais aquele menino, aquele não era mais o mesmo Eduardo!
Perguntei-me quando foi que ele mudou? O que o fez mudar assim? Como foi que a escola da rua ensinou mais aquele menino do que nós? Não achei respostas às minhas perguntas e senti culpa!
Eduardo que antes era um menino meigo, calmo e estudioso passou a ser temido, ninguém o confrontava, nem mesmo a direção da escola. Havia uma hierarquia paralela, onde ele representava o poder paralelo dentro da escola. Ele cumpria as regras da escola e a escola cumpria as regras que ele impunha. Assim nós convivíamos na paz criada pelo medo da guerra social,criada e fomentada pela inércia do Estado.
Mas chegou o dia em que eu deveria deixar a escola. De certa forma, foi para mim um alívio. Tinha um novo e melhor emprego, mas não deixava de pensar naquelas crianças, afinal, eram crianças e não mereciam viver naquela guerra velada. Meu único poder era plantar sonhos e esperança nos seus corações; dizer a elas que tudo o que elas sonhassem de bom era possível.
Em meu último dia de aula pedi a eles que escrevessem sobre seus desejos e sonhos. Li todas as redações e escrevi uma mensagem para cada um deles. Mas a maior mensagem foi para mim, diria mais - ensinamento. Dentre as redações estava a do Eduardo! Naquela altura, ele já não fazia os deveres nem era cobrado por eles e eu também não lembrava mais do quão bom escritor ele era. Que prazer foi ler a redação dele… Havia sonhos, esperança, desejos bons… Era o meu aluno Eduardo outra vez! Escrevi para ele, para o meu melhor aluno.
Entreguei as redações e todos leram as suas mensagens satisfeitos, menos Eduardo. Ele não quis ao menos pegar o texto, não queria ler o que estava escrito lá. Eu vi que ele se recusava a pegar a redação, mas não insisti; entendi o que se passava, ele não queria ler mais uma coisa má a seu respeito, ele já sabia tudo o que precisava saber de ruim sobre ele mesmo. Um colega que insistia para que ele pegasse a redação, pediu-me para ler a mensagem para ele, deixei que o fizesse. Quando o colega começou a ler, pude ver uma cena que me pareceu o desfecho de uma magia maligna, a feição carrancuda e má deu lugar a um rosto terno e emocionado de um menino que não tinha mais do que doze anos de idade. Alí estava o Eduardo, como se estivesse preso dentro de outro ser e agora veio à tona, pelo menos naquele momento. Era como se ele voltasse a lembrar de si mesmo, do menino bom, calmo, estudioso que escrevia muito bem e que se permitia sonhar.
Depois desse dia, nunca mais soube do Eduardo, mas aquela cena e o olhar emocionado dele nunca mais esqueci. Dessa vez foi ele que me ensinou a ter esperança.