O vigilante do Huambo
Ele usava um colecte reflector, por dentro, uma t-shirt cinza, pensei logo que pertencia à uma renomada empresa aqui no Huambo, escrutinava as pessoas que visitavam o lugar, como se de um vigilante se tratasse, por um instante, virou-se para nós (eu e o Valentim) e manteve-se inerte. Pronto, se calhar é outro fiscal a querer indagar-nos se tínhamos autorização de ali estar, pensei.
Veio ter comigo horas depois, quando eu estava sozinho. Aproximou-se um pouco à bancada e tentou soletrar um dos títulos: — A vida, a vida assombrada...
— A vila assombrada pelos makixi — auxiliei-o. — Podes chegar mais perto para melhor enxergares.
Ele abriu um largo sorriso, aquele que embeleza o rosto e fica preso nos olhos.
— Desculpa. Boa tarde!
— Boa tarde, sim. E, fica à vontade, podes abrir o livro e espreitar o sumário.
O jovem tinha entre 27 a 32 anos, já vivido, mas ali de perto consegui fazer melhor a releitura. Não aparentava pertencer a uma empresa, olhando para as suas vestes, para os enrolados na cabeça, pelo rosto demasiado esbranquiçado, parecia um sem abrigo. Aproximou-se, conforme recomendação, abriu o livro que mais lhe despertou atenção, vislumbrou a parte da biografia, comparou a foto com o meu rosto, conferiu o rollup e soltou outro leve sorriso. Acho que ficou surpreso por se tratar realmente do autor da obra.
— Eu gosto muito de ler, escritor Lucas Cassule — disse, depois de alguns segundos.
— Gostas?
— Sim, na minha casa tem vários livros. Livros são os que lá não faltam. Gosto mesmo muito de ler.
— Muito bem, gosto de saber que há mais pessoas a ler aqui no Huambo. E qual é o teu nome, amigo?
— Ângelo. Mas, também me chamam de Angelino.
— Muito bem, pronto, o meu nome já sabes. O que gostas de ler?
— Olha, eu gosto de livros tipo este — sacudiu o livro assombrado que tinha nas mãos — gosto de livros que falam de demónios, anjos e demónios.
— Bastante curioso, mas porquê?
— Acho interessante entender os dois lados.
— E já leste um livro assim?
— Já, do Bispo Macedo — anunciou o título, mas não percebi muito bem nem pedi que o repetisse.
— E já leste algum livro de autor angolano?
— Sim. Alguns, como Amaro Hombo.
— Asas para a vida?
— Sim, este mesmo.
— Muito bem. E o livro negro?
— Este já ouvi falar.
— Conheces o autor?
— Não. Olha, escritor Cassule, sinceramente não dou muita atenção aos nomes dos autores. Boa parte dos livros lembro-me apenas do tema e do conteúdo.
— Entendo. O livro negro chama-se "Coisas que não se dizem", é da autoria do Professor Elavoko. Fala-se muito bem deste livro, recomendo.
— O senhor tem aí?
— Não, infelizmente.
Voltou a folhear algumas páginas até ao sumário.
— Duelo mortal? — leu em voz alta — este livro deve ter muita acção yah, gostei!
— Tem um pouco de tudo. Um pouco de horror, lendas e a descrição da vida dos angolanos antes das grandes cidades.
— Eu também comecei a rabiscar alguma coisa há um ano. Penso que daqui a cinco anos termino. Vamos ver no que vai dar.
— É preciso dedicação, paciência e bastante leitura, principalmente os livros de escritores já maduros, estes ensinam a construção dos textos. Vais conseguir.
Angelino voltou a sorrir. Pousou o livro, olhou para os lados como se voltasse à vigilância.
— Então, Ângelo, o que fazes?
A reacção dele foi inesperada, como se se sentisse ofendido com a pergunta. Fiquei com um pouco de receio.
— Como assim o que faço? Aqui agora ou te referes na vida?
— Sim, na vida, no dia a dia. Tem alguma profissão?
Ele voltou a pegar um livro, desta vez o Afroerotismo em contos, sussurrou o título e depositou-o sobre a mesa, fitou-me cruelmente e vi, os seus olhos estavam mudados. Fiz uma pergunta deselegante? Na verdade, eu o estudava enquanto falávamos, as suas respostas, os seus movimentos guardavam alguma coisa por trás, mesmo no sorriso aberto havia sofrimento, dor, desgaste.
— Bom, eu trabalhava algumas vezes, quando apareciam biscatos. Nos últimos tempos fica difícil, ninguém oferece trabalho para uma pessoa como eu.
— Já alguma vez foste a Luanda?
Uma pergunta banal para descontrair.
— Sim, já lá fui, mas faz mais de 5 anos.
— Tem alguma lembrança de lá?
— Não, estávamos na residência escolar, não podíamos sair para conhecer a cidade. Fui através das olimpíadas de matemática e só saímos para a competição.
— Então és bom a Matemática.
— Era um pouco — Deu-me as costas e mirou para o céu limpo, como se pesasse a saudade, como se o peso do tempo o atropelasse naquele justo momento. Havia um sol ameno e mais pessoas afluíam o jardim da cultura. — Com o tempo tudo ficou esquecido. Agora gosto de livros que me contem histórias, livros que ensinam o sentido da vida. Eu tinha livros, lembro que na minha casa não faltava livros.
Queria indagar-lhe "onde tu vives afinal?", mas, olhei para o quão surrada estavam as suas roupas, as mãos a tremelicarem, os lábios semi rebentados com o frio, estava confirmada as minhas suspeitas. Era óbvio, Angelino deixara a vida no passado e tentava um resgate? Engoli em seco.
— O doutor fica aqui até quando?
— Amanhã volto para Luanda.
— Ah, que pena, pensei que estaria aqui amanhã para mais conversa.
— Vens cá todos os dias?
Ele voltou a fitar-me com aquele olhar. Entendi a resposta mesmo que não tenha sido dita, ali era a sua casa, o seu espaço, ali e em todos os parques do Huambo. Fomos interrompidos por três jovens, perguntaram pelos livros. Eu aproximei-me deles e fui apresentando cada um dos temas.
O meu amigo estava na outra ponta do parque quando os jovens partiram, levaram o Afroerotismo, apenas um livro e ambos discutiam, vou ser o primeiro a ler, este da secretária chamou-me atenção, os mistérios do pau de Cabinda? Isso deve ser interessante. Não, fui eu quem paguei, vou lê-lo primeiro...
Fim