Mal de Caim
Vegetação agonizante, cardos e espinhos, figos secos, uvas passas, uma oferta de linhaça; do outro altar o fogo crepitante consome um cordeiro primogênito, a fumaça ascende aos céus, uma libação de leite é vertida e é derramada sob o solo. A estiagem seca os campos, o trabalho do lavrador é duro, a terra nem sempre é generosa.
Aprendi com meu pai, Adamah o cultivo do solo, mas pelo pecado de meus pais, Adamah e Hava, Elohim nos castigou com cardos e espinhos, o meu trabalho é duro, comemos o pão com o suor do rosto, nem sempre há trigo e cevada. Minha vida poderia ser mais fácil como a de meu irmão menor, Hevel, tudo o que ele tem que fazer é pastorear um rebanho. Meu pai Adamah contou-nos como Elohim criou o mundo, e fez um jardim chamado Éden. Ele falou de um tempo sem dor, sofrimento e tristeza, quisera eu experimentar como meus pais o paraíso.
Mas meus pais pecaram, eles comeram figos que davam acesso ao conhecimento do bem e do mal, foram expulsos do jardim e castigados severamente com a morte, a dor, a angústia e a doença, por esse motivo, querendo paz com Elohim, eu, Qanah, e Hevel, vamos presentear Elohim com o que produzimos.
Meses a fio não chove, Hevel ergueu um altar; eu também. Cada um de nós ofereceu produtos do trabalho. De repente um relâmpago ilumina o deserto, e o que parecia ser impossível, o fogo do céu caiu de uma nuvem, consumindo a oferta de Hevel, o fogo consumiu tudo ao redor. Mas minha oferta foi desprezada, virou alimento de formigas.
Deus me desprezou, logo Hevel adentrará os portões guardados por anjos. Dia após dia se passavam e meu ódio era semeado, enquanto eu plantava na terra amaldiçoada por Deus, pisando entre espinhos e combatendo pragas e ervas daninhas, Hevel pastoreava em prados verdejantes, talvez minha oferta de linhaça não seja tão boa quanto um sacrifício humano, pois o humano vale mais que um cordeiro. Estou ficando louco, minha razão está eclipsada por vozes de minha cabeça, que insistem
Olá querido irmão!- disse Qanah ao avistar Hevel.
Andar trôpego, vacilante, calcando pedregulhos por uma sinuosa pradaria, turbante, roupa tecida em uma só cor, barba espessa e longa como o irmão, com um cajado rústico e mal trabalhado. Qanah andava quase desnudo, barba espessa, cabelos despenteados, o suor rolava por sua testa.
Olá Qanah, tenho sonhado com você, são sonhos perturbadores, tais sonhos que caem como a noite me impedem de dormir.
Bobagem, são só sonhos, deixe disso, que tal confraternizarmos, vou colher uvas e figos, e você poderia levar um cabrito, que tal?
Me parece uma ótima ideia, meus cabritos estão gordos, mas suas colheitas não foram fartas apesar das pragas e ervas daninhas.
Qanah descaiu o semblante, em um rodopiar de pensamentos, a lembrança turva do dia do sacrifício. Tudo parece mais difícil pra mim, e fácil pra Hevel tudo parece mais fácil, suas ovelhas são como nuvens de algodão, seus campos mais verdejantes, sua figura mais viril, meus pais o amam mais, ele não se ocupa com cardos e espinhos, as ervas daninhas não devoram seus frutos, a lagarta e o gafanhoto não são uma preocupação para ele. Mas quanto a mim devoram até a raiz.
-Hevel, profeta, começa a tremer e sua voz retumbante como a de trovão pergunta:
Por que descaiu o teu semblante, se bem fizeres não é certo que prosperarás?
Eu não pude suportar o seu juízo, ao ouvir suas palavras pensei em me lançar sobre ele, e tirar seu fôlego de vida como faz Hevel com seu rebanho. Retirei para o fundo do pomar onde me perdi em pensamentos de ódio.
Hevel viu o irmão correr para bem longe e sumir por entre as árvores.
Na tenda, Hevel orava ao Senhor em profundo pesar e angústia como se soubesse a armadilha que o destino selaria.
Uma figura insólita de um casal aparecia distante, era Hava e Adamah.
-Filho, por que vocês não estão conosco?- Perguntou Hava.
-Mãe, Hevel e eu percebemos que a maldição de Deus paira sobre vocês, não suportamos mais a dor e o sofrimento. Queremos fazer parte do Éden como vocês foram um dia, e que pela tolice pecaram. Vocês são perdição para nós, por isso, saímos à procura de perdão, e longe da maldição que os cobre como sombra, e da qual não consegui ainda me livrar- Disse Caim verborrágico.
- Qanah, filho, erramos, mas Deus nos perdoou, Ele já prescreveu nossas penas, e muito temos sofrido.
- Mas Hevel... ele tem prosperado... eu ainda não... mas um dia irei . Disse Caim.
-Nos preocupamos com vocês, as feras da terra podem atacá-los, os leões rugem à tarde, as leoas saem à procura de alimento, vez por outra devoram uma ovelha de Hevel. Eu sei... um dia deparei-me com uma ovelha estraçalhada, elas podem fazer o mesmo com vocês. Disse Adamah preocupado.
- Eu acho melhor que vocês saiam daqui, vão pra bem longe!!!- Disse Caim os expulsando.
O dia terminou, o sol foi-se, mais um dia veio com a noite.
Ao longe, um pastor conduzia um rebanho, a brancura se destacava no meio do verde dos prados. Mais uma vez Qanah foi à procura de Hevel.
Oi irmão, venha, vamos confraternizar! Já retirei água do poço para teu rebanho, assenta-se, deixe-me lavar teus pés, consegui uvas e figos, estão maduros, veja! Disse Qanah.
Oi irmão, aceito seu convite, por isso vim, cevei um cabrito. Disse Hevel.
Só falta fazermos uma fogueira, sente-se, há água aí, beba, você deve estar cansado. Disse Qanah.
Não querido irmão, deixe que eu prepare a fogueira, suas mãos estão calejadas. Tem notícias de papai e mamãe?- Perguntou Hevel.
Não, eles não estiveram aqui, eles são uma terrível mancha e nódoa sobre a terra, esqueça deles. Disse Qanah.
Sinto falta deles... . Disse Hevel.
Temos um ao outro irmão, e vejo que Deus abençoa-te em tudo que faz, logo será eu. Disse Qanah.
Não irmão, eu não vejo assim, você também foi abençoado, você tem frutos como as uvas e os figos, pode se alegrar com o vinho e possui azeite para sarar feridas, tudo isso são bênçãos, você trigais e... . Disse Hevel, quando Qanah o interrompeu.
Também há joio no trigo, ervas daninhas, lagartas que comem os frutos. Devo manter meus olhos atentos, e a fome sempre vem, você ao contrário, não tem preocupações, tudo o que tem que fazer é conduzir as ovelhas às águas tranquilas de pastos verdejantes! Disse Qanah indignado.
Não é bem assim, a vida de um pastor não é fácil, um dia uma das 99 ovelhas desgarrou-se, eu tive que subir um penhasco para poder tirá-la de lá, já lutei com um urso faminto e um leão feroz, ele deixou esta cicatriz aqui, veja. Disse Hevel se justificando.
Qanah dispôs em uma estela figos, azeites, romãs e uvas. Lavou os pés empoeirados do irmão, beijando-os. Qanah foi pegar pedras que Hevel supôs que eram destinadas à fogueira. Qanah disse, mudando o semblante, com olhos ardentes disse:
Estou cansado dessa vida, desses ciclos intermináveis, desse enfado de viver. Estou cansado de acordar cada manhã, tendo os malditos raios de sol invadindo meu leito! Disse Qanah.
Não diga isso irmão, a vida é bela, o canto dos pássaros, o orvalho das manhãs, o mel gotejando das flores, tudo isso é um presente de Deus. Disse Hevel.
Calado! Calado! Você é o problema, assim como Adamah e Hava, e eles me deram mais um problema, você! Disse Qanah cheio de ódio.
Você sempre foi um exemplo pra mim, sempre quis ser como você, sua ocupação é ótima, não há nada de errado com você, e naquele dia, você foi o único a falar com Deus. Disse Hevel.
Não vejo bem assim, só sei que eu tinha toda atenção dos meus pais e de Deus antes de você nascer!!!! Disse Qanah alterado.
Pegando uma pedra, Hevel tentou ainda se defender com o cajado, mas Qanah foi mais rápido acertando Hevel na testa. Quando Hevel caiu no chão, Qanah deu prosseguimento a uma série de pedradas que deformaram o rosto de Hevel, Qanah cego pelo ódio estava cego e banhado em sangue. O rosto de Hevel agora era uma pasta disforme, e os miolos de Hevel estavam em uma pedra rubra de sangue. Qanah achou que o crime estava consumado, e ficou olhando com uma curiosidade científica aquele rosto inchado, ensanguentado e deformado. Se mamãe e papai vierem, eles irão ver o corpo, pensou.
Cavando sulcos na terra, Qanah ocultou seu irmão em uma vala, cobrindo-o com terra. Dias se passaram, Qanah o desterrou um dia, e viu os ossos de Hevel, com o crânio de Hevel, Qanah ornou sua tenda. Os rebanhos estavam desgarrados pelas pradarias, e os lobos e leões devoravam a maioria deles. Qanah lembrou-se do nascimento do irmão, como era um bebê fofinho, amamentado pelo seio de Havah.
Um dia Qanah ouviu a voz de sua consciência dizer: Hevel, onde está seu irmão? A voz ecoava e reverberava cada vez mais alto. Qanah pôs as mãos no rosto em atitude de desespero, como se estivesse dentro de um redemoinho de palavras que gritava cada vez mais alto. Cortando a voz da consciência, ele disse em alto e bom som:- Acaso sou o pastor do meu irmão?????!!!!!.
O meu castigo é grande demais, não vou suportar, darei cabo de minha vida!- Não, disse sua consciência, se alguém matar Qanah, será vingado sete vezes. Se Adamah me matar ele cometerá um pecado ainda maior, me matando.
Qanah abandonou aquele cenário de crime, onde o fantasma do irmão em lembranças frequentes o assustava, de dia, através do remorso; e à noite, através de pesadelos. Dirigiu-se Qanah, vagabundo e fugitivo para a terra de Node, ao Oriente do Éden. Lá construiu um agl