A descoberta do novo mundo

O casal vivia em Oriximiná, no Pará, misturado com cerca de 10.000 outros quilombolas que viviam em 37 comunidades rurais situadas nas margens dos Rios Trombetas, Erepecuru, Cuminã e Acapu. Ainda trabalhava na agricultura, extrativismo, criação de animais de pequeno porte até exploração de minério.

Vivia bem, exceto quando a grande comunidade resolvia reviver as suas tradições africanas através de pequenos ritos, comidas e pequenos presentes. Daí o casal chorava. Chorava muito.

João e Maria estavam com mais de 70 anos e, com a chegada da idade, um sentimento profundo de saudade invadiu seus corações. Sentiam-se próximos da morte e, possivelmente por isso, buscavam resgatar o que tinham de melhor no pouco tempo que lhes restava.

Nunca esqueceram o que lhes tinham falado sobre a vida escrava dos seus antepassados, uma vida desumana. A alimentação era precária, as roupas uns trapos e o trabalho em excesso. Trazidos da África para trabalhar na lavoura, na mineração e no trabalho doméstico, os escravos eram alojados em galpões úmidos e sem quaisquer condições de higiene.

Tudo isso pesava demais na cabeça do casal, que buscou por toda a vida passar à sua família e à comunidade, a necessidade de voltar-se para um novo mundo, preenchendo com dignidade as oportunidades que ele oferecia. Muita coisa mudara com os anos.

Esse tilintar de saudade se deu por volta de 1980. Foi então que João e Maria decidiram buscar auxílio junto ao Ministério Público da União que, dentre as suas atribuições, tinha o dever de defender os interesses das comunidades quilombolas por meio de acompanhamento das ações. Sabia que, sozinho, não conseguiria muita coisa, já que a cultura nas comunidades ainda era de uma imensa servidão, sem perspectiva.

Em rápida e produtiva reunião, e os representantes da União, perplexos com a habilidade e vontade de João e Maria, ficou estabelecido que o casal auxiliaria oficineiros que iniciariam um trabalho nas comunidades, com o objetivo de clarear os seus horizontes e, à medida do seu desenvolvimento, auxiliaria na tomada de decisões em relação à possíveis mudanças, especialmente para estudos e trabalho. Foram anos de luta, às vezes um tanto inglória pela dificuldade em atingir o mais importante na vida das pessoas: a auto estima. Mas, passo por passo, o movimento tomou proporção gigante e hoje, 09 de agosto de 2022 já podemos falar com muita propriedade que boa parte da cultura foi transformada. Já podemos considerar inúmeros formandos nas Universidades do Pará, Bahia e Goiânia e outro tanto navegando pelo país em busca de sonhos.

Dia desses eu soube, através de um amigo, que é juíz próximo à Oriximiná, que houve uma grande celebração, reunindo negros de todos os cantos para confraternizarem os novos tempos e, principalmente, cultuarem João e Maria, o casal que pensou grande, mesmo no final da vida. O casal que despiu-se de acomodação para levantar a bandeira e proclamar que existia uma vida lá fora. Por eles hoje as comunidades lutam por um amanhã melhor, buscando esquecer as agruras vividas por seus antepassados. O passado ficou para trás e no futuro há muito por fazer.

Rosalva

09/08/2022

Rosalva
Enviado por Rosalva em 25/08/2022
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