Um Conto Russo?

Professor Dmitry havia saído da faculdade mais cedo que o habitual, sua cabeça pesava muito de dor. Podia se dizer uma enxaqueca prussiana. Entrou em seu Lada Vesta e se digiriu para uma farmácia mais próxima.

As luzes amareladas e vetustas na antiga Berlim o acompanhavam.

Dmitry Melkus era um homem avesso ao seu próximo, mas diante do outro ele se apresentava como um ser humano paciente e fraterno. Tinha que ser assim, senão era melhor nunca ter nascido. Nasceu, porém, há de viver até o próximo tempo das esferas cruciais entre a cronologia concreta e a lesividade do etéreo.

Avistou uma farmácia na esquina do bairro Karl Marx, quase no centro comercial da terra onde a chuva cai como lágrimas congeladas.

Parou em frente ao estabelecimento e logo notou na entrada uma câmera de segurança; na realidade de insegurança. O marginal invade, rouba, até mata e que segurança pode ser feito? Vestiu seu casaco mais pesado e mais grosso, mesmo sendo um professor e a sorte de ser solteiro e sem filhos, ao passo que dá para comprar um casaco que possa o afastar por alguns minutos do frio latente da milenar Rússia.

Como sempre, Dmitry ficava incomodado em se ver nas duas LEDs que observavam todos os clientes, da entrada ao balcão de pagamento da farmácia, do balcão de pagamento até a saída da mítica drogaria. Conhecia seus donos, os irmãos Aleksandr e Andrey. Enquanto ele batia com a mão na bancada para chamar alguém, viu um homem atrás dele. Alto, bem vestido, e o olhava com um certo lamento. Professor Dmitry ficara estático e nada disse, nada pensou. Deu dois murros leves na bancada repleta de remédios e logo foi surpreendido pelo mais novo, Andrey.

Falaram algumas amenidades e o cansado mestre da língua erudita inglesa proferiu um argumento lógico a respeito do outro cliente que estava no lado esquerdo de seu ombro, de acordo com a imagem da tv acima de um armário quase caindo de velho.

Andrey deu um sorriso amarelo, apesar de ser fumante e de seus dentes ainda estarem brancos pelo uso excessivo de flúor importado da américa do norte. Balbuciou algo na qual Dmitry não entendeu de imediato.

- Professor! – Disse quase sussurrando o jovem. – Não há ninguém além de nós!

E realmente não havia. A TV mostrava um homem andando pelo pequeno corredor da farmácia e ao olhar para trás Dmitry percebeu o inevitável: havia apenas ele e Andrey. O espectro alto e bem vestido não existia a visão humana e taciturna de Dmitry.

Andrey, como já conhecia a situação e era um dos poucos membros de uma filosofia antiga que adentrava pelos porões insalubres da Rússia, o espiritismo. Os ventos frios do outro mundo trouxeram esse ser que ainda não desencarnou em seu total. Andrey, estudioso e adepto do mistério doutrinador de Allan Kardec, tentava provar ao professor a existência de um espírito sofredor que havia cometido a transgressão do suicídio. O finado era um morador do sobrado acima da farmácia e fora herdeiro de uma loja que existia ali, mas com o passamento súbito e doloroso do jovem Rurik Petrov, sua alma não consegue descansar.

Dmitry, descrente e desolado, até esqueceu da dor de cabeça, que já havia sumido naquele instante. Vira os olhos lacrimosos e os pelos dos braços arrepiados de Andrey. Não queria escutar mais aquela história de terror e desespero.

Olhou novamente para a saída do estabelecimento e as duas LEDs que visualizava eles, o comércio por inteiro e o jovem Rurik pálido e um semblante de muita tristeza e angústia.

Ao longe se ouvia um barulho de buzinas de carro, pessoas conversando, alguém escutando rock bem alto e o professor Dmitry deitado em sua cama simples no seu apartamento simples.

Levantou-se, abriu uma parte da janela do seu quarto e observou que estava o tempo todo deitado, dormindo em seus aposentos humilde de professor erudito de inglês. Bocejou e com um bafo de vodca percebeu que havia tido um pesadelo.

O relógio na parede bateu nove da manhã. E nesse instante alguém batia na porta. Do lado de fora a voz falava que era o carteiro. Dmitry pôs seu roupão e abriu a pesada porta vitoriana. Um jovem rapaz segurava um pacote do tamanho de um livro, o professor nem sequer deu conta de olhar no rosto do rapaz, pegou o pacote e rasgou o papel de presente que envolvia o livro. Viu que na capa do calhamaço estava escrito em letras garrafais e dourado: “VOCÊ É O PRÓXIMO!”

Assustado Dmitry olhou profundamente no rosto do tal carteiro, era Rurik Petrov, rindo!

Luciano Cordier Hirs
Enviado por Luciano Cordier Hirs em 24/08/2022
Reeditado em 25/08/2022
Código do texto: T7589637
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