CAMINHO AMALDIÇOADO
Era uma noite sombria de uma sexta-feira 13, caminhava sob a luz do luar em direção ao Mosteiro de York, localizado na zona rural de uma pequena cidadela chamada New Brock. O caminho era longo e de difícil acesso, para me ajudar nessa longa viagem, levei meu fiel companheiro, Rufos, um cão porte médio sem raça definida, mas que tinha a bravura de três guerreiros, por isso confiava muito nele, além de amigo, ele me ajudava com algumas cargas e também a caçar nossas refeições durante o trajeto, também me aquecia nas horas mais frias das madrugadas, pois sua pelagem sempre foi grande e espessa como lã.
Rufos e eu tínhamos uma amizade de muitos anos, para ser mais exato ele era mais velho somente um mês, dessa maneira nossa ligação ia muito além de uma simples amizade, ele me viu crescer e me seguiu para onde ia ajudou-me a escapar de enrascadas como quando um javali me afrontou, mas o mais importante, ele foi o grande responsável por meu caminho cruzar com o de Hiolanda, uma doce moça que arrastava olhares por toda vila, ela era dona de um olhar sincero e meigo que qualquer um se apaixonaria. Porém nossa história não começou tão doce como seu olhar, na verdade foi meio trágica, pois Rufos a derrubou enquanto corria atrás de um gato preto pelas ruas da vila onde morávamos.
Prosseguindo nossa viajem, a paisagem ao redor ficava agradável durante o dia, rios e lagos inebriavam nossos olhos. Rufos sempre encontrava alguma diversão, como correr atrás de alguns castores às margens de algum rio ou espantar patos nos lagos, mas durante à noite toda a paisagem se tornava um lugar sombrio e de difícil visão, por isso parávamos para acampar e nos alimentar por volta da sexta badalada de um relógio que ouvíamos ao longe. Na terceira noite, após nos deliciarmos com um belo pato assado que Rufos havia caçado, nos deitamos à beira da fogueira, pois a temperatura caíra muito rápido e precisávamos nos aquecer.
Uma dessas noites frias de congelar os dedos e bater o queixo caiu sobre nós, minutos depois de deitarmos Rufos ouviu um barulho e ficou alerta, logo peguei a minha espingarda e fiquei de prontidão, pois ouvi dizer que essa região tinha muitos ursos, mas como era inverno eu não acreditei que seria um. Com minha lanterna de pilha já fraca fiz movimentos para tentar visualizar algo, ainda assim, sem sucesso. Rufos latiu com bravura como se vendo algo que meus simples olhos míopes e remelentos não conseguiam ver. Tive a sensação de que estávamos sendo observados, quando percebemos já era de manhã e o sol raiou em nossas frontes, havíamos passado a madrugada, afoitos e com medo sem saber o que nos observava.
Começamos o dia lavando o rosto na intenção de despertar e recolhendo nossas tralhas, aproveitei o braseiro para fazer um café forte e assim prosseguirmos nossa viagem. Caminhamos por algumas horas, o sol ardia como nunca e o cansaço e a fome apertaram, então paramos à beira de um ribeirão e tentei pegar alguns peixes para almoçarmos. Enquanto pescava, Rufos cochilava ao meu lado e parecia ter pesadelos enquanto fritava uns peixinhos que consegui pegar. Deitei-me ao pé de uma árvore de um florir lindo, juguei algum tipo de ipê, “Se minha amada estivesse ali eu lhe arranjaria um buquê”. Pensando nisso, me lembrei o quão longe já estava de casa, o mais depressa esqueci o cansaço, me levantei e prossegui por uma trilha de mata aberta pouco usada pelos que buscavam sua redenção no Mosteiro de York.
Minha missão era simples, levar uma encomenda ao sacristão que vivia no mosteiro, já que ele andara meio adoentado e não conseguia fazer essa peregrinação sozinho e como o local não dava para chegar de carroça, fui contratado para essa difícil missão.
Faltando um dia de caminhada à noite caiu mais uma vez, como de costume, nós desarrumamos as tralhas para descansar, não demorou muito para ouvimos o sino bater e assim como o som, a temperatura foi se esvaindo, uma noite gelada nos aguardava. Quando estávamos prontos e deitados, quando a sensação de sermos observados nos atormentou outra vez e agora ouvimos um barulho estridente sem distinção, foi impossível saber o que causou tal som. Com o frio e medo, as pernas vacilavam, Rufos estava tão acuado que dava para ouvir seus batimentos, seus olhos expressavam medo e não diferiam dos meus. Por horas sem dormir e cansados, sedemos ao sono.
Com o sol raiando em nossas cabeças e a fogueira agora só cinzas, não perdemos tempo e nos apressamos para chegar o quanto antes ao mosteiro. Aceleramos os passos na intenção de chegarmos antes do meio-dia, contudo, nossas noites mal dormidas nos fizeram parar por alguns momentos para bebermos água e lavar o rosto, para nossa infelicidade, as forças se dissiparam e perdemos o pique. De repente o pressentimento de observância tomou nossa atenção, mas o dia estava claro e não ficamos com tanto medo. Chegando em um determinado lugar, Rufos começou a mancar de uma pata e logo paramos para ver o que acontecera. Um leve corte em sua pata o dificultara a andar, nossa esperança de chegarmos cedo se foi, porquanto, não sacrificaria meu amigo para chegar a tempo. Uma pausa de emergência custaria nossa paz mais uma vez, procurei em minhas parafernálias o kit de primeiros socorros para dar atenção ao ferimento de Rufos.
Agora medicado e com uma bandagem, continuamos por alguns quilômetros, no entanto, Rufos começou a gemer de dor, paramos de novo para trocar as ataduras, mas a noite chegara mais cedo e ficamos sem direção para prosseguirmos. Acendi nossa fogueira e parti um pão que tinha em minha mochila. Rufos comera com dificuldade, aparentava estar com febre, seus olhos estavam tão vermelhos que parecia ter raiva. Preocupado com ele e com a noite, passei a mão em algumas ervas, fiz uma mistura ensinada por minha querida mãe e que fora passada por gerações em minha família. Algumas horas se passaram e a noite continuava quieta e fria, até que Rufos me assustou com um latido de delírio como se seu pesadelo se tornasse realidade, seus olhos enfurecidos estavam cegos quando tentou me atacar, por duas vezes me esquivei, mas ele como sempre mais ágil e com um salto atingiu meu braço com uma mordida feroz. De imediato caí ao chão onde ele balançava meu braço como uma lebre em seus dentes, com dificuldade alcancei uma pedra e bati contra sua cabeça até ele soltar, mas o ataque não terminara e ele avançou contra mim mais uma vez. Com o corpo ferido me defendi como pude e com um pedaço de galho que encontrei mantive-o afastado por alguns instantes, mas a madeira velha e úmida não resistiu às fortes pancadas e quebrou, minha única saída foi correr, já que ele estava machucado. A noite estava mais clara graças às nuvens que se dissiparam deixando a lua cheia brilhar e iluminar o caminho, brilho que lembrou o dia de nossa partida, aquela fatídica sexta-feira 13.
Sem tempo para pensar, peguei a encomenda e a espingarda, parti por um caminho que conseguia enxergar, mas logo atrás de mim vinha Rufos enfurecido, latindo e rosnando. Após algum tempo os latidos cessaram e olhei para trás, não havia sinais do cão. Logo à minha frente dava para ver o sino de York e um alívio adentrou no meu coração, porém, antes de ficar muito feliz, fui surpreendido de forma ardilosa com um ataque traiçoeiro em minhas costas, quando me virei com dificuldade no chão, lá estava Rufos com seus olhos carmesins de pelos ouriçados e boca espumando, não me restara outra alternativa senão atirar contra meu fiel amigo. Assim o fiz, ele estava agora estirado ao chão, tremendo em seus últimos suspiros enquanto eu estava tremulando em choque, minhas vistas embasaram e caí por cima dele, desacordado.
Algum tempo depois, acordei numa cama macia em um quarto limpo e iluminado pelo sol que entrava pela janela, jugava ser quase meio-dia. Quando olhei para o lado, vi um sacerdote do mosteiro cuidando de mim e logo que conversamos, ele me contou que ouvira um tiro na madrugada passada e, pela manhã, em sua caminhada de rotina, me encontrou ferido e desmaiado, e Rufos sem vida. Também me contou da maldição Caninos Brancos que rondava aquela estrada. Nunca acreditei nessas coisas, mas as evidências eram reais, todas as características coincidiam com os fatos que aconteceram e lá estava eu com braço quase dilacerado para provar, por sorte somente o braço, pois dizem que muitos não sobrevivem aos ataques das feras que caem sob essa maldição.
Passaram-se alguns dias até me recuperar, tomei coragem de visitar o local onde enterraram Rufos, não contive as lágrimas ao chegar em seu túmulo e me lembrar de tudo o que vivemos para que no final fosse esse nosso desfecho. Todas nossas aventuras, desde a infância ao meu lado, protegendo e ajudando tudo se passou em minha mente como um filme sem um final feliz. Saí de lá desolado e com o coração cheio de rancor por ser o responsável por seu fim.
Ao me recuperar por completo, decidi voltar para casa, agora solitário sem meu fiel amigo, somente a lua me acompanhava e meu amor me aguardava apreensiva. Olhei para céu e disse: “estou chegando, minha querida Hiolanda”.